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Conama, racismo ambiental e justiça climática

Paulo de Bessa Antunes
29/12/2025
O Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente) aprovou a Resolução 26.916/2025 [1] que define princípios e diretrizes para a incorporação da justiça climática e do combate ao racismo ambiental nas políticas e ações ambientais e dá outras providências. A norma tem ampla abrangência e tem sido saudada como um avanço pelas mais respeitáveis organizações não governamentais ambientalistas.
“Em meio a retrocessos ambientais graves que marcaram o Congresso Nacional nas últimas semanas, com o desmonte do processo de licenciamento ambientalno Brasil, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) aprovou a Resolução 26.916/2025, primeira norma brasileira a estabelecer princípios e diretrizes para que justiça climática e racismo ambiental sejam considerados na formulação de políticas públicas.
O Greenpeace Brasil comemora a aprovação e define a resolução como um marco histórico para as políticas públicas nacionais” [2].
Resolução 26.916/2025 e o alcance do Conama
A resolução trata de uma enorme variedade de matérias, que, em sua imensa maioria, estão distantes das atribuições legais do órgão colegiado. Ela representa uma concepção expansionista do Conama que, em não poucas vezes, tem sido tratado como se fosse o “parlamento ambiental”. O conselho tem a sua composição definida pelo Decreto 11.417/2023, sendo integrado por 114 membros. A atual composição do Conama é a maior desde a sua criação, sendo uma reação à drástica redução do número de conselheiros feita pelo Decreto 9.806/2019. A redução do número de conselheiros foi julgada inconstitucional Supremo Tribunal Federal, no âmbito da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 623. Na aludida ADPF consta:
“1. O Conama é instância administrativa coletiva que cumula funções consultiva e deliberativa (art. 6º, II, da Lei n. 6.938/1981). Esse perfil funcional autoriza a sua categorização como autêntico fórum público de criação de políticas ambientais amplas e setoriais, de vinculatividade para o setor ambiental e para a sociedade, com obrigação de observância aos deveres de tutela do meio ambiente.”
A decisão do STF, com o devido respeito, ao ampliar as atribuições do Conama, legislou concretamente. Efetivamente, o artigo 6º, II da Lei 6938/1981 atribui as funções consultivas e deliberativas, “no âmbito de sua competência”. Esta não pode ir além do que lhe foi outorgado por lei formal, tendo em vista o artigo 37 da Constituição.
Como foi bem observado pela declaração do Greenpeace, a resolução é a “primeira norma brasileira a estabelecer princípios e diretrizes para que justiça climática e racismo ambiental sejam considerados na formulação de políticas públicas”, sendo, portanto, uma inovação na ordem jurídica. Por sua vez, o inciso I do artigo 6º da PNMA determina que compete ao presidente da República, com o assessoramento do Conselho de Governo, formular a “política nacional e nas diretrizes governamentais para o meio ambiente e os recursos ambientais”.
Nesse sentido, não encontra amparo na ordem jurídica a afirmação de que o Conama é “autêntico fórum público de criação de políticas ambientais amplas e setoriais, de vinculatividade para o setor ambiental e para a sociedade, com obrigação de observância aos deveres de tutela do meio ambiente”. Logo, falece competência ao Conama para determinar a inclusão de critérios e diretrizes nas políticas ambientais, haja vista que tal atribuição é do presidente da República, mediante a expedição de decreto ou outro ato normativo.
Resolução 26.916/2025 e a competência legal na PNMA
As competências legais do Conama são definidas pelo artigo 8º da Lei 6938/1981 – Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA) [3]. O dispositivo legal não atribui competência para definir critérios para as políticas ambientais, que como se sabe, são políticas públicas.
Ademais, não se pode negar que a Resolução 26.916/2025 é potencialmente capaz de causar impacto em diferentes atividades econômicas, motivo pelo qual deve ser precedida de Análise de Impacto Regulatório (AIR) que é o procedimento, a partir da definição de um problema regulatório, destinado à avaliação prévia à edição dos atos normativos, que conterá informações e dados sobre os seus prováveis efeitos, para verificar a razoabilidade do impacto e subsidiar a tomada de decisão (Decreto 10.411/2020, artigo 2º, I).
Em diversos pontos da resolução é possível ver o seu impacto sobre órgãos da administração, e.g., o artigo 3º [4] ao definir as “diretrizes da justiça climática” arrola a “criação e fortalecimento de mecanismos de fiscalização, salvaguardas e controle social, com ênfase em populações e grupos prioritários na implementação desta resolução.”
A fiscalização é uma atividade estatal que é exercida por um corpo de fiscais que, naturalmente, consomem recursos financeiros do Estado. Por outro lado, o controle social mencionado não possui um conceito normativo, motivo pelo qual afronta ao princípio da legalidade administrativa previsto no artigo 37 da CF. A participação social nas definições de políticas públicas e na sua avaliação, é matéria reservada à lei. Muito embora o STF tenha admitido o controle abstrato da constitucionalidade das Resoluções do Conama, não dotou o conselho de competência supralegal.
“2. O poder normativo atribuído ao Conama pela respectiva lei instituidora consiste em instrumento para que dele lance mão o agente regulador no sentido da implementação das diretrizes, finalidades, objetivos e princípios expressos na Constituição e na legislação ambiental. Em outras palavras, a orientação seguida pelo Administrador deve necessariamente mostrar-se compatível com a ordem constitucional de proteção do patrimônio ambiental” [5].
O mesmo se diga em relação ao apoio técnico e financeiro a inciativas e tecnologias sociais de povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e agricultura familiar. Como se verá adiante, esses temas já são objeto de políticas públicas específicas; portanto, a resolução “chove no molhado”.
Resolução 26.916/2025 e o conceito de justiça climática
Em relação a alguns aspectos do mérito da resolução, cabe registrar que o seu artigo 1º, I estabelece um “conceito normativo” de justiça climática [6], inovando na ordem jurídica.
A justiça, como se sabe, é uma das mais árduas questões filosóficas e jurídicas. A justiça climática, certamente, tem as mesmas dificuldades de definição que a justiça “em geral”. Saber o que é justo ou o que é injusto, depende de uma série de circunstâncias e crenças que não podem ser definidas a priori. Em uma sociedade plural, com pensamentos divergentes e visões distintas do que é justo, somente a lei pode definir os parâmetros mínimos do que é socialmente justo. Observe-se que o artigo 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro veda a decisão baseada conceitos abstratos [7].
Resolução 26.916/2025 e a sobreposição com políticas públicas
Entretanto, cabe considerar que, nos termos da Lei 12.187/2009, a Política Nacional de Mudança do Clima [8] tem os seus instrumentos institucionais próprios, dentre os quais, a princípio, o Conama não está incluído. Por isso, cabe aos órgãos voltados à elaboração das políticas climáticas dispor sobre os diferentes impactos causados pelas mudanças climáticas sobre os diferentes setores sociais. Na verdade, há um conjunto de normas federais, estaduais e municipais que cuidam da matéria.
A Lei 15.223/2025 que instituiu o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), em seu artigo 5º criou o Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (Condraf), “órgão colegiado integrante da estrutura básica do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, com a finalidade de propor diretrizes para a formulação e a implementação de políticas públicas estruturantes e conjunturais para o Pronaf e demais instrumentos de políticas para o desenvolvimento rural sustentável, a reforma agrária e a agricultura familiar”.
Relativamente aos povos e comunidades tradicionais, a política pública aplicável foi estabelecida pelo Decreto 6.040/2007 que estabeleceu a competência da Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), criada pelo Decreto de 13 de julho de 2006, para “coordenar a implementação da Política Nacional para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais”.
Resolução 26.916/2025 e os vícios de competência
A Resolução Conama 26.916/2025, ao pretender incorporar diretrizes de justiça climática e combate ao racismo ambiental nas políticas públicas, ultrapassa os limites legais conferidos ao órgão colegiado. Embora seus objetivos se alinhem a pautas relevantes do debate contemporâneo sobre desigualdades socioambientais, o Conama não dispõe de competência legal para inovar na ordem jurídica ou redefinir políticas públicas de caráter estruturante, atribuições que a Constituição e a legislação infraconstitucional reservam ao presidente da República, ao Congresso e aos órgãos específicos de formulação das políticas climáticas, agrárias e de desenvolvimento rural, dentre outros.
A decisão do STF na ADPF 623, ao reconhecer o Conama como espaço de deliberação de políticas ambientais, não ampliou sua competência além do arcabouço legal vigente. Assim, a criação de conceitos jurídicos inéditos — como o de justiça climática — e a imposição de obrigações diretas a órgãos da administração pública violam o princípio da legalidade administrativa e ignoram que tais matérias já são tratadas por políticas públicas consolidadas, como a Política Nacional de Mudanças Climáticas, a Política para Povos e Comunidades Tradicionais e os instrumentos destinados à agricultura familiar, dentre outros.
Dessa forma, embora o propósito de promover maior equidade socioambiental seja inegavelmente relevante, a Resolução 26916/2025 padece de vícios de competência e de conformação jurídica que limitam sua eficácia e comprometem sua validade. A promoção da justiça climática e o enfrentamento do racismo ambiental exigem instrumentos normativos sólidos, democraticamente legitimados e tecnicamente embasados, sob pena de fragilizar justamente as agendas que se pretende fortalecer.

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[1] Ainda não publicada e sob análise da Advocacia Geral da União. Disponível aqui
[2] Resolução histórica define justiça climática e racismo ambiental como diretrizes para políticas públicas. Disponível aqui
[3] Art. 8º Compete ao CONAMA: I – estabelecer, mediante proposta do IBAMA, normas e critérios para o licenciamento de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras, a ser concedido pelos Estados e supervisionado pelo Ibama; II – determinar, quando julgar necessário, a realização de estudos das alternativas e das possíveis consequências ambientais de projetos públicos ou privados, requisitando aos órgãos federais, estaduais e municipais, bem assim a entidades privadas, as informações indispensáveis para apreciação dos estudos de impacto ambiental, e respectivos relatórios, no caso de obras ou atividades de significativa degradação ambiental, especialmente nas áreas consideradas patrimônio nacional. III – (Revogado pela Lei nº 11.941, de 2009) IV – homologar acordos visando à transformação de penalidades pecuniárias na obrigação de executar medidas de interesse para a proteção ambiental; V – determinar, mediante representação do IBAMA, a perda ou restrição de benefícios fiscais concedidos pelo Poder Público, em caráter geral ou condicional, e a perda ou suspensão de participação em linhas de fiananciamento em estabelecimentos oficiais de crédito; VI – estabelecer, privativamente, normas e padrões nacionais de controle da poluição por veículos automotores, aeronaves e embarcações, mediante audiência dos Ministérios competentes; VII – estabelecer normas, critérios e padrões relativos ao controle e à manutenção da qualidade do meio ambiente com vistas ao uso racional dos recursos ambientais, principalmente os hídricos. Parágrafo único. O Secretário do Meio Ambiente é, sem prejuízo de suas funções, o Presidente do Conama.
[4] Art. 3º No âmbito desta Resolução, são diretrizes de Justiça Climática, entre outras: I – criação e fortalecimento de mecanismos de fiscalização, salvaguardas e controle social, com ênfase em populações e grupos prioritários na implementação desta resolução; II – adoção de medidas de prevenção, preparação, proteção, resposta, reconstrução e resiliência climática para regiões de risco, grupos, povos e territórios vulnerabilizados, incluindo o fortalecimento de iniciativas que busquem essas ações, tais como de brigadas comunitárias e voluntárias considerando direitos humanos e justiça socioambiental; III – apoio técnico e financeiro a iniciativas e tecnologias sociais de povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e agricultura familiar;….
[5] STF. ADPF 748. Tribunal Pleno, Relatora: Ministra Rosa Weber. Julgamento: 23/05/2022. Publicação: 05/08/2022
[6] I – justiça climática: abordagem de combate às desigualdades socioambientais e de promoção dos direitos humanos no enfrentamento da mudança do clima, em todas as suas políticas considerando especialmente os grupos vulnerabilizados, tais como povos indígenas, povos e comunidades tradicionais, agricultores familiares, pessoas negras, migrantes e deslocados, mulheres, crianças e adolescentes, idosos, pessoas com deficiência, pessoas em situação de vulnerabilidade econômica e social, trabalhadores e populações em áreas de risco climático ou contaminadas e pessoas discriminadas em virtude de gênero, raça e orientação sexual, bem como a busca de uma distribuição justa dos investimentos e do tratamento de responsabilidades históricas pela mudança do clima e da proteção de garantias e direitos fundamentais
[7] Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.
[8] Art. 7o Os instrumentos institucionais para a atuação da Política Nacional de Mudança do Clima incluem: I – o Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima; II – a Comissão Interministerial de Mudança Global do Clima; III – o Fórum Brasileiro de Mudança do Clima; IV – a Rede Brasileira de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas Globais – Rede Clima; V – a Comissão de Coordenação das Atividades de Meteorologia, Climatologia e Hidrologia