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A pandemia e o princípio da presença virtual
Mário Luiz Delgado
16/07/2020
As normas jurídicas, quanto à estrutura, podem ser enquadradas em duas principais categorias: regras e princípios. Já é entendimento assente na dogmática moderna a dissociação estrutural entre normas-regras e normas-princípios.
Alguns princípios se concretizam através de regras, ao passo que outros não: são os chamados “princípios implícitos”, que ainda não foram descobertos ou resgatados pelo intérprete. Em muitos casos o princípio somente será descoberto diante da necessidade concreta de se normatizar uma determinada situação da vida, ainda não regrada, o que levará à descoberta do princípio dentro do sistema, a partir de uma investigação deflagrada pelo intérprete em razão justamente dessa demanda concreta de regulação.
Os princípios podem ser descobertos mediante indução a partir das regras, pela indução a partir de valores, de fatos históricos, de dados sociológicos, das práticas sociais e das práticas jurídicas, especialmente o comportamento dos tribunais.
A pandemia nos abriu os olhos para um novo princípio, que estava presente entre nós, mas ausente de positivação, a permitir que comparecimento e presença se façam também no espaço virtual.
A “forma prescrita ou não defesa em lei” (CC, art. 104, III), de que devem os atos jurídicos se revestir sob pena de nulidade (CC, art. 166, IV); ou mesmo “a solenidade que a lei considere essencial para a sua validade (CC, art. 166 ,V) podem ser perfeitamente atendidas e observadas no plano virtual. A internet criou uma nova “dimensão”, de modo que os fatos, atos e negócios ocorrentes, praticados e celebrados na dimensão física se replicam na dimensão virtual, sem que sofram qualquer alteração em sua natureza jurídica. Muda o ambiente espacial ou dimensional onde os fatos se processam, porém os fundamentos para o tratamento jurídico que lhes deve ser destinado não podem ser alterados.
O princípio da presença virtual, segundo o qual a presença física e o comparecimento da pessoa por meio dos mecanismos de comunicação em tempo real se equivalem e produzem os mesmos efeitos jurídicos, já se encontrava positivado no CC/02, no âmbito da teoria geral do contratos, por meio da regra posta no citado art. 428, que considera “presentes” as partes que contratam por meio de comunicação “semelhante ao telefone”, entre os quais se inserem, por óbvio, as plataformas digitais de teleconferência, a exemplo do Zoom, Microsoft Teams, Hangouts, Skype, entre outras[1].
Durante a pandemia da covid-19, diversas iniciativas legiferantes deram concretude e maior densificação ao novo princípio, a exemplo das alterações promovidas pela lei 14.010 de 2020, a ratificar a possibilidade das assembleias virtuais nas pessoas jurídicas em geral e nos condomínios, onde associados, sócios e condôminos se fazem presentes por meio das plataformas digitais. Assim, a partir da interpretação e aplicação dos arts. 5º e 12 da lei 14.010/20 em conjunto com o princípio da presença virtual, é possível concluir que as assembleias a que aludem os arts. 57, 59, 206, V e VII, 1.066, 1.068, 1.069, 1.070, 1.072, 1.073, 1.074, 1.075, 1.078, 1.079, 1.080, 1.081, 1.084, 1.085, 1.092, 1.094, 1.098, 1.103, 1.108, 1.109, 1.112, 1.120, 1.152, 1.334, 1.335, 1.336, 1.337, 1.341,1.347, 1.348, 1.349, 1.350, 1.352, 1.353, 1.354, 1.355, 1.356, 1.357, 1.358-I, 1.358-M e 1.358-Q, todos do Código Civil, poderão ser realizadas por meio de plataformas telemáticas que assegurem a manifestação imediata da vontade, com transmissão automática e simultânea de som e imagem, sem que haja necessidade de alteração legislativa específica de cada um dos aludidos dispositivos normativos. E mais, mesmo as assembleias virtuais realizadas em data anterior à vigência da lei 14.010 serão válidas à luz do princípio da presença virtual. Até porque os arts. 5º e 12 da lei são disposições legais de natureza interpretativa, que se aplicam, sem dúvida alguma, às assembleias realizadas em data anterior[2].
O mesmo se diga em relação ao art. 1.080-A do Código Civil, incluído pela medida provisória 931, de 2020 e que permite ao sócio participar e votar à distância em reunião ou assembleia, nos termos do disposto em regulamentação do DREI[3]. O equívoco da MP 931, no entanto, foi qualificar a participação do sócio na assembleia virtual como sendo “à distância”, quando a realização do ato no ambiente virtual, por meio das plataformas de comunicação instantâneas, faz com que todos os participantes se encontrem, simultaneamente no mesmo espaço, não havendo que se cogitar de sócios presentes ou ausentes, nem de participantes próximos ou distantes.
Como se vê, a pandemia nos despertou para o fato de que a presença das pessoas, como requisito para a prática de todo e qualquer ato jurídico, poderá se externalizar por intermédio de uma plataforma física ou digital. Ocorrerá, assim, a transmutação do suporte físico para o digital, com a observância dos mesmos pressupostos legais exigidos em cada ato ou negócio jurídico. Formalidades e solenidades serão cumpridas e a segurança jurídica restará assegurada, com ainda mais efetividade, pelas ferramentas tecnológicas.
Interpretando o Código Civil, com apoio no princípio da presença virtual, é de se concluir pela possibilidade de se praticar todo e qualquer ato ou negócio jurídico, em se fazendo presente por intermédio de plataformas digitais de comunicação instantânea com recursos de áudio visual, não se admitindo diferenciação alguma, ontológica nem funcional, entre presença física e presença virtual.
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[1] A propósito, o comentário de Schreiber quando destaca serem “consideradas presentes pessoas que estejam em comunicação interativa, em tempo real, ainda que situadas em local distinto. Assim, se uma proposta é feita por telefone, o oblato considera-se pessoa presente, ainda que esteja situado a quilômetros de distância do proponente. Como se vê, o critério empregado para distinguir pessoas ausentes e presentes para fins de eficácia obrigacional não é físico ou geográfico, mas comunicativo (interação em tempo real)” (SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; DELGADO, Mário Luiz; MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Código Civil Comentado. Doutrina e Jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 268).
[2] Como já tive a oportunidade escrever em outra obra, é possível “a aplicação retroativa da lei meramente interpretativa, ao argumento lógico de que tais leis, limitadas que estão a declarar o direito preexistente, são consideradas como se já estivessem vigentes à época da edição da lei interpretada. Lei interpretativa e lei interpretada se confundem, como que constituindo um só corpo, razão pela qual jamais entrariam em conflito. Para que possamos falar em lei interpretativa, é imprescindível a existência de uma lei anterior, contendo dispositivos obscuros, duvidosos ou incertos, a serem esclarecidos pela segunda lei. Ao proceder a esse “esclarecimento”, a lei posterior deverá optar por uma solução que poderia ser adotada pelo intérprete ou pela jurisprudência, não podendo criar direito novo. O legislador assume, assim, a função do intérprete (…) O Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966) prevê expressamente a retroatividade de grau médio da lei tributária interpretativa, que se aplicará aos fatos pretéritos não cobertos pelo manto da coisa julgada (art. 106)”(Cf DELGADO, Mário Luiz. Novo direito intertemporal brasileiro: da retroatividade das leis civis. São Paulo: saraiva, 2014, pp. 180-181).
[3] Essa MP também alterou a Lei das S/A e a Lei das Cooperativas, dispondo sobre o direito de participação virtual nas assembleias aos respectivos acionistas e associados.
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