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Anderson Schreiber

Anderson Schreiber

03/04/2019

Em 4 de março deste ano, a Estação Primeira de Mangueira, uma das escolas de samba mais tradicionais do país, apresentou na Marquês de Sapucaí o enredo “História para ninar gente grande”, em que homenageou diferentes heróis brasileiros “esquecidos” por nossa historiografia oficial. Ganharam vida na Avenida mulheres que foram exemplos de luta e resistência em diferentes momentos da história do Brasil, desde Dandara – guerreira negra do período colonial brasileira, mãe de três filhos e esposa de Zumbi dos Palmares, que se suicidou em fins do século XVII, atirando-se a um abismo para não voltar à condição de escrava – até Marielle Franco, socióloga, ex-ambulante, “cria da Maré” (como ela gostava de dizer), mãe de Luyara e vereadora eleita pelo Rio de Janeiro, executada a tiros no bairro do Estácio em 14 de março de 2018. Separadas por um longo arco temporal, ambas as mulheres, negras, lutaram pela efetiva proteção de direitos fundamentais e da igualdade racial, outrora negados até mesmo pela ordem jurídica formal e, hoje, reconhecidos formalmente, mas ainda distantes de efetiva proteção na realidade cotidiana das camadas economicamente mais pobres da população brasileira.

Há muito Direito Civil no desfile da Mangueira. Há a luta contra a escravidão, que tomava seres humanos como bens, objetos do direito de propriedade alheio. A ordem jurídica brasileira albergou, como se sabe, a exploração humana por tanto tempo que o Brasil acabou sendo um dos últimos países a pôr fim à escravidão. E, embora a Lei Áurea, de 1888, seja sempre lembrada pelos livros de história como marco final da escravidão entre nós, o marco normativo mais relevante talvez seja a Lei do Ventre Livre, promulgada em 1871, que já completava 16 anos a Lei Áurea foi promulgada. Além disso, nem a Lei Áurea, nem a Lei do Ventre Livre, lograram assegurar igualdade efetiva entre negros e brancos na sociedade brasileira, como, de resto, ainda hoje inexiste, bastando para tanto visitar penitenciárias e favelas, de um lado, e grandes empresas, de outro lado. O abismo ainda é imenso e justifica ações afirmativas que têm sido adotadas nacional e localmente.

No Rio de Janeiro, por exemplo, que foi um dos maiores portos negreiros do mundo, tendo recebido mais de um milhão de escravos na região do Cais do Valongo, foram promulgadas, nos últimos anos, diferentes leis implementando ações afirmativas. A pioneira dentre essas leis, a Lei 3.708, de 2001, instituiu cotas para o acesso às universidades estaduais. Editou-se, em 2008, nova lei que vigorou por dez anos. Sua constitucionalidade foi contestada no Tribunal de Justiça, que, em 2009, confirmou, por maioria de votos, a validade da lei. No ano passado, o prazo foi renovado por mais dez anos. Tive a honra de participar da comissão de avaliação do impacto da lei de cotas no ensino público fluminense e as conclusões alcançadas no âmbito das diferentes universidades envolvidas desmontam mitos habituais, como a crença de que alunos cotistas têm pior desempenho que não-cotistas ou que a evasão dos bancos universitários seria maior entre os alunos cotistas. Os dados e estatísticas mostram o oposto: “Os dados analisados evidenciaram que, ao contrário do que sugeriam os críticos do sistema de cotas, temerosos de uma queda generalizada da qualidade do ensino público universitário no Estado, o desempenho dos cotistas é praticamente igual ao desempenho dos não-cotistas. (…) Outra ideia que não foi confirmada pela análise dos dados é a de que a evasão seria maior entre os cotistas (…) Os dados analisados revelam, muito ao contrário, que a taxa de evasão é maior entre os não-cotistas que entre os cotistas.” (disponível no site da PGE-RJ:www.pge.rj.gov.br). De fato, a experiência diária na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, pioneira na implantação do sistema de cotas no país, mostra como ações afirmativas podem ser transformadoras da realidade social e contribuir para que a Universidade pública assuma o papel que lhe é próprio: a democratização do ensino e da pesquisa.

Voltando ao desfile da Mangueira, chamava atenção na Avenida uma passista que desfilava com uma carta em mãos. Representava Esperança Garcia, mulher negra, escravizada, que, em 1770, com apenas 19 anos, denunciou por escrito em carta ao Governador da Capitania de São José do Piauí as violências que sofria e testemunhava em uma fazenda localizada a cerca de 300 km da atual Teresina, pedindo para que fosse enviada de volta à Fazenda dos Algodões, onde vivia com seu marido e de onde havia sido tirada. Quase 250 anos depois, Esperança Garcia recebeu do Conselho Estadual da OAB-PI o título simbólico de primeira advogada do Estado, em ata histórica cuja cópia me foi enviada recentemente por Gabriel Furtado, brilhante Professor da Universidade Federal do Piauí.

Em meio a tantos exemplos de luta pelos direitos fundamentais do ser humano, a Estação Primeira sagrou-se campeã do carnaval carioca de 2019, com 270 pontos, o que equivale à nota máxima em todos os quesitos do carnaval carioca. No dia da vitória, a quadra da escola, com queda de luz e tudo, recebeu a viúva de Marielle Franco. Sua execução e de seu motorista, Anderson Gomes, completará um ano no próximo dia 14. Tragédias não se comparam porque não há uma morte pior que a outra. Toda morte humana é extrema, dolorosa e insuperável. A dor de cada um não admite medição ou grandeza. Há, todavia, pessoas que, transcendendo o drama humana que circunda sua própria extinção, tornam-se, por sua trajetória e pelo sentimento que inspiram em outros, símbolos de luta e resistência, como bem demonstrou o vitorioso enredo da Mangueira.

Concluo esse texto em um dia especial: 8 de março, Dia Internacional da Mulher. Há um ano atrás, o realizava um congresso em que palestrantes, todas mulheres, de variadas trajetórias, compartilhavam suas experiências e lições acerca da (falta de) efetividade dos direitos da mulher na sociedade brasileira. Uma das convidadas, a Desembargadora Ivone Ferreira Caetano, ela própria um símbolo de luta por igualdade de gênero e igualdade racial, após ouvir o relato de suas colegas, lembrou que, embora toda mulher sofra, as mulheres negras ainda sofrem mais. Gostaria, neste dia, de enviar uma mensagem de esperança e otimismo, dizendo que de lá para cá algo melhorou. Não pude. Renovam-se, no nosso cotidiano, os exemplos de abusos e agressões a mulheres. O samba da Mangueira não é apenas, nesse sentido, a recuperação histórica de personagens esquecidos por nossos livros e museus, mas um grito de revolta contra uma história que se repete, dia após dia, desafiando as noções mais elementares do direito e a consciência de qualquer um que acredite nas leis e na justiça.

Fonte: Carta Forense


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