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Resoluções do Conama: rumo ao estado de coisas inconstitucional ambiental
02/10/2020
No início desta semana, em sessão convocada e com pauta divulgada às pressas pelo Ministro do Meio Ambiente poucos dias antes, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) deliberou no sentido da revogação das Resoluções n. 284/2001 (sobre o licenciamento ambiental de empreendimentos de irrigação), n. 302/2002 (sobre os parâmetros, definições e limites de áreas de preservação permanente de reservatórios artificiais e o regime de uso do entorno) e n. 303/2002 (sobre os parâmetros, definições e limites de áreas de preservação permanente).[1]
Uma semana após a realização — nos dias 21 e 22 de setembro — da emblemática audiência pública do Supremo Tribunal Federal convocada pelo Ministro Luis Roberto Barroso no Caso Fundo Clima, o Conama deu mais um passo rumo à derrocada da política ambiental brasileira e à caracterização do “estado de coisas inconstitucional em matéria ambiental”, como suscitado na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 708/DF.
As resoluções do Conama têm expressado a consolidação progressiva do regime jurídico e da política ecológica no Brasil, acompanhando o avanço da legislação ambiental desde o início da Década de 1980, ressaltando que o Conama foi criado justamente pela Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81).
A natureza multidisciplinar da temática ecológica torna indispensável o diálogo e cooperação com outras áreas do conhecimento para a consolidação do marco normativo regulatório, o que historicamente tem sido feito pelo Conama por meio das suas resoluções editadas por força do comando normativo expresso extraído do art. 6º, II da Lei 6.938/1981, como órgão “consultivo e deliberativo” do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama) incumbido, entre outras funções, de “deliberar, no âmbito de sua competência, sobre normas e padrões compatíveis com o meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial à sadia qualidade de vida”.
O dispositivo em questão atribui ao Conama o chamado “poder normativo” em matéria ambiental, o qual é reforçado pelo art. 8º do mesmo diploma legislativo.[2] Sabe-se que o papel do Conama não é o de legislar em sentido estrito — papel reservado ao parlamento —, mas preencher o espaço normativo e regulatório necessário para a mediação entre a lei e a sua execução — por exemplo, a elaboração de padrões técnicos em determinada área ambiental —, sempre respeitando a vontade e as balizas normativas ditadas pelo legislador (constitucional e infraconstitucional).
Nesse sentido, as resoluções do Conama são fontes normativas do Direito Ambiental[3] e integram o respectivo marco jurídico, possuindo o status de ato normativo abstrato e genérico similar à legislação em sentido estrito. Além de ato normativo geral e abstrato subordinado a? observância dos parâmetros normativos fixados na ordem constitucional e na legislação ambiental infraconstitucional, as resoluções do Conama são dotadas de caráter técnico nas diversas matérias regulamentadas, inclusive com conteúdo não jurídico indispensável à regulação, cumprindo um papel absolutamente necessário a? implementação da Política Nacional do Meio Ambiente.
Tal entendimento pode ser ilustrado à luz da jurisprudência recente do STF, ao reconhecer que as resoluções do Conama constituem objeto do controle concentrado ou abstrato de constitucionalidade, como destacado pelo Ministro Edson Fachin no julgamento da ADI 5547/DF, julgado pelo Plenário Virtual do STF, em 22/9/2020, interposto pela PGR em face da Resolução n. 458/2013 do Conama, a qual dispõe sobre o procedimentos para licenciamento ambiental em assentamentos de reforma agrária. Segundo o Ministro Edson Fachin, “tal qual o poder normativo das agências, a Resolução impugnada, editada no exercício da competência do art. 8º, I, da Lei n.º 6.938/81, é ato normativo primário, dotada de generalidade e abstração suficientes a permitir o controle concentrado de constitucionalidade”.[4]
É absolutamente errôneo o entendimento sustentado por alguns de que as Resoluções 302/2002 e 303/2002 do Conama teriam sido derrogadas pela legislação ambiental superveniente, como, por exemplo, a Lei da Mata Atlântica (Lei 11.428/2006) e o Novo Código Florestal (Lei 12.651/2012). O Superior Tribunal de Justiça consolidou entendimento no sentido da vigência e validade das Resoluções n. 302 e n. 303 e sua aplicação no âmbito da legislação florestal. A título de exemplo, tanto a Primeira quanto a Segunda Turma do STJ já se manifestaram sobre a legalidade da Resolução 303/2002 do Conama, entendendo que “o órgão não exorbitou de sua competência ao fixar a faixa de 300 metros medidos a partir da linha de preamar máxima como restritiva ao direito de propriedade”, tratando-se, conforme assinalado pelo Ministro Antonio Herman Benjamin, “de texto normativo recepcionado pelo regime do Código Florestal de 2012”.[5]
Na estrutura do federalismo cooperativo ecológico estabelecido pela Constituição Federal de 1988 (CF/1988) e consolidado na jurisprudência do STF, existe o que se pode denominar de um “condomínio legislativo” no âmbito do exercício da competência legislativa concorrente pelos diferentes entes federativos em matéria ambiental (art. 24, VI). A União, por essa ótica, é responsável pela edição de “normas gerais”, ao passo que cabe aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a elaboração de “normas complementares”, de acordo com as suas peculiaridades, respectivamente, regionais e locais.
A CF/1988, por sua vez, impõe normativamente a cooperação entre os diferentes entes federativos na tessitura do marco legislativo ecológico, reservando a cada um deles espaço autônomo para o exercício da competência legislativa em matéria ambiental. A “norma geral”, por essa ótica, poderia ser compreendida como um “piso normativo mínimo” estabelecido pela União, vinculando os demais entes federativos e vedando a sua atuação legislativa para “aquém” de tal patamar protetivo mínimo. Isso, por outro lado, não impede os demais entes federativos a irem “além”, ou seja, estabelecerem padrões mais rígidos de proteção ecológica no exercício da sua competência legislativa concorrente em matéria ambiental.
Ademais, tal cooperação no exercício da competência legislativa concorrente dos entes federativos é delimitada por algumas premissas normativas ou princípios reitores, entre os quais, podemos destacar o princípio da proibição de retrocesso, princípio “in dubio pro natura” e o dever de progressividade ou aprimoramento em relação à legislação ambiental, com o objetivo de assegurar um marco jurídico mais protetivo e rígido.
De acordo com o que foi referido anteriormente, como já decidiu o STF em inúmeros julgados, é legitima a atuação dos entes federativos menores (no caso, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios) no sentido de legislar supletivamente em temas ou aspectos não tratamos pela União no âmbito da “norma geral”, bem como legislar concorrentemente à norma geral para estabelecer um standard ou patamar legislativo mais protetivo ou rígido.
As resoluções do Conama, dado o poder normativo atribuído pela legislação ambiental ao referido órgão do Sisnama, também devem ser compreendidas nesse cenário. Ou seja, na medida em que as resoluções do Conama estabelecem um marco regulatório a ser seguido pelo poder público e por particulares de forma geral e abstrata, seguindo as diretrizes normativas no marco constitucional e infraconstitucional em matéria ambiental, as resoluções também integram o nosso “patrimônio jurídico ecológico” e o que podemos denominar de “bloco normativo ambiental”, servindo, assim, de parâmetro para o controle de ações e omissões do Estado e de particulares quando em desacordo com os seus preceitos normativos.
Como corolário lógico de tal entendimento, as resoluções do Conama também estão blindadas contra retrocessos despidos de justificativas e fundamentos legítimos do ponto de vista jurídico, técnico e fático e que venham a desguarnecer de proteção a integridade ecológica nos diversos temas por elas regulamentados, como verificado no caso das Resoluções n. 284/2001, n. 302/2002 e n. 303/2002.
A revogação das Resoluções n. 284/2001, n. 302/2002 e n. 303/2002, além de não apresentar qualquer justificativa plausível, estabelece verdadeiro vácuo jurídico de proteção em relação a temas absolutamente sensíveis e nucleares do regime jurídico ecológico brasileiro, como é o caso dos recursos hídricos e das áreas de preservação permanente.
A título de exemplo, destaca-se a absoluta fragilização dos “ecossistemas de restinga e mangue”, até então salvaguardados pela Resolução n. 302/2002, relativamente à faixa de 300 metros a partir da linha preamar máxima. Isso implica igualmente vulneração de áreas remanescentes do Bioma da Mata Atlântica localizados em tais ecossistemas, o mais impactado de todos os biomas continentais brasileiros, com apenas 12,4% da sua cobertura vegetal original, bem como coloca em risco de extinção espécies da fauna e da flora ameaçadas (em desacordo com a regra constitucional do art. 225, § 1º, VII, da CF/1988), as quais têm como seu habitat e dependem diretamente de tais ecossistemas, como, por exemplo, espécies de tartarugas marinhas (a desova é feita em tais ecossistemas), o peixe-boi, as aves migratórias, entre inúmeras outras. As revogações ensejam o que se pode denominar de um estado de “lassez faire ambiental” em tais matérias.
Não houve sequer tentativa de adaptação ou revisão das resoluções, o que sempre é possível, desde que amparado em decisões fundamentadas e lastreadas pelo debate e participação de todos os integrantes do Conama (inclusive das entidades da sociedade civil). A regulamentação normativa das Resoluções n. 284/2001, n. 302/2002 e n. 303/2002 foi simplesmente retirada do “mundo jurídico”, sem que nada fosse colocado no seu lugar.
É justamente aqui que outro ponto importante deve ser considerado nessa discussão, relativamente à deficiência da participação da sociedade civil no órgão colegiado, colocando em cheque a legitimidade da decisão tomada pelo Conama na última segunda-feira. A composição do Plenário do Conama foi recentemente alterada por meio do “polêmico” Decreto 9.806/2019, o qual alterou o art. 4º do Decreto 99.274/90.
Segundo o novo diploma, o Plenário do Conama passou dos anteriores 96 membros a contar com apenas 23 membros, excluindo-se no novo regramento, por exemplo, a participação e vagas com direito a voto antes reservadas à comunidade científica, às populações indígenas e tradicionais, aos órgãos de classe e aos movimentos sindicais. Igualmente, exclui-se a previsão de participação sem direito a voto de representante dos Ministérios Públicos Estaduais.
Além disso, criou-se uma espécie de “loteria” para a escolha dos representantes da sociedade civil. O § 10 do art. 4º do Decreto 99.274/90, passou a estabelecer que os quatro representantes de entidades ambientalistas de âmbito nacional, a que se refere o inciso VII do caput do mesmo dispositivo, “terão mandato de um ano e serão escolhidos por sorteio anual, vedada a participação das entidades ambientalistas detentoras de mandato”. O dispositivo prevê, como mencionado anteriormente, o estabelecimento de uma espécie de “loteria” totalmente aleatória para a escolha das entidades ambientalistas, o que permite, por exemplo, que entidades ambientalistas inexperientes e sem representatividade em âmbito nacional venham a ocupar tais vagas.
O novo regramento previsto para a composição do Conama tem nítido propósito de desarticular e enfraquecer a participação da sociedade civil organizada no âmbito do Conama, criando óbices a que as entidades ambientalistas mais representativas e atuantes em âmbito nacional, escolhidas democraticamente pelo coletivo de entidades ambientalistas e com maior força e capacidade de articulação política e técnica, ocupem as vagas no Conama.
Imagine-se, em caráter meramente exploratório, se os cargos políticos eletivos nos Poderes Legislativo e Executivo fossem ocupados por meio de sorteio a partir de uma lista apresentada pelos partidos políticos!! Não é muito diferente o que estabelece o novo regramento para a composição do Plenário do Conama. Por fim, a limitação ao mandato de um ano e vedação expressa de recondução previstos no mesmo dispositivo também reforça esse cenário, impedindo um trabalho contínuo e articulado das entidades ambientalistas junto ao Conama.
A alteração na composição do Conama levada a efeito pelo Decreto 9.806/2019 é flagrantemente inconstitucional, como suscitado pela Procuradoria-Geral da República (PGR) na ADPF 623 ajuizada no mês de setembro de 2019 perante o STF, sob a relatoria da Ministra Rosa Weber e ainda pendente de decisão sobre o pedido cautelar, descontruindo praticamente quatro décadas de desenvolvimento e aprimoramento progressivo da Política Nacional do Meio ambiente e do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama). Segundo a PGR, as modificações, que reduziram o número de assentos destinados à sociedade civil no Conama, violam o direito de participação popular direta e a proibição ao retrocesso institucional.
Não há dúvida que tal situação fere de morte, entre outros pilares do regime jurídico-constitucional ecológico, o núcleo essencial do direito fundamental ao meio ambiente (e sua dimensão organizacional e procedimental, expressa por meio dos denominados “direitos ambientais de participação”6), o princípio da participação pública em matéria ambiental e a garantia constitucional da proibição de retrocesso ecológico. Isso, por óbvio, também coloca sob suspeita a legitimidade das decisões tomadas pelo Conama, como verificado no caso da revogação das Resoluções n. 284/2001, n. 302/2002 e n. 303/2002.
Ressalta-se, por fim, que o princípio da proibição de retrocesso, em situações que envolvam danos ecológicos irreversíveis, como não há dúvida estar caracterizado, por exemplo, na revogação da Resolução n. 303, notadamente em relação à área de preservação permanente caracterizada na faixa de 300 metros a partir da linha preamar máxima, opera de modo absoluto ou como regra jurídica, notadamente por força direta do comando constitucional que impõe os deveres estatais de proteção dos “processos ecológicos essenciais” e das “espécies da fauna e da flora ameaçados de extinção” (respectivamente, incisos I e VII, do § 1º da CF/1988).
Ao STF, como guardião da Constituição, recai o dever constitucional de, em caráter de urgência, fazer valer a força normativa da Constituição Ecológica de 1988 e do direito fundamental de todos viver em um meio ambiente íntegro, sadio e seguro, de modo a reverter o “estado de coisas inconstitucional em matéria ambiental” em franco agravamento no Brasil, tal como suscitado na ADPF 708/DF!
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[1] A Juíza Federal Titular da 23ª Vara Federal do Rio de Janeiro suspendeu, em 29.09.2020 (um dia após a deliberação do CONAMA), a revogação das Resoluções 302 e 303, sob o fundamento de risco de “danos irrecuperáveis ao meio ambiente”.
[2] “Art. 8º Compete ao CONAMA: I – estabelecer, mediante proposta do IBAMA, normas e critérios para o licenciamento de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras, a ser concedido pelos Estados e supervisionado pelo IBAMA; VI – estabelecer, privativamente, normas e padrões nacionais de controle da poluição por veículos automotores, aeronaves e embarcações, mediante audiência dos Ministérios competentes; VII – estabelecer normas, critérios e padrões relativos ao controle e à manutenção da qualidade do meio ambiente com vistas ao uso racional dos recursos ambientais, principalmente os hídricos”. Na doutrina, v. WEDY, Gabriel. Regulação e política nacional do meio ambiente. In: FONSECA, Reynaldo Soares da; COSTA, Daniel Castro Gomes da. Direito regulatório: desafios e perspectivas para a Administração Pública. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2020, p. 261
[4] O mesmo entendimento, inclusive diferenciando o “poder normativo” do “poder regulamentar”, pode ser identificado na jurisprudência do STF no julgamento da ADI 4874/DF, envolvendo resolução da Agencia Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA ): STF, ADI 4874/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Rosa Weber, j. 01.02.2018.
[5] STJ, REsp 1.544.928/SC, 2ª Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 15.09.2016.
[6] Os “direitos ambientais de participação” – acesso à informação, participação pública na tomada de decisão e acesso à justiça – foram consagrados no Princípio 10 da Declaração do Rio (1992), na Opinião Consultiva n. 23/2017 sobre “Meio Ambiente e Direitos Humanos” da Corte Interamericana de Direitos Humanos e, mais recentemente, no Acordo Regional de Escazú para América Latina e Caribe sobre Acesso à Informação, Participação Pública na Tomada de Decisão e Acesso à Justiça em Matéria Ambiental (2018).