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Imprescritibilidade do dano ambiental e seu caráter retórico: caso do Rio de Janeiro

Paulo de Bessa Antunes
17/09/2025
A matéria relativa à Imprescritibilidade do dano ambiental merece ser examinada criteriosamente. Neste artigo, retomo tema já tratado [1]. Busco, agora, uma perspectiva mais concreta da matéria que, em meu juízo, tem sido abordada de forma retórica e amplamente dissociada da história, ainda que sob uma argumentação de que se trata de um “direito inerente à vida, fundamental e essencial a afirmação dos povos, independentemente de estar expresso ou não em texto legal” (RE 6.548.333).
A polêmica da Imprescritibilidade do dano ambiental
O direito brasileiro legislado não trata especificamente da imprescritibilidade ambiental, motivo pelo qual, há que se recorrer ao “Direito comum” (Código Civil); contudo, é certo que o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, negam vigência ao artigo 205 do CCB [2]. Ambas as cortes superiores [3] e [4] consolidaram tais entendimentos jurisprudenciais. A jurisprudência, no particular, expressa uma visão voluntarista de ambas e uma tentativa de “quadratura do círculo”.
A prescrição, como se sabe, é a perda do direito de ação e não do direito em si mesmo. Há vários modelos legais que tratam da prescrição em matéria ambiental, sendo o adotado pelo Brasil sui generis [5]. A “imprescritibilidade” ambiental tem sido discutida de forma ligeira, sem que se examine os potenciais efeitos de sua aplicação [6].
Há que se considerar que, em áreas urbanas, a construção das cidades expressa o desenvolvimento da cultura urbanística, sendo parte da memória da evolução da urbe, permitindo que os diferentes tempos sejam identificados. Cuida-se do “ambiente construído” expressamente tutelado pela Lei 10.257/2001, dentre outras.
O ambiente construído e a passagem do tempo
Se por um lado é certo que as leis devem ser interpretadas conforme o tempo em que são aplicadas; por outro, do ponto de vista fático não se pode apagar o passado do ambiente, como se uma decisão judicial pudesse reescrever a história [7]. A imprescritibilidade, sem base legal, é a juridicização do moderno mito de retorno às origens, relativo à “mais poderosa de todas as fantasias: o desejo de retorno às origens. E o nosso contemporâneo recorda que, de todas as origens, é ainda a natureza a mais original”[8].
Áreas de preservação permanente (APPs) e a realidade histórica
Um bom exemplo para a discussão da questão é o das áreas de preservação permanente (APP), cujas origens estão no artigo 3º do Decreto 4.421/1921. A Lei 12.651/2012 considera como APP a “área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas” (artigo 3º, II).
O artigo 4º define uma listagem de áreas que devem ser consideradas como de preservação permanente, em zonas rurais ou urbanas, dentre outras, (1) as faixas marginais de qualquer curso d’água natural perene e intermitente, excluídos os efêmeros, desde a borda da calha do leito regular, em diversas larguras mínimas; (2) as áreas no entorno dos lagos e lagoas naturais, em faixa com diversas larguras mínimas; (3) as restingas, como fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues; (4) os manguezais, em toda a sua extensão; e (5) no topo de morros, montes, montanhas e serras, com altura mínima de 100 (cem) metros e inclinação média maior que 25º. Com vistas a tornar o tema mais concreto, veja-se o exemplo da cidade do Rio de Janeiro que, na prática, teria sido construída em violação à todas as normas acima mencionadas caso elas fossem vigentes desde 1º de março de 1565. Conforme Maurício A. de Abreu [9]:
“[s]ó a partir do século XIX é que a cidade do Rio de Janeiro começa a transformar radicalmente a sua forma urbana (…). Até então, o Rio era uma cidade apertada, limitada pelos Morros do Castelo, de São Bento, de Santo Antônio e da Conceição. Ocupava, entretanto, um chão duramente conquistado à natureza, através de um processo de dessecamento de brejos e mangues que já durava mais de três séculos.”
As cidades se modificam com o tempo e este é determinante para a definição das formas urbanas. Logo, “[a] forma de uma cidade é a própria forma do tempo de uma cidade e há muitos tempos na forma da cidade.” A ação do tempo sobre as cidades também deve ser considerada como fonte de direitos, pois “[a]ssim como, ao longo da vida, um indivíduo é atingido por profundas transformações físicas e interiores, também o espaço urbano sofre as consequências das mutações impostas pelo tempo e pela ação do Poder” [10].
Logo, o espaço urbano é uma construção histórica que deve ser olhada com os olhos das diferentes épocas que contribuíram para a sua constituição. A ideia de imprescritibilidade, no caso concreto, é a expressão de uma vã tentativa de lançar ao passado, a visão de um determinado presente e, até mesmo, o resultado de uma visão mítica que não tem outra base de sustentação além da imaginação utópica de um passado que nunca existiu.
Cirurgias urbanas
Conforme Afonso Carlos Marques dos Santos, a história da cidade do Rio de Janeiro é marcada pela busca da racionalização do uso do espaço, tentando moldá-lo a padrões europeus. A chegada da Corte ao Rio de Janeiro acelerou esse processo de transformação da urbe carioca. Mas esses eram apenas os primeiros passos de um projeto civilizatório que tentaria superar os limites impostos pelas condições sociais e naturais[11].
Estima-se que em 1500, o nível do mar na Baía de Guanabara — devido à pequena idade do gelo — fosse de 10 a 20 cm mais baixo do que o atual. Segundo Elmo Amador, em 1500, o mar batia diretamente nos locais que hoje são conhecidos como Outeiro da Igreja da Glória, base do Morro da Viúva, Arcos da Lapa, Teatro Municipal, Campo de Santana, Túnel do Pasmado, base do Outeiro da Penha e rodoviária Novo Rio. Os manguezais se espalhavam por todo o litoral.
No ano do descobrimento a superfície total da Baía de Guanabara, sem inclusão das ilhas e, considerando-se o arco formado pelas ilhas Pai, Mãe e Menina e a Ponta do Arpoador era de 468 km2 e atualmente é de cerca de 381 km² [12]. Os manguezais, em 1.500, ocupavam aproximadamente 300 km2, tendo sido reduzidos a cerca de 60 km2 em 1997. Como se vê, independentemente de juízo de valor, o atual contorno da Baía de Guanabara é uma construção humana, uma paisagem construída que é o meio ambiente concreto e não o idealizado.
Cirurgias urbanas e o meio ambiente histórico
Se examinarmos as administrações Pereira Passos (1902-1906) e Carlos Sampaio (1920-1922) que, em conjunto, produziram as maiores “cirurgias urbanas” no antigo Distrito Federal não será difícil considerar que as transformações urbanas ocorreram às custas de enormes sacrifícios do que hoje seriam as APPs. O “Bota Abaixo” promovido por Pereira Passos foi imediatamente posterior à “fase mais turbulenta” da vida do Rio de Janeiro, tendo em vista as transformações de natureza econômica, social, política e cultural [13].
É importante notar que entre 1872 e 1890 a população da cidade passou de 266 mil habitantes para 522 mil almas. Em 1890, cerca de 28,7% da população era nascida no exterior. É fácil perceber o impacto de tais números sobre a infraestrutura da cidade.
Sob a administração Pereira Passos [14] foram demolidos todos os prédios paralelos aos Arcos da Lapa e o Morro do Senado para a passagem da avenida Mem de Sá. O largo de São Domingos foi demolido para a implantação da avenida Passos. A rua da Vala (Uruguaiana) foi alargada com a consequente demolição de todo o casario de um dos lados da rua. Foram abertas as avenidas Beira-Mar e Atlântica e a avenida Central (Rio Branco) como grande marco de sua gestão. Foram também realizadas obras de saneamento e muitos aterros sobre a Baía de Guanabara.
Esse conjunto de aterros que foram sendo feitos ao longo de séculos deram características “pitorescas” à orla.
“Os dias, destinava-os para as visitas da Rua do Ouvidor, os piqueniques no Jardim ou Tijuca. Lembrou-se de fazer da praia de Botafogo um passeio à semelhança do Bois de Boulogne em Paris, do Prater em Viena, e do Hyde-Park em Londres. Durante alguns dias ela e algumas amigas percorriam de carro aberto, por volta de quatro horas, a extensa curva da pitoresca enseada, espairecendo a vista pelo panorama encantador, e respirando a fresca viração do mar”[15].
A administração Carlos Sampaio concebia a evolução urbana do Rio de Janeiro a partir da
“constatação de que a urbe foi conquistada, através de sucessivos aterros e desmontes, à topografia original e que, portanto, o arrasamento do Castelo, correspondendo a uma necessidade contemporânea, não podia ser diferenciado conceitualmente da demolição dos morrotes das Mangueiras e do Senado, do entulhamento das lagoas da Sentinela e de Santo Antônio e de outras intervenções que, a seu tempo, também foram julgadas indispensáveis”[16].
Carlos Sampaio se notabilizou pelo desmonte do Morro do Castelo para a montagem da exposição do Centenário da Independência. A obra gerou muitas críticas e apreensões sociais. Lima Barreto, sarcasticamente, afirmou que: “[o] Senhor Carlos Sampaio, por exemplo, tem sido de uma rara abnegação no problemático desmonte de morros e no entupimento das lindas enseadas da nossa majestosa baía”[17].
Carlos Sampaio construiu o bairro da Urca com a avenida Portugal mediante concessão (e aterros), reconstruiu a avenida Atlântica que fora destruída por uma ressaca e deu a partida para a ocupação de Copacabana, Ipanema e Leblon autorizando, portanto, a ocupação de praias e restingas; foi também o responsável pelo saneamento de parte da lagoa Rodrigo de Freitas. O desmonte do Morro do Castelo forneceu material para grandes aterros na Baía de Guanabara, acabando com a praia de Santa Luzia e dando origem à avenida Beira-Mar e à avenida Franklin Roosevelt. A ampliação do aterro permitiu a construção do aeroporto Santos Dumont.
Conclusão: imprescritibilidade do dano ambiental e retórica jurídica
As diferentes transformações pelas quais passou a cidade do Rio de Janeiro, se observadas à luz da legislação atual e, sobretudo, sob a ótica de uma crescente preocupação com o meio ambiente, seriam consideradas — em muitos casos — inadequadas. Entretanto, foram elas que desenharam o atual perfil da orla da Baía de Guanabara.
A adoção da tese jurisprudencial da imprescritibilidade do dano ambiental, no limite, determinaria que todo o ambiente construído cultural e historicamente fosse substituído por um ambiente existente, apenas, em um passado utópico, mitológico e idealizado. A história da cidade do Rio de Janeiro caracterizada pelas diferentes “cicatrizes” em sua realidade física, seriam apagadas, como que cumprindo o objetivo de expiar as nossas culpas pelo simples fato de que a nossa existência como humanos depende do ambiente e de nossas interações concretas com ele.
Não se desconhecem as repercussões sociais de “cirurgias” ambientais como o desmonte do Morro do Castelo que implicou no deslocamento forçado de grande contingente de população pobre. Isso, no entanto, é parte de nossa história que a imprescritibilidade não apagará, dado o seu caráter puramente retórico.
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[1] Paulo de Bessa Antunes. Prescrição de danos ambientais. Disponível aqui
Paulo de Bessa Antunes. Meio ambiente e prescrição: de volta para o passado. Disponível aqui
[2] Art. 205. A prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor.
[3] STF. Tema 999. Tese: É imprescritível a pretensão de reparação do dano ambiental.
Tema 1194. Tese: É imprescritível a pretensão executória e inaplicável a prescrição intercorrente na execução de reparação de dano ambiental, ainda que posteriormente convertida em indenização por perdas e danos”.
[4] STJ – Súmula 613. Não se admite a aplicação da teoria do fato consumado em tema de Direito Ambiental. (PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 09/05/2018, DJe 14/05/2018)
9) Não há direito adquirido à manutenção de situação que gere prejuízo ao meio ambiente.
[5] Paulo de Bessa Antunes. Responsabilidade civil ambiental: uma breve introdução. Indaiatuba: Editora Foco. 2025
[6] Decreto-Lei 4657/1942. Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
[7] Paulo de Bessa Antunes. Introdução ao estudo do direito. 4ª edição. Indaiatuba: Editora Foco. 2025
[8] François Ost. A natureza à margem da lei – A ecologia à prova do direito. Lisboa: Instituto Piaget. 1997, p. 171
[9] Maurício A. de Abreu. Evolução urbana do Rio de Janeiro. 5ª edição. Rio de Janeiro: Instituto Pereira Passos. 2022, p. 47
[10] Evelyn Furquim Werneck Lima. Avenida Presidente Vargas: uma drástica cirurgia. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. 1990, p. 17
[11] Afonso Carlos Marques dos Santos. Prefácio, in, Carlos Kassel. A vitrine e o espelho: o Rio de Janeiro de Carlos Sampaio. Rio de Janeiro: Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2001.p. IX
[12] Elmo da Silva Amador. Baía de Guanabara – ocupação histórica e avaliação ambiental. Rio de Janeiro: Interciência. 2013
[13] José Murilo de Carvalho. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a república que não foi. 4ª edição. São Paulo: Companhia das Letras. 2019, p. 15
[14] Para uma ampla visão da administração Pereira passos ver: Jaime Larry Benchimol. Pereira Passos: um Haussmann tropical: A renovação urbana da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1992
[15] José de Alencar. Senhora, in, Romances escolhidos, Volume I, Romances urbanos (Lucíola, Diva, A pata da gazela, Senhora). pp 14-113. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 2022, p. 404
[16] Carlos Sampaio, apud, Carlos Kassel. A vitrine e o espelho: o Rio de Janeiro de Carlos Sampaio. Rio de Janeiro: Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2001.p. 53
[17] Lima Barreto. Obra Completa de Lima Barreto: Inclui “Triste fim de Policarpo Quaresma”, “O homem que sabia javanês”, as crônicas, os contos, e mais 7 obras [Exclusividade Amazon] (Portuguese Edition) (p. 3242). Kindle Edition.