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Os limites planetários como parâmetro para a progressividade das “Leis dos homens” de proteção ecológica em face da força imperativa das “Leis da natureza”

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PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DE RETROCESSO ECOLÓGICO

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Tiago Fensterseifer
Tiago Fensterseifer

17/08/2020

O ser humano e a humanidade como um todo parecem não aceitar ou lidar muito bem com a ideia de “limites” para as suas ações. O animal mais inteligente que já habitou o globo terrestre ao longo dos mais de 4 bilhões de anos de história natural do Planeta Terra confia cegamente na sua “supremacia biológica” e capacidade sem fim de evoluir e progredir, negando a existência de limites (de ordem ecológica) para a sua intervenção na Natureza e, ao mesmo tempo, fazendo pouco caso dos riscos correlatos para a sua própria existência e perpetuação como espécie natural, como testemunhamos hoje com a Pandemia do COVID-19.

A “força de magnitude geofísica global”[1] das suas ações, potencializada pelo desenvolvimento tecnológico progressivo, chegou ao ponto de um novo período ou era geológica denominada de Antropoceno[2] (“Era dos Homens”) ter sido inaugurada recentemente em virtude das alterações provocadas pelo ser humano no Sistema do Planeta Terra (Earth System), afetando, para além da sua capacidade de carga e resiliência, diversos dos subsistemas e os correlatos limites ou fronteiras planetárias (planetary boundaries[3]) que asseguram de forma interdependente o seu equilíbrio e, no limite extremo, as condições indispensáveis para a manutenção e perpetuação da própria vida humana.

A crença utópica do ser humano no “progresso sem fim” das sociedades, no aumento progressivo dos padrões de consumo e na inesgotabilidade dos recursos naturais, não obstante a reiterada negativa científica de tal entendimento pelo menos desde o início da Década de 1970, como ilustra de forma emblemática o Relatório do Clube de Roma (1972)[4], coloca-se, muitas vezes, como um dogma, alimentado pela fé de que o desenvolvimento sem fim da técnica nos salvará e redimirá no final das contas[5] do mal que causamos à Natureza e às outras formas de vida não humanas. Ocorre que, como diz o slogan ecológico nos cartazes dos estudantes do movimento Fridays for Future:  “não há Planeta B!”

O princípio da proibição de retrocesso ecológico[6] (e o seu correlato dever de progressividade), por sua vez, deve ser contextualizado em tal cenário de crise ecológica e de urgência na imposição de limites à intervenção do ser humano na Natureza. Os limites normativos (e deveres do Estado e de particulares) colocados pelo Direito à ação humana – por exemplo, ao estabelecer o regime jurídico de proteção ecológica – devem dialogar necessariamente com os limites naturais ou ecológicos, reconhecendo-se, como comprovado cientificamente, que muitos dos denominados “limites ou fronteiras planetárias” já foram ultrapassados e não há mais margem para um ponto de recuo no seu patamar de proteção jurídica, como, por exemplo, no regime climático, na perda de biodiversidade, na poluição dos mares e oceanos, etc.

Como se pode apreender da leitura da Lei Fundamental brasileira de 1988, tal paradigma científico relacionado ao princípio da integridade ecológica encontra-se consagrado expressamente por meio de expressões como “processos ecológicos essenciais”[7] e “função ecológica”[8], neste último caso com vedação de práticas que provoquem a extinção de espécies da biodiversidade (fauna e flora). As expressões referidas pela  nossa Constituição de 1988 possuem equivalência em termos de significado, para o campo jurídico, com o conceito de ” limites ou fronteiras planetárias”, “juridicizando” o conceito de “subsistemas” interdependentes que devem ser necessariamente protegidos para assegurar o equilíbrio e integridade do(s)  ecossistema(s) não apenas nas esferas local,  regional e nacional, mas também global ou planetária (Gaia[9]).

A Lei Fundamental alemã, no seu art. 20a, ao dispor sobre a tutela ecológica como dever e tarefa estatal, ao determina a proteção dos “fundamentos naturais da vida” (die natürlichen Lebensgrundlagen), consagra expressão constitucional que também carrega conteúdo conceitual e normativo semelhante às encontradas na norma constitucional brasileira para determinar a salvaguarda do equilíbrio ecológico numa perspectiva ecossistêmica. As “leis dos homens” devem necessariamente ajustar-se às imutáveis e universais “leis da Natureza”. Não há mais “margem” segura para exploração dos recursos naturais em diversas áreas ou subsistemas ecológicos. Pelo contrário, o momento é de recuo na intervenção humana na Natureza. Menos poluição e produção de resíduos, recuperação de áreas degradadas, despoluição dos rios e mares (por exemplo, em relação aos plásticos), ampliação de áreas especialmente protegidas (por exemplo, com a redução do desmatamento da Amazônia), recuperação de populações de espécies da fauna e da flora ameaçadas de extinção, uso apenas sustentável e seguro de recursos naturais, valorização e proteção dos “serviços ecológicos”, etc. Em linhas gerais, é tempo de maior rigor jurídico protetivo em matéria ambiental, como ilustra bem a discussão em torno do aquecimento global e do Acordo de Paris (2015).

Nunca antes na história da humanidade, pela perspectiva da relação “sociedade-Natureza”, os limites e a autocontenção da ação humana colocaram-se de forma tão imperativa, inclusive como uma questão existencial de sobrevivência da própria espécie humana. Como colocado expressamente no Preambulo do Acordo de Paris (2015), a comunidade internacional reconhece “a necessidade de uma resposta eficaz e progressiva à ameaça urgente da mudança do clima com base no melhor conhecimento científico disponível”.[10] O urgente e necessário ajuste de contas entre ser humano e Natureza imposto pela crise ecológica exige do Direito um regime jurídico ecológico fortificado progressivamente, e não fragilizado ou flexibilizado, inadmitindo-se recuos e retrocessos no horizonte futuro. Isso impõe-se também por força do princípio de justiça intergeracional, ou seja, a proteção jurídica dos interesses e direitos das futuras gerações humanas, como enuncia expressamente o caput do art. 225 da CF/1988.

A discussão em torno da  “justiça entre gerações” tem sido colocada no contexto político contemporâneo de forma emblemática, por meio de amplos e progressivos protestos de jovens mundo afora sobre a questão climática, como bem simbolizam a estudante sueca Greta Thunberg[11], à frente do movimento estudantil Fridays for Future. É o direito ao futuro que está em jogo, podendo-se até mesmo falar de uma certa sub-representação político-democrática dos interesses das gerações mais jovens no Estado Constitucional contemporâneo, assim como das futuras gerações que ainda estão por nascer. Se não formos capazes de impor limites a nós mesmos, os limites nos serão impostos pela própria Natureza, como, aliás, ilustra bem o título de um dos últimos livros de Bruno Latour, podendo ser traduzido como “Encarando Gaia” ou “Face à Gaia” (Facing Gaia). O Planeta Terra, como dito pelo autor, está reagindo às nossas ações predatórias[12] e, caso não recuarmos com as nossas ações predatórias, encararemos inevitavelmente fúria reativa de Gaia contra o Homo sapiens. A pandemia do COVID-19 está aí para nos mostrar e ensinar isso, da forma mais trágica e dolorosa possível.

Em recente declaração conjunta emitida pelo Relator Especial das Nações Unidas sobre Direitos Humanos e Meio Ambiente, David R. Boyd, e a Relatora Especial sobre Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (REDESCA) da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), Soledad García Muñoz, destacaram os desafios relacionados à pandemia de Covid-19 e à crise ambiental global, apontando, em linhas gerais, que os governos devem fortalecer, e não enfraquecer, a proteção ambiental durante a pandemia do COVID-19, conforme se pode apreender da passagem que seguem: ‘’

Pedimos a los Estados que refuercen sus leyes, políticas, programas y reglamentos medioambientales. Los Estados tienen la obligación de prevenir nuevos daños y de establecer fuertes marcos institucionales, cumpliendo las obligaciones contenidas en los instrumentos regionales y universales de derechos humanos, en particular, las contenidas en el Protocolo de San Salvador y el Acuerdo de Escazú. (…) deben asegurar que todas las instituciones de protección del medio ambiente cuenten con la financiación, el personal y el equipo adecuados para continuar sus tareas de vigilancia y aplicación de la ley en sus respectivas jurisdicciones. En caso de que sea necesario adoptar una decisión para reformar normas medioambientales específicas, esas decisiones deberán respetar tanto los elementos de procedimiento como los sustantivos de los derechos humanos. (…) Los Estados deben velar por que todo cambio respete los principios deno discriminación y no retroceso. (…) En conclusión, el creciente riesgo de que surjan enfermedades infecciosas está causado por una ‘tormenta perfecta’ de acciones humanas que dañan los ecosistemas y la biodiversidad, como la deforestación, el desbroce de tierras y la conversión para la agricultura, el comercio de fauna salvaje, la expansión de la población humana, los asentamientos y las infraestructuras, la intensificación de la producción ganadera y el cambio climático. En las Américas, así como en el resto del mundo, la salud humana está inextricablemente ligada a la salud de los ecosistemas, y poner todo el empeño en la protección y la restauración de la naturaleza es una destacada inversión a largo plazo” (grifos nossos).[13]

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[1] STEFFEN, Will et all. The Anthropocene: from Global Change to Planetary Stewardship. In: Ambio (Royal Swedish Academy of Sciences), Vol. 40, n. 7, 2011, nov., p. 741.

[2] STEFFEN, Will; CRUTZEN, Paul J.; McNeill, John R. The Anthropocene: Are Humans Now Overwhelming the Great Forces of Nature?. In: Ambio (Royal Swedish Academy of Sciences), Vol. 36, n. 8, 2007, nov., pp. 614-621.

[3] Os cientistas têm utilizado hoje a expressão “fronteiras ou limites planetários” (Planetary Boundaries), identificando os principais processos biofísicos do Sistema do Planeta Terra (Earth System) e que determinam a sua capacidade de auto-regulação. São nove categorias de fronteiras planetárias identificadas: 1) Mudanças climáticas; 2) Acidificação dos oceanos; 3) Diminuição ou depleção da camada de ozônio estratosférico; 4) Carga atmosférica de aerossóis; 5) Interferência nos ciclos globais de fósforo e nitrogênio; 6) Taxa ou índice de perda de biodiversidade;  7) Uso global de água doce; 8) Mudança no Sistema do Solo (Land-System Change); 9) Poluição química. ROCKSTRÖM, Johan et all. Planetary Boundaries: Exploring the Safe Operating Space for Humanity. Ecology and Society, Vol. 14, N. 2, 2009, Dezembro, pp. 1-32. Disponível em: https://www.ecologyandsociety.org/vol14/iss2/art32/. O artigo foi publicado também, na forma de uma breve introdução, na Revista Nature: ROCKSTROM, Johan et all. Planetary Boundaries: Exploring the Safe Operating Space for Humanity. Nature, Vol. 461, 2009, set., pp. 472–475. Disponível https://www.nature.com/articles/461472a.

[4] MEADOWS, Donell H.; MEADOWS, Dennis L.; RANDERS, Jorgen; BEHRENS III, William W. Limites do crescimento: um relatório para o Projeto do Clube de Roma sobre o Dilema da Humanidade. 2.ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978 (1ª edição brasileira de 1973).

[5] A título de exemplo, discute-se sobre o uso da “geoengenharia” em escala planetária para enfrentar o aquecimento global. Para uma visão crítica sobre o tema, v. SCHELLNHUBER, Hans J. Geoengineering: the good, the MAD, and the sensible. In: Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America (PNAS), Vol. 108, N. 51, 2011, dez., pp. 20277-20278.

[6] Na França, conforme assinala Michel Prieur, utiliza-se “o conceito do efeito Cliquet (catraca) ou regra Cliquet antirretorno” para designar o princípio da proibição de retrocesso ou de não regressão ecológica. PRIEUR, Michel. O princi?pio da “na?o regressa?o” no corac?a?o do direito do homem e do meio ambiente. In: Revista Novos Estudos Jurídicos, v. 17, n. 1 (Edição Especial Rio +20), 2012, jan.-abr., p. 8. Disponível em: https://siaiap32.univali.br/seer/index.php/nej/article/view/3634/2177.

[7] “Art. 225 (…) § 1º Para assegurar a efetividade desse direito (ou seja, o direito fundamental ao ambiente), incumbe ao Poder Público: I – preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas”.

[8] “Art. 225, § 1º, (…) VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.

[9] LOVELOCK, James. A vingança de Gaia. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2006.

[10] Disponível em:https://www.undp.org/content/dam/brazil/docs/ODS/undp-br-ods-ParisAgreement.pdf.

[11] O discurso proferido por Greta Thunberg na COP 24 da Convenção-Quadro sobre Mudança do Clima da ONU, em Katowice, na Polônia, ocorrida no mês de dezembro de 2018, pode ser acessado em: https://www.youtube.com/watch?v=EpvuS0EbywI.

[12] LATOUR, Bruno. Facing Gaia: Eight Lectures on the New Climate Regime. Cambridge: Polity Press, 2017, p. 3.

[13] Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/prensa/comunicados/2020/198.asp.

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