32
Ínicio
>
Civil
>
Clássicos Forense
>
Constitucional
>
Revista Forense
CIVIL
CLÁSSICOS FORENSE
CONSTITUCIONAL
REVISTA FORENSE
Direito de propriedade, sua evolução atual no Brasil
Revista Forense
20/07/2022
REVISTA FORENSE – VOLUME 152
MARÇO-ABRIL DE 1954
Semestral
ISSN 0102-8413
FUNDADA EM 1904
PUBLICAÇÃO NACIONAL DE DOUTRINA, JURISPRUDÊNCIA E LEGISLAÇÃO
FUNDADORES
Francisco Mendes Pimentel
Estevão L. de Magalhães Pinto,
Abreviaturas e siglas usadas
Conheça outras obras da Editora Forense
SUMÁRIO REVISTA FORENSE – VOLUME 152
CRÔNICA
DOUTRINA
- Direito de propriedade, sua evolução atual no Brasil – Caio Mário da Silva Pereira
- É de rejeitar-se a tese da soberania nacional? – A. Machado Paupério
- Direito comparado, sua realidade e suas utopias – Paulo Dourado de Gusmão
- Idéias gerais para uma concepção unitária e orgânica do processo fiscal – Rubens Gomes de Sousa
- Do aspecto jurídico-administrativo da concessão de serviço público – Osvaldo Aranha Bandeira de Melo
- Da responsabilidade civil do Estado por atos do Ministério Público – Lafayette Pondé
- A extradição – Anor Butler Maciel
PARECERES
- Serviços públicos – Intervenção na Ordem Econômica – Sociedade de economia mista – Imunidade fiscal – Banco da Amazônia – Aliomar Baleeiro
- Magistrado – Irredutibilidade de vencimentos – Gratificação adicional – Aposentadoria – M. Seabra Fagundes
- Sigilo de correspondência – Telegramas – Exame por agentes fiscais – Carlos Medeiros Silva
- Enfiteuse e arrendamento – Distinção – Temporariedade decorrente de cláusula contratual – Orlando Gomes
- Títulos em branco – Nota promissória – Aval – Falsidade ideológica – João Eunápio Borges
- Compra e venda do parto de animais de cria – Antão de Morais
- Ação de recuperação de títulos ao portador emitidos pela União – Competência – Descumprimento das ordens judiciais pelo Executivo – Jorge Alberto Romeiro
- Ato administrativo – Autorização ou licença – Revogação – J. Guimarães Menegale
NOTAS E COMENTÁRIOS
- A prescritibilidade da ação investigatória de filiação natural – Alcides de Mendonça Lima
- Inviolabilidade do lar – Sanelva de Rohan
- Os aumentos de capital e o direito dos portadores de ações preferenciais – Egberto Lacerda Teixeira
- As sociedade de economia mista e as emprêsas públicas no direito comparado – Arnold Wald
- Locação total e locação parcial – Eduardo Correia
- Conceituação do arrebatamento como crime contra o patrimônio – Valdir de Abreu
- Os quadros de carreira e a equiparação salarial – Mozart Vítor Russomano
- A situação dos parlamentares que se afastam de seus partidos – Nestor Massena
JURISPRUDÊNCIA
LEIA:
SUMÁRIO: Propriedade e regime político. Raízes do nosso direito. Desapropriação por interêsse social. Regulamentação do preceito constitucional. Restrições ao direito de propriedade. O art. 147 da Constituição. Garantia da propriedade e dos direitos individuais. Conclusão.
Sobre o autor
Caio Mário da Silva Pereira, Professor da Fac. de Direito da Universidade de Minas Gerais
DOUTRINA
Direito de propriedade, sua evolução atual no Brasil
*1. Propriedade e regime político
A propriedade é a pedra de toque dos regimes jurídicos e dos regimes políticos. É através de sua análise que se pode apurar a tendência de um povo num determinado momento de sua evolução histórica.
Se é certo, como efetivamente é, que a tendência política imprime ao Direito sua feição própria, e o demonstrou brilhantemente o Prof. MARCEL WALINE (“L’individualisme et le droit”, 1949), podemos buscar na forma como é tratada a propriedade o traço característico do regime, ou a extensão em que a tendência política atua no campo jurídico.
É através da propriedade familiar traduzida pela apropriação coletiva dos bens do grupo, sob a direção do chefe, que podemos distinguir a vida jurídica das populações arianas primitivas, antes que penetrassem a bacia mediterrânea e fôssem assentar as bases da civilização que seria a romana. É também na impraticabilidade da concentração pessoal do domínio que podemos definir a organização patriarcal do tipo social bíblico.
O extremado individualismo do Direito Romano da primeira fase pode perfeitamente ser definido no conceito da propriedade ex jure quiritium, condicionada à natureza do objeto e sua situação no solo itálico, à nacionalidade do titular, e ao modo formalista de transmissão. Com a evolução das tendências do povo de Roma caminha o dominium para uma distinção em directum e utile (VILLEY), refletindo a duplicidade dominical as idéias do tempo, ligadas ao reconhecimento de um direito àquele que explora e torna produtiva a terra. O regime feudal enriquece a história política de um conteúdo novo, e então a propriedade espelha êstes pendores, germinando na idéia privatística de senhorio a projeção publicística de poder.
A Revolução Francesa foi um acontecimento de raízes profundas, de tão grande alcance social que se chega a dividir a história em face das transformações que causou. Não passaria da superfície o movimento, se deixasse intato o conceito medieval de domínio, e, disto conscientes, aquêles homens revolucionaram a noção da propriedade. O Código Napoleão traduz os pendores de seu tempo e sintetiza as idéias-fôrças do direito no século XIX. E como êste foi o grande lago sereno do individualismo jurídico, aquêle foi cognominado com razão o Código da Propriedade. Neste século XX é tudo intranqüilo. Os regimes mudam, os conceitos jurídicos perdem consistência. Os movimentos políticos alteram a face das instituições. Oscilam os governos da direita para a esquerda, da esquerda para a direita. Neste ambiente caótico o regime jurídico da propriedade não se mantém equilibrado. Pende para a socialização moderada, acompanhando o rumo do govêrno trabalhista britânico sob CLEMENT ATTLEE, ou procura retomar o leito individualista sob WINSTON CHURCHILL. Perde todo o sentido individual na abolição da propriedade privada do regime soviético da primeira hora, e regride a um conceito de socialização mais moderada acompanhando as transigências a que se sujeitou aquêle regime à medida que amadurece pela experiência. O desequilíbrio econômico e político instável da França de Vichy e de após-guerra pode ser estudado na insegurança da propriedade, mantida com caráter privado e individual, porém perfurada pelas nacionalizações e pelas restrições que uma legislação extravagante a todo momento lhe desfere.
Apregoa-se a deflagração de um movimento moderno sob a epígrafe um tanto enfática de “socialização do direito”. Quem quiser, porém, apurar se há mesmo socialização, é indagar como a propriedade privada está sendo tratada. Mudou ela de substância? Foi abolida? É reconhecida apenas sôbre bens de utilidade pessoal? Então o movimento é mesmo socializador, e o direito mudou de pólo. Não é? Reconhece-se o direito de propriedade individual? Atenta-se contra o domínio em impactos de superfície que lhe não abalam a estrutura íntima? Então o direito não sofreu alteração profunda, e a denominada “socialização” é apenas expressão de empréstimo.
O que daí quero deduzir é a importância capital da análise do direito de propriedade como fator de observação para se apurar a evolução jurídica de nosso tempo.
2. Raízes do nosso direito
Êste estudo tem em vista o direito brasileiro, sem perder, contudo, de vista, o que a doutrina estrangeira assinala, e o que os sistemas legislativos dos povos cultos experimentam.
A linha mestra do tratamento que o ordenamento jurídico brasileiro dispensa à propriedade é a que o art. 141, § 16, da Constituição traduz, assegurando garantia ao direito de propriedade, salvo os casos de desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interêsse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro.
Antes de situarmos êste direito em nossa sistemática, devemos vinculá-lo em seu enquadramento passado. Defini-lo. Tanto quanto fôr possível oferecer para uma instituição de tal modo complexa uma definição.
O romano via na proprietas o direito ilimitado sôbre uma coisa, incorporava nela a liberdade ao dominus de fazer o que bem lhe parecesse, a menos que a lei trouxesse, acrescenta VAN WETTER (“Pandectes”, § 162), uma limitação especial ao seu direito. Podia, o proprietário usar, gozar, dispor da coisa, mas não se entende daí que o dominium constasse de uma soma de faculdades irregulares, senão que exprimia “la pienezza del diritto sulla cosa, e le singole facultà, che in essa vanno distinte, non sono che estrinsecazioni e manifestazioni di questa pienezza” (WINDSCHEID, “Pandette”, II, § 167).
Depois da Revolução Francesa ter inscrito a propriedade entre os direitos naturais e imprescritíveis do homem, no artigo 2º da “Déclaration des droits de l’homme et du citoyen”, o Código Napoleão, que reflete e perpetua as idéias do tempo, a define em têrmos que reproduzem a ilimitação romana, como sendo “le droit de jouir et disposer des choses de la manère la plus absolue, pourvu qu’on n’en fasse pas un usage prohibé par les lois ou par les règlements”.
Embora não tenham passado sem reparos as contradições do legislador do consulado, que proclamava simultâneamente o absolutismo daquele direito e a sujeição de seu uso às restrições impostas pelas leis e pelos regulamentos, o modêlo francês inspirou inúmeros Códigos, e outros, sem copiá-lo, guardaram linha de conduta análoga. Mesmo os Códigos que seguem orientação própria desprendida da francesa, o alemão e o suíço enxergam no domínio a faculdade de proceder livremente em relação à coisa (alemão, art. 903) ou dispor dela livremente (suíço, art. 641).
Nosso Cód. Civil teve o bom senso de não a definir limitando-se a declarar (artigo 524) que “a lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua”.
Não se perdeu no excesso francês de proclamar o, seu absolutismo, que o italiano de 1865 repetiu: “diritto di godere e disporre delle cose della maniera più assoluta”. Não afirmou a liberdade de uso ou de disposição (suíço-germânico). Foi sóbrio, integrando no domínio os quatro elementos que o compõem: uso, gôzo, disposição e reivindicação da coisa.
E, precisamente por ter sido comedido, o conceito do nosso legislador pode sobreviver às mutações que o domínio sofreu, e que sucintamente assinalaremos.
3. Desapropriação por interêsse social
Examinando o art. 141, § 16, da Constituição, já nos defrontamos com sérias restrições ao direito de propriedade, contidas na desapropriação (e na requisição excepcionalmente autorizada, em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina).
É preciso, pois, situar estas restrições e a inovação que a Carta de 46 contém, dentro do movimento doutrinário que o esclarece bem.
Contra os exageros individualistas do século passado, duas escolas, ao seu turno adversárias, fazem mão comum no ataque. Cristãos e socialistas assestam contra o absolutismo do direito de propriedade uma série de acusações, e daí surge a idéia, por sua vez um pouco imprecisa, de ser o domínio função social (RENARD et TROTABAS). Neste mesmo rumo caminha o institucionalismo de HAURIOU, e quando SAVATIER sustenta a publicização do direito de propriedade nada mais está fazendo do que marchar nesta corrente que ganha vulto (“Du Droit Civil au Droit Public”, 1945).
A Constituição brasileira de 1946 foi elaborada ao tempo em que estas idéias tomaram corpo, não no sentido de que a propriedade seja uma função social, pois que um tal conceito contraria as noções mais divulgadas e os princípios ainda seguros consagrados nos códigos de todo o mundo, em prol da concepção do domínio como direito subjetivo. Mas àquele tempo já se aceitava, e os constituintes foram bastantes sensíveis à realidade, aquilo que a meu ver deve compor a verdadeira noção elementar do domínio.
Sem deixar de ser um direito, com as características de facultas, a propriedade deve ser exercida em sentido social. É o exercício daquele direito que se subordina ao interêsse público, e a função social é integrante menos da definição do direito do que ligada ao seu exercício. Tôda vez que se esboça um conflito entre o individual e o social, entre o direito de um dono e a conveniência da coletividade, o legislador terá forçosamente de resolvê-lo neste último sentido, ainda que com sacrifício do direito subjetivo. A utilização dos bens apropriáveis estará, pois, na linha de equilíbrio entre a faculdade reconhecida ao titular e a conveniência de todos.
Já o nosso direito conhecia e disciplinava o instituto da desapropriação por necessidade ou utilidade pública, em que se encontra bem acentuado êste aspecto da linha de equilíbrio. Sempre que o poder público precisa de realizar obra no proveito geral, expropria o bem particular indenizando o dano. Sem destruir a noção de direito subjetivo ligada ao domínio, e sem atentar contra a garantia assegurada ao dominus, opera-se a coletivização do exercício do direito, sub-rogando-se a coisa no valor, com que se compensa o proprietário despojado.
O que foi inovação de nosso regime reformado em 1946 foi a desapropriação por interêsse social. A introdução da novidade em nosso Direito Constitucional Positivo se deve ao senador FERREIRA DE SOUSA, que justificou sua emenda em nome daqueles princípios defendidos pela doutrina cristã, que impõe ao proprietário certas obrigações morais. O autor afirma a função social da propriedade e exige que se lhe dê utilidade e emprêgo proveitoso ao bem comum.
Naquele equilíbrio a que me referi, deve ser ponderada a utilização do domínio no sentido social, sobreposto ao bem individual. Com êste propósito, defende o parlamentar a expropriação das terras que poderiam ser cultivadas e não o são, como “daquelas cujo domínio absoluto chega a representar um acinte aos outros homens”.
Além dêste exemplo, mais comumente lembrado, PONTES DE MIRANDA recorda as obras científicas em edição esgotada, os inventos não-utilizados.
Sem dúvida, a Constituinte de 1946 assentou um princípio que bem traduz a receptividade de nossos juristas às doutrinas mais vivas e mais atuais. Acontece que o dispositivo constitucional que abriga a inovação não se Insere entre aquelas self executing provisions da técnica publicística americana. Necessita, ao revés, de regulamentação, que a lei ordinária terá de minudenciar. E aí é que se planta o grave problema, que, estou informado, vem provocando de juristas esclarecidos e eminentes cuidados especiais. CARLOS MEDEIROS SILVA, SEABRA FAGUNDES e TEODORO ARTHOU redigiram o projeto de lei que define os casos de desapropriação por interêsse social. DARIO MAGALHÃES e ANTÔNIO VIANA DE SOUSA o debateram no Conselho Técnico Consultivo da Confederação Nacional do Comércio.
De fato a questão é difícil. O legislador ordinário terá de agir com a máxima cautela. Se fôr demasiado sovina ao delinear os casos de desapropriação por interêsse social, reduzirá a alteração do instituto expropriatório às hipóteses já consagradas da necessidade e utilidade pública. Se fôr demasiado liberal, penderá para maior inconveniente, que é a instabilidade do direito de propriedade. A natureza dêste trabalho não me permite debater o projeto.
Todos nós sabemos dos perigos que a deformação política pode causar aos Institutos. Todos nós conhecemos os males que as competições municipais provocam, atraindo para seu âmbito restrito as lutas que nascem no campo vasto das idéias gerais. Daí o perigo que se corre, de oferecer ensanchas a que se deforme em prática malsã uma instituição nascida com tão alevantados propósitos.
É certo que temos garantia constitucional para o expropriamento. É que compete ao Poder Judiciário a fixação do preço da desapropriação, e, se êste Poder, alguma vez, por uma contingência ligada às deficiências humanas, faltar ao seu mister, na normalidade de sua conduta entretanto está a segurança de seu equilíbrio. E, conseqüentemente, a desapropriação por necessidade ou utilidade pública como a por interêsse social, apreciada no que é sujeito ao Judiciário, por um poder estranho ao âmbito dos debates, forçosamente levará à justiça do veredicto.
A Constituição federal estabelece a obrigatoriedade de ser a indenização prévia, justa e em dinheiro. Daí a garantia de que o expropriado não sofrerá a espoliação do bem do seu domínio. E a conduta judiciária tem-se mantido firme numa interpretação severa da lei de desapropriações, reputando inconstitucional o dispositivo legal que estabelecia a aferição do preço contemporânea do ato expropriatório.
4 – Restrições ao direito de propriedade
Restrição ao direito de propriedade nós encontramos também na legislação protetora de nosso patrimônio histórico e artístico, proibindo a demolição e a modernização de prédios e monumentos existentes tanto em cidades consideradas monumento histórico (Saberá, Ouro Prêto, etc., em Minas Gerais), como também aquêles que se encontram inscritos no tombamento monumental, nas demais cidades, como o Rio de Janeiro, por exemplo.
É uma forma especial de se conceber o domínio admitindo-se que o proprietário tenha o uso e gôzo, mas tirando-se-lhe a disponibilidade da coisa. Aquêles três elementos componentes do domínio segundo a concepção romana, aquêle complexo jurídico – jus utendi, fruendi et abutendi – perde uma das faculdades, mas continua sendo domínio; restrito, porém domínio.
A crise de habitações, ocorrida durante a segunda guerra mundial, provocou a intervenção legislativa no direito do contrato de maneira mais vasta do que já vinha fazendo e provocou, com uma legislação chamada de emergência, o congelamento dos preços e a fixação do locatário no imóvel alugado.
O movimento, analisado no seu conteúdo sociológico e retratado em suas linhas gerais, traduz bem o sentido de proteção que COLIN et CAPITANT denominaram de “movimento paternalista” do direito de nosso tempo.
Fere-se um combate entre dois princípios, ou melhor, entre duas tendências: o individualismo que inspirou o movimento codificador do século passado, a que o Código de 1916 não pôde escapar, e o movimento de socialização que orienta os rumos da legislação neste século, a que o nosso direito adere francamente.
Em um modesto trabalho, “Lesão nos Contratos Bilaterais”, tive ensejo de apontar a repercussão dêste combate sôbre o direito do contrato, evidenciando que o princípio da ordem pública vem cada vez mais superando os cânones da autonomia da vontade como expressão da liberdade de contratar, e o da fôrça obrigatória do ajuste.
Aqui eu saliento a repercussão desta luta no direito de propriedade. Repercussão profunda, embora menos aparente, e, por isso mesmo, de conteúdo mais grave para a modelação do direito do futuro.
Numa simples proposição que o homem da rua, notadamente o pequeno proprietário, a todo instante repete, está um aforisma de enorme alcance social. Êle não se conforma em que o legislador retire a livre disponibilidade da coisa; êle não admite que a lei restrinja o gôzo do bem ao fixar o aluguel; êle não tolera que o ordenamento jurídico se oponha a que se use livremente a sua casa, permitindo-lhe o direito de retomada apenas quando se esboça entre o dono do prédio e o inquilino o conflito de necessidades. E exclama revoltado que então não é mais dono.
O domínio existe, mas mudou de roupa, transformou-se de aspecto. Alterou a aparência. Como a nossa geração é que assiste a estas transformações, ainda não se conformou com a idéia de que a propriedade, que reflete um conceito assentado e tradicional, possa estar em tal estado subvertida.
O que houve, porém, foi apenas uma transformação, consagrada na linha de evolução do individual para o social, como outras evoluções já suportou o domínio do passado alterando o sentido de uma palavra e o conteúdo de um instituto.
*
Segundo a doutrina construída pelos glosadores, em raciocínio equívoco sôbre textos pouco claros do “Digesto”, construiu-se uma doutrina sôbre o aproveitamento do subsolo e do espaço aéreo, que tanto tem de sistemática quanto de inexata. Com a fórmula atribuída a CINO DE PISTOIA (cf. SÁ PEREIRA) – cujus est sotum, ejus est usque ad coelum, usque ad inferos – estabeleceu-se a projeção dominical acima e abaixo da possibilidade econômica, concentrou-se o individualismo da propriedade na sistematização doutrinária de um domínio sem correspondência real.
Nosso Código situou bem o problema, estendendo o domínio sôbre o espaço aéreo e subsolo dentro do critério limitativo da utilidade.
Mas a economia nacional não pode, mesmo com êste sentido, aceitar a projeção vertical da propriedade. A riqueza da nação há de se integrar das reservas minerais do subsolo, que é hoje destacado da propriedade do solo, desde os Códigos de Minas até a disposição especial da Carta de 1946, que considera distinta da do solo para efeito de exploração e aproveitamento industrial a propriedade das minas e riquezas do subsolo, como a das quedas d’água mobilizáveis para o potencial elétrico.
De novo sentimos o conteúdo do domínio mais reduzido. O proprietário de um fundo rural, sem deixar de ser dono, vê-se despojado da jazida mineral do subsolo ou da cachoeira que aciona turbina elétrica, pela razão de que o interêsse coletivo se sobrepõe ao seu individual, e uma extensão social do direito não comporta o egocentrismo da concepção romana de proprietas.
Garantia da propriedade e dos direitos individuais
A mesma inspiração que retira da apropriação individual a riqueza do subsolo; que põe fora de disposição o monumento artístico ou histórico; que institui a desapropriação do bem que passa ao domínio público e se torna útil à coletividade; que restringe a faculdade utendi e fruendi através dá lei de inquilinato ou de proteção ao fundo de comércio; orienta o legislador no sentido de obrigar a vender. Constitui, na verdade, crime contra a economia popular, punido com prisão, sonegar mercadoria ou recusar vendê-la a quem esteja em condições de comprá-la a pronto pagamento.
Aí está outro atentado contra a faculdade de disposição, que já não se acha mais condicionada à conveniência, ao interêsse e muito menos à liberdade do proprietário. A lei, sob pena de prisão, impõe a obrigação de vender, e, desta forma, reduz, no conjunto das faculdades próprias do domínio, a que diz respeito à disposição, que se sujeita à necessidade do maior número.
Com o mesmo propósito, e na mesma linha de restrições, é proibido celebrar ajuste para majorar preços ou monopolizar mercados.
Desta resenha rápida em que focalizamos os principais atentados contra a concepção clássica de propriedade e as restrições mais graves impostas ao domínio, resta-nos, concluindo, extrair a conseqüência e precisar em que consiste a característica de evolução do direito de propriedade em nossos dias.
Continua existindo a propriedade privada? Como se conciliam tôdas estas restrições com o conteúdo do direito subjetivo e com a sujeição da coisa ao dominus, que ela traduz?
Uma concepção nova de propriedade surge, erigida em função social. Os bens são dados aos homens, que devem gozar na sociedade uma função que corresponde a esta concessão. O exercício da propriedade tem por limite o cumprimento destes deveres e o desempenho de sua função. Se um indivíduo explora o bem de seu domínio fora desta órbita, afronta um dever superior e sai da linha de conduta compatível com a organização social (veja-se PLANIOL, RIPERT et BOULANGER, “Traité Elémentaire”, I, nº 2.704, página 915).
Esta posição do domínio não constitui apenas uma concepção nova, defendida pelos teoristas, e jacente no plano doutrinário. Ao revés, introduziu-se em nosso ordenamento jurídico, e não tem outro sentido o disposto no art. 147 da Constituição federal, ao enunciar que “o uso da propriedade está condicionado ao bem-estar social”, e ao permitir que o legislador, mediante a desapropriação, promova “a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos”.
O inciso constitucional é bem a expressão desta doutrina que vê na propriedade uma função social, e o observa com justeza o Prof. TEMÍSTOCLES BRANDÃO CAVALCÂNTI (“A Constituição Federal Comentada”, III, pág. 303), doutrina a que eu adiro com a restrição que apontei, fazendo incidir a socialização antes sôbre o exercício do que sôbre a concepção do direito.
Mas, não obstante esta concepção, a propriedade continua um direito, é individual e de natureza privada. A legislação que impõe limitações ao seu exercício, condicionando-a ao bem-estar da coletividade, não lhe retira a característica de direito privado, tal qual o Direito Romano, reconhecendo e proclamando as restrições impostas pelo direito de vizinhança, por exemplo, definia o domínio como individual.
O que se pode apontar como requisito da conceituação privatística da propriedade é o reconhecimento da liberdade individual nos três momentos fundamentais de sua existência: a aquisição, o uso e a disposição. Todo cidadão tem em tese direito à aquisição dos bens de que lhe aprouver apropriar-se. O Estado, por conveniência ou para defesa de sua integridade, apenas por exceção põe fora do comércio alguns bens, declarando-os inapropriáveis. No seu conjunto, e como regra geral, as riquezas são suscetíveis de sujeitar-se ao indivíduo.
Todo cidadão, em tese, tem direito de se utilizar de seus bens, nos misteres normais a que se destinam, sem a interferência do poder público. Êste intervém quando a utilização da riqueza atenta contra o interêsse da coletividade. Se o Estado necessitar do bem privado, e quando pretender o cumprimento da sua melhor distribuição, terá o direito de fazê-lo, mas sujeitando-se a reembolsar o dono pelo equivalente da coisa.
Todo cidadão tem, em tese, o direito de dispor de seu patrimônio, tanto por ato entre vivos como para depois de sua morte, e, se a lei embaraça ou mesmo proíbe certas disponibilidades, é em caráter igualmente excepcional, para tão reduzida categoria de bens que não desfigura o conjunto.
Eis por que, em conclusão, sustento a sujeição do direito de propriedade, em nosso país, a determinados critérios limitativos em benefício da coletividade, que não chegam contudo a romper com a sua estrutura no limite da garantia individual e do direito privado.
_________
Notas:
* N. da R.: Conferência pronunciada no Palácio do Comércio, em Fortaleza, Ceará, no dia 21 de outubro de 1953, por ocasião do I Congresso Nacional de Ensino Jurídico.
LEIA TAMBÉM O PRIMEIRO VOLUME DA REVISTA FORENSE
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 1
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 2
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 3
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 4
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 5
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 6
NORMAS DE SUBMISSÃO DE ARTIGOS
I) Normas técnicas para apresentação do trabalho:
- Os originais devem ser digitados em Word (Windows). A fonte deverá ser Times New Roman, corpo 12, espaço 1,5 cm entre linhas, em formato A4, com margens de 2,0 cm;
- Os trabalhos podem ser submetidos em português, inglês, francês, italiano e espanhol;
- Devem apresentar o título, o resumo e as palavras-chave, obrigatoriamente em português (ou inglês, francês, italiano e espanhol) e inglês, com o objetivo de permitir a divulgação dos trabalhos em indexadores e base de dados estrangeiros;
- A folha de rosto do arquivo deve conter o título do trabalho (em português – ou inglês, francês, italiano e espanhol) e os dados do(s) autor(es): nome completo, formação acadêmica, vínculo institucional, telefone e endereço eletrônico;
- O(s) nome(s) do(s) autor(es) e sua qualificação devem estar no arquivo do texto, abaixo do título;
- As notas de rodapé devem ser colocadas no corpo do texto.
II) Normas Editoriais
Todas as colaborações devem ser enviadas, exclusivamente por meio eletrônico, para o endereço: revista.forense@grupogen.com.br
Os artigos devem ser inéditos (os artigos submetidos não podem ter sido publicados em nenhum outro lugar). Não devem ser submetidos, simultaneamente, a mais do que uma publicação.
Devem ser originais (qualquer trabalho ou palavras provenientes de outros autores ou fontes devem ter sido devidamente acreditados e referenciados).
Serão aceitos artigos em português, inglês, francês, italiano e espanhol.
Os textos serão avaliados previamente pela Comissão Editorial da Revista Forense, que verificará a compatibilidade do conteúdo com a proposta da publicação, bem como a adequação quanto às normas técnicas para a formatação do trabalho. Os artigos que não estiverem de acordo com o regulamento serão devolvidos, com possibilidade de reapresentação nas próximas edições.
Os artigos aprovados na primeira etapa serão apreciados pelos membros da Equipe Editorial da Revista Forense, com sistema de avaliação Double Blind Peer Review, preservando a identidade de autores e avaliadores e garantindo a impessoalidade e o rigor científico necessários para a avaliação de um artigo.
Os membros da Equipe Editorial opinarão pela aceitação, com ou sem ressalvas, ou rejeição do artigo e observarão os seguintes critérios:
- adequação à linha editorial;
- contribuição do trabalho para o conhecimento científico;
- qualidade da abordagem;
- qualidade do texto;
- qualidade da pesquisa;
- consistência dos resultados e conclusões apresentadas no artigo;
- caráter inovador do artigo científico apresentado.
Observações gerais:
- A Revista Forense se reserva o direito de efetuar, nos originais, alterações de ordem normativa, ortográfica e gramatical, com vistas a manter o padrão culto da língua, respeitando, porém, o estilo dos autores.
- Os autores assumem a responsabilidade das informações e dos dados apresentados nos manuscritos.
- As opiniões emitidas pelos autores dos artigos são de sua exclusiva responsabilidade.
- Uma vez aprovados os artigos, a Revista Forense fica autorizada a proceder à publicação. Para tanto, os autores cedem, a título gratuito e em caráter definitivo, os direitos autorais patrimoniais decorrentes da publicação.
- Em caso de negativa de publicação, a Revista Forense enviará uma carta aos autores, explicando os motivos da rejeição.
- A Comissão Editorial da Revista Forense não se compromete a devolver as colaborações recebidas.
III) Política de Privacidade
Os nomes e endereços informados nesta revista serão usados exclusivamente para os serviços prestados por esta publicação, não sendo disponibilizados para outras finalidades ou a terceiros.
LEIA TAMBÉM: