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Anderson Schreiber

Anderson Schreiber

27/09/2017

Privacidade

Uma decisão judicial agitou os jornais a algum tempo: o juízo da 21a Vara Cível de Brasília deferiu antecipação de tutela para determinar que veículos de comunicação se abstivessem de “dar publicidade a qualquer dos dados e informações obtidas no aparelho celular da autora, sob pena de multa no valor de R$ 50.000,00”. A autora da ação judicial foi Marcela Temer, que teria sofrido tentativa de extorsão por meio da captação ilícita de dados do seu celular. No dia seguinte, via-se em diversos jornais a manchete: “Censura à reportagem sobre a extorsão a Marcela Temer”. A decisão acabaria revertida em segundo grau, mas algumas indagações suscitadas pelo episódio merecem reflexão: terá mesmo havido censura? Quais os limites da atuação do Poder Judiciário em casos de veiculação de notícias sobre a invasão da privacidade? Existem, de outro lado, limites para a atuação da imprensa em situações semelhantes? Há parâmetros jurídicos para essas respostas ou não?

Primeiramente, é preciso esclarecer que não há um conceito jurídico de censura no Brasil. A facilidade com que o argumento tem sido invocado entre nós clama, porém, por algumas delimitações. Censura pressupõe sempre uma margem de discricionariedade pessoal: censura-se aquilo que desagrada ao censor sob o ponto de vista político ou ideológico. Bem diversa é a proibição de veiculação de informações por força de lei: quando se proíbe que um hospital veicule o prontuário médico de seu paciente ou quando se impõe ao advogado sigilo profissional não se está, naturalmente, diante de censura. São restrições impostas por uma via democrática – democracia e censura são, aliás, noções incompatíveis –, com base em razões vinculadas à amplitude do dano que a revelação de tais informações pode gerar para a vítima da indiscrição. Trata-se, em outras palavras, de situação em que o benefício informativo trazido à sociedade é inexistente ou consideravelmente inferior ao prejuízo que pode ser sofrido pelo indivíduo por força da divulgação de seus dados pessoais. Daí o consenso democraticamente obtido na aprovação da lei que restringe a difusão de informações dessa espécie.

Note-se que a imprensa não está imune a tais restrições. Ao contrário: por vezes, a lei dirige-se expressamente aos veículos de imprensa, como se vê, por exemplo, do Estatuto da Criança e do Adolescente que considera infração administrativa “divulgar, total ou parcialmente, sem autorização devida, por qualquer meio de comunicação, nome, ato ou documento de procedimento policial, administrativo ou judicial relativo a criança ou adolescente a que se atribua ato infracional” (art. 247). O ECA veda, ainda, a prática de exibir “total ou parcialmente, fotografia de criança ou adolescente envolvido em ato infracional, ou qualquer ilustração que lhe diga respeito ou se refira a atos que lhe sejam atribuídos, de forma a permitir sua identificação, direta ou indiretamente”, acrescentando que “se o fato for praticado por órgão de imprensa ou emissora de rádio ou televisão, além da pena prevista neste artigo, a autoridade judiciária poderá determinar a apreensão da publicação” (art. 247, §§1o e 2o). Tampouco aqui há censura. Além de democraticamente aprovada, a restrição legal conforma-se plenamente aos nossos valores constitucionais, consubstanciados na proteção da pessoa humana, em especial da criança e do adolescente, que se encontram em estágio de formação. A liberdade de imprensa é aí limitada pela tutela de um valor que se afigura, na espécie, superior.

Note-se, aliás, que aquilo que a ordem jurídica brasileira protege não é exatamente a liberdade de imprensa (liberdade do sujeito-imprensa), mas sim a liberdade de informação (atividade informativa). Assim, empresas jornalísticas não gozam de uma liberdade absoluta, mas de uma liberdade instrumental, dirigida a informar o público. Daí porque a veiculação de um fato objetivamente falso (por exemplo, a notícia de que um meteoro se chocará com a Terra amanhã) não constitui, a rigor, exercício de liberdade de informação. Nem constitui tampouco exercício de liberdade de expressão porque não exprime uma opinião, mas noticia um fato (falso). A liberdade de expressão, como liberdade inerente à autonomia existencial da pessoa humana, é livre: embora possa colidir com outros direitos, não se sujeita a controle interno entre meio e fim, pois é fim em si mesma. A liberdade de informação, ao contrário, dirige-se a uma finalidade informativa: se desviada desse fim, exprime exercício ilegítimo ou abusivo, perdendo merecimento de tutela.

Feitas essas breves distinções, voltemos ao episódio Marcela Temer: a decisão liminar não impediu a publicação de uma reportagem sobre a invasão de sua privacidade, nem sobre a extorsão sofrida ou sobre o processo criminal que resultou na condenação do suspeito à pena privativa de liberdade. Limitou-se a impedir que fossem publicados “dados e informações obtidas no aparelho celular da autora”. O juiz emitiu ordem razoavelmente delimitada, ao contrário do que acontece em muitos casos no Brasil, nos quais decisões judiciais de caráter liminar acabam tendo conteúdo excessivamente abrangente, simplesmente suspendendo publicações sem a preocupação de precisar exatamente o quê (e por quê) não pode ser divulgado. Nessa direção, tornou-se famoso o caso do filme A Serbian Film, cuja exibição foi proibida no Rio de Janeiro por decisão liminar, tendo tanto os autores da ação quanto a magistrada que concedeu a liminar declarado, na ocasião, que não haviam chegado a ver o filme (!). Sobre o caso, veja-se o artigo de Thaís Sêco, Controle de Conteúdo no Cinema?, publicado na obra coletiva Direito e Mídia.

Decisões assim despertam justificada reação da imprensa e demais meios de comunicação, sendo de se registrar que uma decisão judicial, ainda que concluindo pela prevalência no caso concreto do direito à privacidade, honra ou intimidade, deve buscar sempre a restrição menos gravosa ao interesse protegido contraposto, no caso a liberdade de informação. Pode-se, por exemplo, concluir que o direito à privacidade impede a veiculação da imagem da vítima de um crime, mas que tal veiculação passa a ser possível se houver sua desidentificação por meio de tarjas pretas ou uso de técnicas de blurring.

Todo magistrado deve evitar ceder à tentação de uma decisão simples e ampla, que impeça a circulação de filmes ou livros ou reportagens; cumpre-lhe especificar, ao máximo, mesmo que em sede liminar, qual o conteúdo ou dado pessoal sensível cuja exposição entende injustificada à luz da ordem jurídica, diante do grave dano que pode ser gerado à contraparte. O dever de fundamentação da decisão judicial não se limita, ademais, às razões jurídicas que conduzem à restrição da liberdade de informação naquele caso concreto, mas abrange também a especificação do modo como essa restrição deve se aplicar à realidade fática, sempre com o menor sacrifício possível aos interesses que, embora abstratamente merecedores de igual proteção jurídica, duelam em concreto.

Se, todavia, o Poder Judiciário tem deveres nessa matéria, também os têm as empresas jornalísticas. O entendimento segundo o qual a liberdade de informação é uma liberdade absoluta, imune a ponderações, não se coaduna com o nosso tecido normativo constitucional, que reserva igual status hierárquico àquelas liberdades e aos direitos da personalidade. Daí porque compete à imprensa exercer seu mister com a observância dos deveres jurídicos incidentes, a começar por aqueles deveres deontológicos já previstos no Código de Ética Jornalística, tais como:

(a) “ouvir sempre, antes da divulgac?a?o dos fatos, o maior nu?mero de pessoas e instituic?o?es envolvidas em uma cobertura jornali?stica, principalmente aquelas que sa?o objeto de acusac?o?es na?o suficientemente demonstradas ou verificadas” (art. 12, I);

(b) não divulgar informações “de cara?ter mo?rbido, sensacionalista ou contra?rio aos valores humanos, especialmente em cobertura de crimes e acidentes” (art. 11, II);

(c) não divulgar informações “obtidas de maneira inadequada, por exemplo, com o uso de identidades falsas, ca?meras escondidas ou microfones ocultos, salvo em casos de incontesta?vel interesse pu?blico e quando esgotadas todas as outras possibilidades de apurac?a?o” (art. 11, III); e, de modo geral,

(d) “respeitar o direito a? intimidade, a? privacidade, a? honra e a? imagem do cidada?o” (art. 6o, VIII).

Em conclusão: alegações de censura, que invocam inevitavelmente fantasmas ainda recentes na História brasileira, não contribuem para o importante debate em torno dos parâmetros para ponderação entre liberdade de informação e direito à privacidade, e do melhor modo de sua aplicação concreta. Por tal debate passa necessariamente a construção de um ambiente informativo responsável, que se afigura ainda mais relevante nesses tempos de “pós-verdade”.


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