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Arbitragem para resolução de passivo e licenciamento ambiental
Paulo de Bessa Antunes
02/12/2024
As questões relativas a passivos ambientais, licenciamento ambiental e suas repercussões financeiras são uma realidade nas arbitragens no Brasil, tendo por base cláusulas de contratos privados. A indústria do petróleo foi pioneira na adoção das arbitragens para a resolução de seus conflitos, inclusive com a própria Agência Nacional do Petróleo, do Gás Natural e dos Biocombustíveis (ANP), como foi o célebre caso Newfield, sobre o qual já pude me manifestar anteriormente. [1] Veja-se que a Lei nº 9.478/1997, artigo 43, X previu como cláusulas essenciais dos contratos de concessão, as regras sobre solução de controvérsias, relacionadas com o contrato e sua execução, inclusive a conciliação e a arbitragem internacional.
A Lei nº 9.307/1996, em seu artigo 1º, dispõe que: “[a]s pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis”. A Lei nº 13.129/2015 estendeu tal possibilidade para a administração pública, direta e indireta, quando o litígio versar sobre “direitos patrimoniais indisponíveis” [2]. No que se refere à arbitragem em matéria ambiental, o entendimento doutrinário, majoritário, tem sido no sentido de que o “meio ambiente”, por se constituir em direito indisponível, não está sujeito à arbitragem.
Sobre a questão, lembre-se que os danos ambientais se dividem em próprios ou ecológicos, “assim entendidos como aqueles sofridos pelo ambiente em si mesmo considerado, ou seja, as águas, a vida silvestre, o solo etc.” e os danos ambientais impróprios, assim entendidos como consequência dos danos próprios, ou seja: a perda de vidas humanas; a redução da capacidade de trabalho; a saúde humana; as perdas econômicas; a destruição de propriedades etc. [3] Em relação aos danos ambientais impróprios, parece claro que eles são plenamente arbitráveis, haja vista que podem ser convertidos em valores econômicos, como ocorre diariamente nos tribunais brasileiros.
A controvérsia está relacionada à possibilidade de arbitragem quando se trata dos danos ambientais próprios, haja vista, a doutrina [4] e jurisprudência [5] predominante têm considerado o direito ao meio ambiente equilibrado como um direito indisponível e, a partir de tal consideração, não tem admitido a arbitragem de questões ambientais. O professor Paulo Affonso Leme Machado [6] afirma que “o direito ao meio ambiente equilibrado, do ponto de vista ecológico, consubstancia-se na conservação das propriedades e das funções naturais desse meio, de forma a permitir a “existência, a evolução e o desenvolvimento dos seres vivos”. Ter direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado equivale a afirmar que há um direito em que não se desequilibre significativamente o meio ambiente.
Logo, o direito a usufruir de um meio ambiente equilibrado não se confunde com a impossibilidade de adoção de medidas rápidas e simplificadas para a solução de seus problemas, inclusive no que se refere à sua recuperação. Aliás, não é ocioso relembra que o § 3º do artigo 36 da Lei nº 9.985/2000 [7], expressamente reconhece a possibilidade de impactos às unidades de conservação de “proteção integral”, determinando o pagamento de “compensação”.
Os conceitos de utilidade pública e interesse social previstos na Lei nº 12.651/2012, e,g,. para a supressão de áreas de preservação permanente significam, de fato, uma arbitragem de interesse feita pelo Estado, desmentindo a tese de direitos indisponíveis. Várias outras normas jurídicas possuem disposições assemelhadas,
A indisponibilidade do direito ao meio ambiente equilibrado, tal como vem sendo interpretada, doutrinária e judicialmente, na prática, é uma “não solução” para o problema ambiental debatido em juízo. O Superior Tribunal de Justiça tem decidido que “a audiência de conciliação mostra-se desnecessária quando a controvérsia envolver direitos indisponíveis, como no caso de danos ao meio ambiente Precedente do STJ: REsp 327.408/RO, Rel. Ministro Franciulli Netto, 2ª Turma, DJ de 14/3/2005”.
Veja-se que o Ministério Público de São Paulo, em dezembro de 1998, ajuizou ação civil pública com vistas a obter reparação de danos ambientais (contaminação de solo e lençol freático). O STJ decidiu o caso em 2016, tendo publicado o acórdão em 2020. Assim, passaram-se 22 longos anos de tramitação da ACP. É desnecessário qualquer comentário adicional. [8]
A Resolução nº 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) instituiu a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário, que serviu de base para a criação do 1º Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania em matéria ambiental do Brasil (Cejusc Ambiental), conforme a Portaria nº 307/2013-PRES (Tribunal de Justiça de Mato Grosso).
A iniciativa visou à atuação em demandas pré-processuais, bem como advindas de ações em curso na Vema e no Juvam de Cuiabá, cuja complexidade e especificidades dos casos permitiam uma abordagem mais adequada por métodos autocompositivos. Com o aprimoramento do fluxo de atuação do Cejusc Ambiental, que propiciou uma gestão mais articulada entre os litigantes, houve um engajamento dos entes públicos e maior efetividade das audiências (mais acordos). [9] Alguns resultados práticos alcançados pelo Cejusc Ambiental:
Entre os anos de 2015 e 2019 foram realizadas mais de 190 audiências pré-processuais, com 85% de acordos, nas quais foram tratados assuntos como acessibilidade e queimadas, resultado de parcerias com município e Ministério Público. Em 2019, as demandas judiciais foram inseridas na nova metodologia, o que trouxe maior qualidade nas resoluções e uma mudança de postura dos envolvidos que se sentem inspirados a promover a conciliação. Dos processos judiciais em tramitação no Cejusc Ambiental, apenas 16% não tiveram sucesso; 84% resultaram em diligência ou acordos significativos. [10]
Solução judicial não resolve
A experimentação levada a efeito pelo Cejusc demonstra de forma indiscutível que a solução judicial litigiosa é ineficaz, custosa e, sobretudo, retórica. No mundo real, ela acarreta uma “não solução” que é camuflada por discursos veementes, como se a decisão judicial acarretasse a resolução do problema. A experiência concreta indica o oposto. Aqui não se quer subalternizar o Poder Judiciário ou o processo civil. O fato é que o modelo é disfuncional. Não é sem motivo que se fala em “processo estruturante” como uma evolução processual que permitirá dar solução a problemas estruturais da sociedade. [11]
Não se duvida de importância do Judiciário como instrumento válido para a solução de conflitos; entretanto, há que se alertar para o fato de que ele, por melhor que sejam as seus intencões e os esforços de seus membros, não é capaz de solucionar os problemas estruturais do País, nem os problemas ambientais que enfrentamos. Entre 2009 e 2019, o CNJ indica o ingresso de 1921 ações tendo como objeto o licenciamento ambiental; 40377 relacionadas a danos ambientais; 2284 sobre áreas de preservação permanente e 2652 relacionadas às infrações administrativas ambientais, além de uma grande quantidade sobre outros temas ambientais. [12]
O número é, simplesmente, inadministrável. Há uma hiperlitigiosidade na área ambiental que, de fato, tem contribuído muito pouco para melhorar as condições ambientais do País, salvo em alguns casos específicos e isolados. Já passou da hora de termos mecanismos que sejam capazes de reduzir os litígios ambientais a números racionais.
São conhecidos casos de licenciamentos ambientais, ou mesmo de remediações de áreas contaminadas, por exemplo, que se prolongam por anos devido a divergências entre órgãos de controle ambiental, Ministério Público e empresas sobre o “how clean is clean?”. A discussão sobre os níveis adequados de descontaminação de um terreno, sobre a “ameaça de uma espécie” e tantas outras têm levado a impasses ambientais e econômicos.
Os impasses surgem, na medida em que, os mecanismos que levam a termos de ajustamento de conduta ou outros documentos assemelhados, não são mediações efetivas, pois não contam com um mediador neutro para conduzir as negociações. Em geral os TAC são firmados sob pressão e, em função disso, passam por diversas renegociações, em perda de tempo, recursos e baixíssima efetividade. No estado do Rio de Janeiro foi notória a discussão sobre o lagarto do rabo verde.
A indicação de painéis técnicos independentes que fossem escolhidos pelas partes poderia ser um fator muito relevante para a solução de questões que se “arrastam” há anos sem uma solução visível. Julgo interessante que, assim como foi feito pelo CNJ, os órgãos ambientais pudessem estabelecer programas-piloto com vistas a desenvolver mediações dos conflitos.
A solução alternativa de disputas é amplamente praticada pelos órgãos de controle ambiental dos Estados Unidas e tem servido para a redução de custos de transação, proteção ambiental mais colaborativa, diminuição de tempo e, portanto, maiores benefícios ambientais [13]. É de toda conveniência que o Congresso, ou mesmo o Executivo, crie um grupo de trabalho para a elaboração de um Projeto de Lei que trate da urgente matéria.
Aduziu o Ministério Público Federal, na ação, que seria inadmissível que a valoração do dano ambiental provocado pelas empresas Samarco, Vale e BHP ficasse aquém de US$ 43,8 bilhões, reconhecidos pela empresa responsável pela tragédia no Golfo do México. Registre-se apenas que a comparação analógica para a reparação preliminar pretendida neste processo restringiu-se a uma comparação mais jurídica de reconhecimento inicial de estimativa de valor de reparação preliminar do dano para situações semelhantes em relação aos fatores número de vítimas e poluição hídrica.”
O pedido foi convertido em pecúnia. Agora, cabe uma indagação: caso o pedido de R$ 155 bilhões tivesse sido resolvido em acordo de R$ 130 bilhões, o MP teria “transacionado direitos indisponíveis”? Não! As peculiaridades das situações concretas, a dificuldade de produção de prova e a necessidade de rapidez na solução do problema teria sido consideradas e aconselhado o acordo.
Aliás, diariamente, são celebrados termos de ajustamento de conduta (TAC) e transações judiciais pelo MP, sob o pálio da “indisponibilidade de direitos”, mas que envolvem concessões recíprocas. Há diversas decisões do STJ que expressamente reconhecem a legitimidade de transações em matéria ambiental [9].
O direito dos empregados, individuais ou coletivos, são considerados indisponíveis; apesar disso são perfeitamente arbitráveis, inclusive por disposição constitucional. De fato, o § 1º do artigo 114 da Constituição [10] estabelece que, no âmbito do direito coletivo do trabalho, frustrada a negociação coletiva, as partes poderão eleger árbitros. A CLT, por sua vez, também admite a arbitragem, desde que prevista no contrato de trabalho e observadas algumas condições [11].
Caso Lage e exemplos internacionais
Em relação à arbitragem levada à efeito contra a administração pública, é útil relembrar a decisão do STF no famoso “Caso Lage” [12], no qual foi reconhecida como legítima a arbitragem contra a Fazenda Nacional. Hoje a arbitragem contra a Fazenda Pública é aceita tranquilamente, sendo objeto de lei, conforme o § 1º do artigo 1º da Lei nº 9.307/1996. Veja-se que o próprio Código Tributário Nacional, desde 1966, já admitia a transação tributária, mediante concessões mútuas [13], assim como a chamada Lei do Petróleo [14].
Alguns exemplos de direitos nacionais indicam que a arbitragem tem sido utilizada em matéria ambiental, na Indonésia o artigo 32 a Lei de Gestão Ambiental [15] admite a indicação de terceira parte (árbitro) para solucionar uma controvérsia ambiental, atribuindo à decisão efeitos vinculantes.
No Japão, há a Lei para a Solução de Disputas sobre Poluição (Pollution Dispute Settlement Law—Act nº 108 of June 1, 1970) [16] que dispõe amplamente sobre arbitragem. A solução alternativa de disputas é amplamente praticada pelos órgãos de controle ambiental dos Estados Unidas da América e tem servido para a redução de custos de transação, proteção ambiental mais colaborativa, diminuição de tempo e, portanto, maiores benefícios ambientais [17].
Na América Latina, pelo menos o Peru [18] e o México [19] se utilizam da arbitragem em matéria ambiental, havendo um projeto de lei na Colômbia [20]. No Peru, a Lei Geral do Ambiente (Lei nº 2861) estabelece em seu artigo 152 que só podem ser submetidas à arbitragem ambiental as “pretensões ambientais determinadas ou determináveis” e que somente podem ser submetidos à arbitragem os casos de:
(1) determinação de valores indenizatórios decorrentes de danos ambientais ou delitos contra o meio ambiente e os recursos naturais;
(2) definição de obrigações compensatórias que possam surgir em um processo administrativo (licenciamento ambiental), sejam monetárias ou não;
(3) controvérsias surgidas em contratos de acesso e aproveitamento de recursos naturais;
(4) precisão para o caso de limitações do direito de propriedade quando da criação e implementação de áreas naturais protegidas;
(5) conflitos entre usuários com direitos “superpostos” e incompatíveis sobre espaços ou recursos naturais sujeitos a ordenamento territorial ou zoneamento.
Obviamente a decisão arbitral não pode contrariar as leis peruanas. Os árbitros podem se certificados pela autoridade nacional ambiental ou por instituições de arbitragem reconhecidas. Há ainda diversos outros argumentos em favor da arbitragem ambiental que serão abordados em futuros artigos.
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NOTAS
[1] ANTUNES, Paulo de Bessa. Exploração de petróleo e segurança jurídica: o caso Newfield, in, Revista Brasileira de Arbitragem e Mediação, volume 33/ 2012. Abril – 2012, pp 17-27
[2] Artigo 1º ……§ 1o A administração pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis. § 2o A autoridade ou o órgão competente da administração pública direta para a celebração de convenção de arbitragem é a mesma para a realização de acordos ou transações.
[3] ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. Barueri: Atlas. 2023. 23ª edição, p. 218.
[4] Essa perspectiva também pode ser assimilada tendo em vista que a violação dos direitos ecológicos acarreta o comprometimento de bens jurídicos de natureza indisponível (….). SARLET, Ingo Wolgang e FENSTERSEIFER, Tiago. Curso de direito ambiental. Rio de janeiro: Forense. 3ª edição. 2022, p. 152
[5] O direito ao meio ambiente equilibrado é indisponível, inalienável e impõe ao Estado e à coletividade obrigações de fazer e não fazer. STF. ADI 7203. Tribunal Pleno. Relator: Ministro Gilmar Mendes. Publicação: 03/05/2023
[6] MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. São Paulo: Editora JusPodivm. 29ª ed. 203, p. 86
[7] Art. 36. ……§ 3o Quando o empreendimento afetar unidade de conservação específica ou sua zona de amortecimento, o licenciamento a que se refere o caput deste artigo só poderá ser concedido mediante autorização do órgão responsável por sua administração, e a unidade afetada, mesmo que não pertencente ao Grupo de Proteção Integral, deverá ser uma das beneficiárias da compensação definida neste artigo.
[8] STJ – REsp: 1537281 SP 2014/0005327-5, Relator: Ministro Herman Benjamin, Julgamento: 10/11/2016, 2ª TURMA, Publicação: DJe 28/08/2020
[9] Disponível em < https://boaspraticas.cnj.jus.br/pratica/530 > acesso em 17/08/2024
[10] Disponível em < https://boaspraticas.cnj.jus.br/pratica/530 > acesso em 17/08/2024
[11] 7- Para a adequada resolução dos litígios estruturais, é preciso que a decisão de mérito seja construída em ambiente colaborativo e democrático, mediante a efetiva compreensão, participação e consideração dos fatos, argumentos, possibilidades e limitações do Estado em relação aos anseios da sociedade civil adequadamente representada no processo, por exemplo, pelos amici curiae e pela Defensoria Pública na função de custos vulnerabilis, permitindo-se que processos judiciais dessa natureza, que revelam as mais profundas mazelas sociais e as mais sombrias faces dos excluídos, sejam utilizados para a construção de caminhos, pontes e soluções que tencionem a resolução definitiva do conflito estrutural em sentido amplo STJ – REsp: 1854842 CE 2019/0160746-3, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 02/06/2020, 3ª TURMA, Data de Publicação: DJe 04/06/2020)
[12] Disponível em < https://paineis.cnj.jus.br/QvAJAXZfc/opendoc.htm?document=qvw_l%2FPainelCNJ.qvw&host=QVS%40neodimio03&anonymous=true&sheet=shResumoDespFT > acesso em 17/08/2024
[13] SIEGEL, Joeph A. Alternative Dispute Resolution in Environmental Enforcement Cases: A Call for Enhanced Assessment and Greater Use, 24 Pace Envtl. L. Rev. 187 (2007) DOI: https://doi.org/10.58948/0738-6206.1058 Disponível em: < https://digitalcommons.pace.edu/pelr/vol24/iss1/8 > acesso em 17/08/2024