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QUINZE ANOS DO “NOVO” CÓDIGO CIVIL

TRINTA ANOS DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA

Anderson Schreiber

Anderson Schreiber

26/03/2018

O ano que se inicia carrega em si um simbolismo profundo para o direito brasileiro: representa o aniversário de trinta anos da Constituição da República, depositária dos valores fundamentais da nossa ordem jurídica. De um lado, a ocasião exprime uma inegável vitória do regime jurídico democrático sobre o autoritarismo que irrompia com tanta frequência na História brasileira. De outro lado, contudo, não se pode deixar de lamentar que três décadas não tenham sido suficientes para realizar concretamente o projeto de sociedade traçado em 1988, pululando, entre nós, demandas sociais básicas que estão longe de terem sido minimamente atingidas. Saneamento, educação e segurança são apenas alguns dos setores onde temos falhado clamorosamente.

A Administração Pública, refém de uma política oportunista, quando não de atos ilícitos, tem se revelado incapaz de realizar as elevadas aspirações do texto constitucional brasileiro. Tudo no direito público parece, hoje, em compasso de espera, no aguardo de transformações capazes de atribuir maior eficiência à prestação de serviços públicos – eficiência que exigiria um flexibilização do excesso de amarras jurídicas que recaem sobre a atuação dos agentes públicos, em um momento do país em que a falta de confiança nos agentes políticos que ocupam a cúpula do aparato administrativo retira qualquer apoio a tentativas de flexibilização (ainda que seja evidente que a legislação que aí está, com toda a sobreposição de controles e limites impostos à atividade do agente público, falhou comprovadamente em prevenir atos de corrupção). O direito público encontra-se, assim, paralisado em meio a esse paradoxo: não se adotam medidas para melhorar a sua aplicação porque se tem receio de que seja mal aplicado.

O ano de 2018 traz, todavia, um segundo aniversário, quase esquecido: quinze anos de vigência do “novo” Código Civil, que começou a vigorar em 2003. Alguns poucos aplausos ecoam no salão. A atual codificação civil brasileira, ao contrário da Constituição de 1988, não representou nenhuma revolução, nenhuma grande ruptura com o passado. Em larga medida, sua promulgação foi decepcionante: institutos já não tão novos deixaram de ser contemplados, houve erros técnicos graves para uma codificação e a ampla maioria do seu conteúdo consistiu em mera reprodução literal do Código Civil de 1916. Luiz Edson Fachin, hoje Ministro do STF, chegou a sustentar, em brilhante parecer redigido em co-autoria com Carlos Eduardo Pianovsky, a inconstitucionalidade do projeto de lei que viria a dar origem à nova codificação. Gustavo Tepedino, em célebre editorial, anunciou a chegada do novo Código Civil como um duro golpe na experiência constitucional brasileira.

O aniversário de quinze anos do Código Civil hoje vigente não seria, portanto, motivo de qualquer celebração, pelo seu texto, mas é preciso observar o que nossa doutrina e jurisprudência conseguiram fazer dele. Em quinze anos, a falta de atualidade da codificação civil foi sendo, pouco a pouco, corrigida por interpretações vanguardistas e corajosas. Os tribunais prontificaram-se a acolher o que de mais inovador a doutrina ofereceu para contornar os retrocessos criados pela promulgação do Código Civil. Adimplemento substancial, responsabilidade pré-contratual, responsabilidade pós-contratual, proibição de comportamento contraditório, inadimplemento antecipado, responsabilidade por perda da chance são apenas alguns dos exemplos de construções hoje sedimentadas nos nossos tribunais, apesar do embaraçoso silêncio de um Código Civil aprovado no ano de 2002. No campo da proteção à pessoa humana, uma disciplina tipificadora dos direitos da personalidade, repleta de erros e impropriedades, foi convertida, na prática jurisprudencial, em um canal de aplicação direta das normas constitucionais às relações privadas.

O ano de 2018 reserva algumas perspectivas importantes nesse sentido. Espera-se, por exemplo, que o STF conclua o julgamento do Recurso Extraordinário 845.779, que contempla pedido de danos morais formulado por mulher transexual impedida de usar o banheiro feminino por funcionários de um shopping center. O relator do caso, Ministro Luís Roberto Barroso, manifestou-se pelo reconhecimento de um direito dos transexuais a serem tratados de acordo com a sua identidade de gênero. Merece menção, ainda, nesse julgamento o voto do Ministro Luiz Edson Fachin, que, seguindo o relator, analisou a matéria na perspectiva do direito civil-constitucional, destacando que a solução imaginada por algumas pessoas, de introduzir um terceiro banheiro, seria violadora do direito à identidade, uma vez que, em suas palavras, “certamente enfraqueceria o próprio senso de inclusão no seio comunitário”. Ainda se aguarda o voto-vista do Ministro Luiz Fux para a retomada do julgamento.

Também se aguarda para este ano de 2018 a retomada do julgamento conjunto, pelo STF, da ADI 4.275 (Rel. Min. Marco Aurélio) e do RE 670.422/RS (Rel. Min. Dias Toffoli), que versam sobre a possibilidade de alteração do nome e sexo de pessaos transexuais no registro civil, independentemente da realização da cirurgia de transgenitalização, como já reconhecem diversos tribunais brasileiros, inclusive o STJ. A possibilidade de alteração já conta com votos favoráveis dos Ministros Dias Toffoli, Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Rosa Weber.

Outro tema que promete ocupar o Supremo Tribunal Federal é o tema do direito ao esquecimento, objeto do RE 1.010.606/RJ, de relatoria do Ministro Dias Toffoli. O direito ao esquecimento, que impõe à nossa Suprema Corte uma reflexão mais profunda em torno da colisão entre liberdade de informação e privacidade, já foi tema de coluna anterior, à qual me permito remeter o leitor interessado em mais detalhes sobre essa instigante matéria: http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/direito-ao-esquecimento-criticas-e-respostas/17830.

Outro debate desafiador é o que envolve o exame da legitimidade constitucional das normas do Ministério da Saúde e da Anvisa que restringem a doação de sangue por parte de homens homossexuais – tema da ADI 5543. O Ministro Luiz Edson Fachin, relator desse processo, afirmou em seu voto que têm caráter discriminatório as referidas normas, que estabelecem um grupo de risco com base na orientação sexual, ou seja, uma característica intrínseca da pessoa, quando, na verdade, deveriam eleger por parâmetro condutas de risco, estas sim comportamentos concretos capazes de gerar dano aos receptores do sangue doado. O posicionamento, porém, tem encontrado certa resistência entre os demais ministros e no debate público, tendo alguns Ministros manifestado “preocupação” quanto aos impactos de uma decisão do STF sobre matéria regulada por normas técnicas baseadas na ciência médica. Não custa lembrar, porém, que todas as práticas sociais, inclusive as médicas, se submetem a parâmetros jurídicos e, especialmente, aos princípios fundamentais da Constituição da República, não sendo possível concordar com a formação de guetos imunes ao controle de constitucionalidade em razão de um suposto caráter técnico da medicina – que, de resto, tem, como se sabe, espaços de interpretação tão amplos quanto os espaços da ciência jurídica.

Como se vê, além de alguns julgamentos importantes sob o prisma puramente técnico do direito civil, como aqueles que versam sobre a imposição de taxa de manutenção por associações de moradores em condomínios de fato (STF, RE 695.911/SP, com repercussão geral já reconhecida) e a taxa de juros aplicável às hipóteses nas quais o termo inicial dos juros de mora não coincide com o termo inicial da atualização monetária (STJ, Corte Especial, Recurso Especial 1.081.149), o ano de 2018 promete algumas tomadas de posição pelos nossos tribunais superiores em matérias que exprimem passos relevantes na concretização do projeto constitucional brasileiro, por meio do direito civil.

Fonte: Carta Forense


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