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Novos horizontes para as políticas industriais

POLÍTICAS INDUSTRIAIS

Ana Frazão

Ana Frazão

30/08/2023

Há na atualidade uma onda global atraindo vários governantes para a utilização de políticas industriais com os mais diferentes objetivos, dentre os quais se encontram aumentar a resiliência em cadeias de suprimento, incentivar tecnologias verdes e bons empregos, obter vantagens geopolíticas, reduzir a pobreza e superar a armadilha da renda média. 

Com isso, ressurge no cenário a conhecida crítica às políticas industriais, como temos observado nos Estados Unidos, em razão do último experimento norteamericano – composto pelo Inflation Reduction Act (IRA), o Chips and Science Act e o Infrastructure Investment and Jobs Act – e no Brasil diante do PAC e da política industrial defendida por Lula[1]

Entretanto, muito do debate sobre o tema ainda é excessivamente ideológico ou atrelado à visão cética de que as políticas industriais sempre representam perda de dinheiro e distorções do mercado e da concorrência. Não raro as críticas se concentram em concepções antigas das políticas industriais, associando-as necessariamente a subsídios, medidas protecionistas ou políticas que escolhem vencedores ou interferem equivocadamente no mecanismo de preços. 

Ocorre que a discussão precisa ser atualizada e ressignificada à luz das novas evidências empíricas e das recentes perspectivas que se colocam sobre a política industrial, possibilitando o enfrentamento mais maduro do tema e evitando as más compreensões que caracterizam a sua abordagem no passado. 

O que são políticas industriais?

Em primeiro lugar, é importante entender o que são as políticas industriais. Como esclarece Isabel Estevez[2], apesar das diferentes compreensões sobre o assunto, todas têm em comum o reconhecimento do governo como um ator-chave para moldar o mundo da produção – influenciando os bens e serviços que devem ser produzidos e como — de forma alinhada com propósitos públicos. Mario Cimoli, Giovanni Dosi e Joseph Stiglitz vão até além, concebendo-as como uma verdadeira engenharia institucional que molda a natureza dos atores econômicos, os mecanismos de mercado e suas regras, bem como os limites entre o que é governado pelas interações de mercado e o que não é[3]

Tais definições já antecipam a amplitude das políticas industriais, o que é corroborado pela experiência histórica, que demonstra que tais medidas nunca se reduziram efetivamente à indústria. Assim como falar em política industrial no século 19 era falar igualmente de política comercial, falar em política industrial hoje é falar da coordenação entre Estado e mercados em todos as áreas da atividade econômica e para diversos propósitos, que podem ser mais estreitos — como estimular temporariamente um bem estratégico, de que é exemplo a produção de máscaras em uma pandemia – ou mais amplos e ambiciosos, como ganhar guerras ou transformar países pobres em ricos[4].  

Políticas industriais e o surgimento do regime de mercado

Outro ponto importante do assunto está relacionado ao fato de que, longe de serem estranhas ao capitalismo, as políticas industriais acompanham o próprio surgimento do regime de mercado que decorre das revoluções liberais. Mais do que isso, as políticas industriais, especialmente as protecionistas, são vistas por muitos como a verdadeira razão do sucesso da industrialização dos países hoje desenvolvidos. Daí ironizar Chang[5] que a Inglaterra somente passou a defender os livres mercados quando já havia atingido um tal nível de industrialização, graças a suas medidas protecionistas, que não teria nenhum concorrente global. 

Em sentido semelhante, Isabel Estevez[6] mostra que, no contexto norte-americano, as políticas industriais estão presentes desde o nascimento da nação, destacando que um dos seus defensores era precisamente Alexander Hamilton, que soube desafiar a pressão britânica para que os Estados Unidos continuassem sendo um mero produtor de matérias-primas. 

Vários países desenvolvidos, como França e Alemanha, apresentam importantes históricos de políticas industriais. No século 20, os países que caminharam no sentido da industrialização e do maior crescimento econômico, como Coreia do Sul, Taiwan, Japão e China, não atingiram tais objetivos graças ao livre mercado, mas sim por meio da utilização de uma enorme quantidade de ferramentas de intervenção estatal, como gerenciamento de preços, empresas públicas, gerenciamento do comércio e planejamento do trabalho[7]

Logo, mesmo uma visão introdutória do tema já permite a constatação de que as políticas industriais podem ser vistas como mais uma evidência de dois importantes fenômenos: 1) a inexistência dos livres mercados, já que os mercados dependem, em algum grau e por diferentes mecanismos, do direito e do Estado e 2) vinculação entre industrialização e crescimento econômico com uma ação estratégica do Estado, ao menos como indutor e incentivador de atividades econômicas. 

Não obstante, a narrativa neoliberal dos livres mercados obscureceu essas necessárias relações e ainda associou as políticas industriais a intervenções necessariamente desastrosas e nefastas. Como explicam Chang e Andreoni[8], desde o século 18 o debate sobre políticas industriais é um dos mais importantes da economia política e, mesmo no século 20, tornou-se aquecido no final da década de 1970 e início dos anos 1980, impulsionado pelo sucesso do Japão e de outros países do leste asiático. Contudo, tal debate foi eclipsado por três décadas de ideologia neoliberal.  

Importância das políticas industriais

Todavia, na atualidade, apesar da persistência do ceticismo de muitos economistas do mainstream, vários nomes de peso, como Joseph Stiglitz, Dani Rodrik e Justin Lin, são uníssonos ao ressaltarem a importância das políticas industriais, ainda que o façam cautelosamente e procurem se afastar da sua visão old-style, marcada pelo protecionismo. Além disso, exemplos mais recentes dos Estados Unidos, da Alemanha, de vários países da Ásia, da América Latina, da África e do Oriente Médio estimulam a discussão e nos convidam a tratar do tema sob uma perspectiva mais técnica e menos ideológica[9]

Há tempos que Dani Rodrik[10] nos alerta sobre os riscos de que os debates sobre a política industrial fiquem reféns de duas narrativas extremas: a de que a intervenção estatal é sempre positiva e necessária ou a de que as falhas de governo são tantas e mais graves que isso deveria afastar o Estado da economia.  

Para o autor, as experiências do mundo real já mostraram as falhas dessas duas concepções, o que nos impele a buscar uma postura intermediária, segundo a qual especialmente economias em desenvolvimento precisam embutir a iniciativa privada em uma estrutura de ação governamental que encoraje a reestruturação, a diversificação e o dinamismo tecnológico além daquilo que as forças de mercado poderiam gerar. Sob essa perspectiva, ainda que se busque preservar as forças de mercado e a empresa privada como os motores desses propósitos, reconhece-se que os governos precisam assumir estratégias e um papel de coordenação na esfera produtiva que vá além de assegurar direitos de propriedade, cumprimento de contratos e estabilidade macroeconômica[11].  

Por essa razão, Rodrik[12] sustenta que as políticas industriais devem ser vistas como um processo de descoberta, a partir da complementaridade com as forças de mercado e do reconhecimento da sua importância para alguns aspectos fundamentais do crescimento econômico. A preocupação é ainda maior em relação a países em desenvolvimento, nos quais a inovação pode ser constrangida não apenas pelo lado da oferta, mas também pelo lado da demanda. 

Ainda para Rodrik[13], há problemas de externalidades informacionais e de coordenação que podem exigir as políticas industriais e o enfrentamento dos desafios a elas inerentes, sobretudo quando uma série de estudos empíricos recentes que demonstram os seus benefícios. Daí a necessidade de se avançar no assunto, inclusive no que diz respeito à oferta de bens públicos para o setor produtivo, tais como laboratórios, pesquisa e desenvolvimento, infraestrutura, dentre outros. 

Em artigo recente, Dani Rodrik, Réka Juhász e Nathan Lane[14] concluem que muitos economistas estão reconsiderando a sua visão sobre as políticas industriais em razão de uma nova geração de pesquisas, fundadas em métodos empíricos mais rigorosos. Tais estudos têm mostrado mais evidências de como a política industrial realmente funciona, aumentando a qualidade do debate e convidando para um entendimento mais contextual e aberto as nuances do que a polarização anterior. 

No texto, Rodrik, Juhász e Lane[15] fazem um mapeamento dos inúmeros exemplos práticos em que as políticas industriais funcionam, assim como demonstram que os métodos antigos de avaliação – baseados no cotejo entre as indústrias que recebiam ajuda governamental com as demais – é desinformativo, porque simplesmente não distinguem entre os casos em que a política industrial é útil ou não. Do contrário, as pesquisas recentes usam modernas técnicas estatísticas para evitar inferências causais enganosas, apresentando resultados que mostram que tais políticas tendem a aumentar os efeitos positivos a longo prazo na estruturação da atividade econômica.  

O fato de novas pesquisas empíricas mostrarem o sucesso de políticas industriais no passado ou na atualidade obviamente não quer dizer que elas devam ou possam ser replicadas diante de uma realidade que apresenta inúmeros outros desafios. Daí por que muito dos trabalhos recentes sobre o tema procuram destacar outras abordagens e preocupações para a que seria a política industrial do século 21. 

É o caso de Chang e Andreoni[16], que propõem uma nova visão de políticas industriais, diante das modificações recentes como as cadeias globais, a financeirização e o novo imperialismo. Para os autores, os novos desafios exigem que se possa incorporar elementos, como os compromissos com investimentos irreversíveis diante da incerteza, o aprendizado na produção, o gerenciamento macroeconômico – especialmente na demanda –, a dimensão política das mudanças econômicas e o gerenciamento dos conflitos que surgem nesses processos de mudança.  

Em sentido semelhante, Robert Wade[17] mostra que, diante dos atuais estudos empíricos de economistas e cientistas sociais em prol das políticas industriais, já se construiu uma base para se sair do Estado Regulatório em direção ao Estado de Desenvolvimento, que deve ver as políticas industriais não necessariamente vinculadas às hard policies, associadas a protecionismos e subsídios, mas sobretudo às soft policies, que teriam diversos outros alcances e maior sofisticação. 

E nem se afirme que essa nova postura de intervenção estatal seria necessariamente incompatível com a concorrência. Em artigo recente, Philippe Aghion e outros[18] criticam o entendimento predominante na década de 80, que associava tais políticas à restrição da competição e à escolha de vencedores pelos governos. Para os autores, é possível que tais políticas sejam compatíveis com a concorrência (competition-friendly) e, consequentemente, sejam utilizadas para impulsionar a produtividade e o crescimento.  

O que é fundamental do debate é torná-lo menos ideológico. Como bem sintetiza Dani Rodrik[19], muitas das críticas às políticas industriais são baseadas em premissas não examinadas sobre a natureza do crescimento econômico e a capacidade dos governos, assim como em interpretações que mal representam o que as evidências empíricas realmente mostram. Além disso, muitas das críticas ignoram o fato de que muitos – se não todos – os países em desenvolvimento já estão engajados em políticas industriais, ainda que não as chamem desse modo. 

Assim, é fundamental que o assunto seja levado a sério, a fim de se buscar novas perspectivas que viabilizem o ajuste fino que se espera da cooperação entre mercado e Estado, especialmente em países em desenvolvimento como o Brasil. Com efeito, se bem utilizadas, as políticas industriais podem valorizar a livre iniciativa ao mesmo tempo em que a direcionam para objetivos socialmente úteis que, em muitos casos – como a questão ambiental e a pobreza – são também urgentes.


Fonte: Jota

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NOTAS

[1] https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/noticias/2023/07/com-politica-industrial-e-pac-presidente-preve-brasil-a-201c100-por-hora201d

[2] ESTEVEZ, Isabel. Industrial transformation. Lessons from development economics for industrial policy. https://www.phenomenalworld.org/analysis/industrial-transformations/

[3] Conforme ESTEVEZ, Isabel. Op.cit.  

[4] ESTEVEZ, Isabel. Op.cit.  

[5] CHANG, Ha-Joon. Chutando a Escada. A estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica. São Paulo: Editora Unesp, 2004. 

[6] Op.cit. 

[7] Idem. 

[8] CHANG, Ha-Joon; ANDREONI, Antonio. Industrial Policy in the 21st Century. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/dech.12570

[9] CHANG, Ha-Joon; ANDREONI, Antonio. Op.cit.  

[10] RODRIK, Dani. Industrial Policy for the Twenty-First Century (November 2004). Disponível em SSRN: https://ssrn.com/abstract=617544 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.617544

[11] Op.cit. 

[12] Op.cit. 

[13] Op.cit. 

[14] RODRIK, Dani; JUHÁSZ, Réka; LANE, Nathan. Economists Reconsider Industrial Policy. https://www.project-syndicate.org/commentary/new-economic-research-more-favorable-to-industrial-policy-by-dani-rodrik-et-al-2023-08?barrier=accesspaylog.  

[15] Op.cit. 

[16] CHANG, Ha-Joon; ANDREONI, Antonio. Industrial Policy in the 21st Century. 
https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/dech.12570

[17] WADE, Robert. The return of industrial policy. https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/02692171.2011.640312

[18] AGHION, Philippe et al. Industrial Policy and Competition. https://www.aeaweb.org/articles?id=10.1257/mac.20120103

[19] RODRIK, Dani. Normalizing Industrial Policy. https://drodrik.scholar.harvard.edu/files/dani-rodrik/files/normalizing-industrial-policy.pdf

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