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É legal a queimada para fins agropastoris?
Arnaldo Rizzardo
17/09/2024
São comuns as queimadas para a implantação de lavouras agrícolas, em especial para as culturas de cana-de-açúcar, gerando um verdadeiro desastre ecológico, em especial pela propagação do fogo, que atinge matas e demais espécies de vegetação, inclusive a ciliar. Tal prática revela a índole facínora de populações e culturas em relação à natureza, com total falta de consciência ecológica, já que o fogo dizima completamente a vida na superfície do solo, termina com os elementos nutrientes e com a matéria orgânica que se encontram na Terra.
Constitui a queima um extermínio insano da flora e da fauna e uma das causas do rápido aumento dos níveis de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera, contribuindo para o aquecimento global. Além disso, conduz ao desmatamento; traz a destruição da biodiversidade, a erosão e o empobrecimento do solo, o assoreamento dos rios, a elevação das temperaturas, a desertificação e a proliferação de doenças e pragas, a eliminação da vegetação nativa, a morte de organismos do solo e de microrganismos (bactérias, fungos, minhocas e centopeias); causa a fuga de possíveis animais (anfíbios, répteis e mamíferos); provoca a destruição de fontes de alimentos fornecidos pela vegetação nativa e a liberação de fumaça e de partículas causadoras de doenças. Aduz Luís Paulo Sirvinskas: “Queimadas é o emprego de fogo em práticas agropastoris e florestais. Trata-se de um método arcaico de realizar a limpeza do solo. Essa medida causa destruição e empobrecimento do solo, além de prejudicar a saúde humana”.1
Os maiores causadores de tantas desgraças, porém, são aqueles que permitem as queimadas, seja por meio da disciplina, seja através de julgamentos. Nessa linha, digna de elogio é a decisão do Des. gaúcho Marco Aurélio dos Santos Caminha que, em apreciando pedido de liminar na ADIn 70001436658, ajuizada pelo Ministério Público estadual, suspendeu a Lei estadual 13.931/2012 do Estado do RS, a qual amplia as hipóteses de utilização de fogo em pastagens nativas e exóticas, além de outras formas de queimadas, porquanto tal prática é “por demais prejudicial ao meio ambiente e à qualidade de vida da população, de forma que a manutenção da sua vigência (…) pode trazer prejuízos de toda a sorte”.
A legislação
O mais grave, no entanto, em vez da completa proibição, é a existência de uma legislação permitindo as queimadas ou o incêndio controlado, sob o pretexto de que o fogo é utilizado de forma racional e circunscrita, atuando como um fator de produção e de manejo de combustível seco.
(…)
A Lei 12.651/2012, alterada pela Lei 12.727/2012, disciplina as queimadas ou o uso do fogo em vegetação nativa nos arts. 38 a 40. Pelo art. 38, abrem-se várias exceções à proibição do uso do fogo, de cunho um tanto vago, que permitem interpretações extensivas, e que são as seguintes:
“I – em locais ou regiões cujas peculiaridades justifiquem o emprego do fogo em práticas agropastoris ou florestais, mediante prévia aprovação do órgão estadual ambiental competente do Sisnama, para cada imóvel rural ou de forma regionalizada, que estabelecerá os critérios de monitoramento e controle;
II – emprego da queima controlada em Unidades de Conservação, em conformidade com o respectivo plano de manejo e mediante prévia aprovação do órgão gestor da Unidade de Conservação, visando ao manejo conservacionista da vegetação nativa, cujas características ecológicas estejam associadas evolutivamente à ocorrência do fogo;
III – atividades de pesquisa científica vinculada a projeto de pesquisa devidamente aprovado pelos órgãos competentes e realizada por instituição de pesquisa reconhecida, mediante prévia aprovação do órgão ambiental competente do Sisnama.”
Nada mais vago e indefinido como a possibilidade de se autorizar a queima oportunizada pelo inc. I, em locais ou regiões que permitem o emprego de fogo em práticas agropastoris ou florestais. Há uma ampla abertura para o emprego de fogo, permissão que leva à utilização bastante generalizada desse meio de limpeza e preparo de terras para versas culturas agrícolas. Ainda mais ante a possibilidade da entidade estadual competente, segundo atribuições concedidas pelo Sisnama, estar autorizada a emitir normas regionais, isto é, para a aplicação em regiões específicas. Inquestionável que, para a queima, não se dispensa a autorização, mesmo na falta de regulamentação. O certo é que está proibida a queima desprovida de licença. Daí que, enquanto não aparecerem normas, e não for expedida a autorização, fica o proprietário ou possuidor de imóvel impedido de usar tal meio de limpeza de sua terra.
De outro lado, embora a possibilidade de serem expedidas normas de forma regionalizada, não se pense que decorra a permissão automática para a queima. Ao interessado cumpre que encaminhe pedido, demonstrando que satisfez aos requisitos ou às condições da regulamentação. Do contrário, nem sequer viabilizam-se o controle e a fiscalização. Sobre o assunto, reforçam Édis Milaré e Rita Maria Borges Franco: “Em nosso sentir, a interpretação adequada é aquela que considera a aprovação do órgão ambiental competente a que for precedida de requerimento, regularmente instruído, o qual deverá ser analisado pelo órgão ambiental e, de acordo com o caso concreto, deferido mediante autorização”.2
Tanto isso que o § 1º do art. 38 exige a aprovação sem estabelecer qualquer distinção: “Na situação prevista no inciso I, o órgão estadual ambiental competente do Sisnama exigirá que os estudos demandados para o licenciamento da atividade rural contenham planejamento específico sobre o emprego do fogo e o controle dos incêndios”. Ou seja, sempre apresentará o solicitante um plano sobre a queima, com a completa indicação do local, e a explicitação das técnicas e ações destinadas ao controle.
A ausência de regras mais objetivas acentua-se no inc. II. Chega-se ao ponto de se abrir a possibilidade da queima em Unidades de Conservação, isto é, em locais fixados como de conservação da vegetação nativa, desde que exista um plano de manejo devidamente aprovado pelo gestor da Unidade, de modo a se proteger as espécies nativas. Afigura-se difícil colocar em prática o cumprimento do plano de manejo, mormente pelas dificuldades de controle.
O inc. III prevê a queima em locais de pesquisa por instituição destinada à pesquisa, vinculada a projetos previamente aprovados pelo órgão competente.
O § 2º do art. 38 abre uma exceção extremamente perigosa, admitindo a prática de incêndios, sem os cuidados de prevenção e combate ou controle, para as áreas de terra de agricultura de subsistência, explorada por populações tradicionais e indígenas: “Excetuam-se da proibição constante no caput as práticas de prevenção e combate aos incêndios e as de agricultura de subsistência exercidas pelas populações tradicionais e indígenas”. A rigor, pelo caráter genérico do texto, permite-se que se instale um alto grau de liberdade em se levar a efeito as queimas, sem a devida autorização. Evidente que o dispositivo carece de elementos esclarecedores e regulamentadores, como o sentido ou alcance de “populações tradicionais” e mesmo de “indígenas”, de modo a envolver ou não índios aculturados. Embora a Constituição Federal não faça distinção, se a exploração da terra se faz em escala não de subsistência, não cabe o enquadramento na exceção do § 2º.
Visando dificultar sobremaneira a atividade de fiscalização para a responsabilização, há a norma tendenciosa do § 3º, impondo que a autoridade deverá comprovar o vínculo ou nexo de causalidade entre o autor da queima e o dano resultante: “Na apuração da responsabilidade pelo uso irregular do fogo em terras públicas ou particulares, a autoridade competente para fiscalização e autuação deverá comprovar o nexo de causalidade entre a ação do proprietário ou qualquer preposto e o dano efetivamente causado”.
Não carecia que se dissesse o óbvio. De todos é sabido que sempre se exige o nexo de causalidade para firmar ou estabelecer a responsabilidade.
Tamanha a preocupação em defender os que fazem uso do fogo que é reeditada, embora mais simplificadamente, a regra no § 4º do art. 38: “É necessário o estabelecimento de nexo causal na verificação das responsabilidades por infração pelo uso irregular do fogo em terras públicas ou particulares”.
Sobre o nexo de causalidade, observaram Édis Milaré e Rita Maria Borges Franco: “Em que pese a redundância dos dispositivos em questão, é certo que a exigência de estabelecimento de nexo causal para a imposição é medida consentânea com a natureza jurídica da responsabilidade administrativa. Com efeito, nos convencemos de que a responsabilidade por infrações administrativas no direito ambiental é, induvidosamente, subjetiva. O receio de que tal postura venha a ser fatal à proteção do meio ambiente é plenamente conjurado pela adoção da teoria da culpa presumida, que, como é curial, torna mais cômoda e efetiva a atividade estatal sancionatória, já que carrega ao ombro do suposto infrator todo o fardo probatório de sua inocência”.3
Mesmo que se admita a culpa presumida, é perigosa a tese da responsabilidade subjetiva, embora a essa tendência inflita o § 4º acima citado, constituindo um largo caminho de fuga dos que provocam vastos incêndios visando a utilização das terras. (…)
Alguns conceitos e procedimentos vêm no Dec. 2.661/1998, alterado pelo Dec. 11.100/2022, que merecem a devida consideração.
Lembra-se do sentido de “queima controlada” constante do art. 2º do então Decreto 2.661/1998, dispositivo este que permite “o emprego do fogo em práticas agropastoris e florestais, mediante Queima Controlada”. No § 1º vem definida a chamada “queima controlada”, para a finalidade de produção e manejo nas atividades agropastoris e florestais, e de pesquisa científica e tecnológica: “Considera-se Queima Controlada o emprego do fogo como fator de produção e manejo em atividades agropastoris ou florestais, e para fins de pesquisa científica e tecnológica, em áreas com limites físicos previamente definidos”.
O § 2º autoriza a suspensão da permissão do fogo: “A permissão do emprego do fogo de que trata o caput poderá ser suspensa, em caráter excepcional e temporário, por ato do Ministro de Estado do Meio Ambiente, com a finalidade de reduzir danos ambientais provocados por incêndios florestais”.
Oportuno lembrar o procedimento e as exigências que deveria adotar o interessado que visasse à obtenção de permissão, e que estavam alinhados no art. 4º do mesmo Decreto:
“I – definir as técnicas, os equipamentos e a mão de obra a serem utilizados;
II – fazer o reconhecimento da área e avaliar o material a ser queimado;
III – promover o enleiramento dos resíduos de vegetação, de forma a limitar a ação do fogo;
IV – preparar aceiros de no mínimo três metros de largura, ampliando esta faixa quando as condições ambientais, topográficas, climáticas e o material combustível a determinarem;
V – providenciar pessoal treinado para atuar no local da operação, com equipamentos apropriados ao redor da área, e evitar propagação do fogo fora dos limites estabelecidos;
VI – comunicar formalmente aos confrontantes a intenção de realizar a Queima Controlada, com o esclarecimento de que, oportunamente, e com a antecedência necessária, a operação será confirmada com a indicação da data, hora do início e do local onde será realizada a queima;
VII – prever a realização da queima em dia e horário apropriados, evitando-se os períodos de temperatura mais elevada e respeitando-se as condições dos ventos predominantes no momento da operação;
VIII – providenciar o oportuno acompanhamento de toda a operação de queima, até sua extinção, com vistas à adoção de medidas adequadas de contenção do fogo na área definida para o emprego do fogo.”
NOTAS
1Manual de direito ambiental. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 332-333.
2 Em Novo Código Florestal, coordenação de Édis Milaré e Paulo Affonso Leme Machado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 335.
3 Em Novo Código Florestal, coordenação de Édis Milaré e Paulo Affonso Leme Machado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 335.