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“Teste de Integridade”: Afronta à Dignidade da Pessoa Humana
José dos Santos Carvalho Filho
31/10/2016
Uma das grandes mazelas que assolam o país é, sem nenhuma dúvida, a endêmica corrupção que grassa na sociedade e nos governos em geral. Realmente, dá muita tristeza que não se possa olhar para nenhum lado sem que se encontrem escândalos de desvios de recursos públicos, favorecimentos, busca de vantagens indevidas e outras coisas do gênero, habitualmente com gravames pesados à Administração.
O princípio da moralidade está incluído entre os princípios regentes da Administração Pública, na forma do art. 37, caput, da Constituição. Mas, como já deixamos registrado, “somente quando os administradores estiverem realmente imbuídos de espírito público é que o princípio será efetivamente observado”. (1)
O que é certo é que os atos de improbidade administrativa têm afetado intensamente a governabilidade e provocado grandes lesões ao patrimônio público. Vale considerar, a propósito, que tais atos, além do princípio da moralidade em si, “agridem outros dentre os norteadores da Administração Pública, também relacionados pelo art. 37, caput, da Constituição Federal”. (2) A conclusão é verdadeira: levando em conta a natureza da atividade administrativa, a ofensa à moralidade acaba realmente por irradiar-se por outros postulados administrativos.
Em outra vertente, é imperioso ressaltar que, entre os atos de improbidade, situam-se também os que decorrem de abuso de poder, sob suas modalidades de excesso e desvio de poder, segundo anota Marcelo Figueiredo. Sobre o Constituinte, o autor advertiu: “Almeja o controle objeto da moralidade no caso concreto. A densidade normativa do conceito não pode acarretar ausência de seu controle, sob pena de descumprimento à Constituição”. (3)
Em suma, a improbidade, sobretudo a que se concretiza através da corrupção, é o grande alvo de enfrentamento por parte das instituições e da própria sociedade. Por tal motivo, urge que se ampliem as medidas de combate e se criem algumas outras que se mostrem mais eficazes do que aquelas que existem atualmente.
Exatamente pela necessidade de intensificar o combate à corrupção, que, como todos sabem, põe em risco o próprio regime democrático, é que o Ministério Público Federal, amparado por mais de dois milhões de assinaturas, elaborou um rol de dez medidas de enfrentamento, apresentando-o em forma de projeto ao Poder Legislativo.
Neste breve estudo, pretende-se tecer sucinta consideração sobre uma dessas medidas: o “teste de integridade”. E o que sugere essa figura ? Cuida-se da autorização concedida por lei para que autoridades competentes para a persecução penal – autoridade policial e Ministério Público – simulem determinada situação, na qual oferecem vantagens ilegais para o agente público, com a finalidade de averiguar sua resistência, ou não, à prática de ilícitos.
Tal figura não seria órfã no ordenamento jurídico pátrio; outros sistemas a adotam, como é o caso dos Estados Unidos (Nova York), Inglaterra e Austrália, com o endosso de órgãos do Conselho da Europa. A medida recebeu a denominação de quality assurance check, expressão que, em tradução livre, significa algo como “teste de certeza da qualidade”. Apesar dessa tendência do sistema estrangeiro, tal ferramenta, no direito pátrio, tem recebido mais críticas que aplausos, sendo apresentados vários fundamentos contra a sua instituição.
Um desses fundamentos consiste em que o “teste de integridade” tem praticamente a mesma fisionomia que o condenável “flagrante preparado”, em que se apresenta a figura do “agente provocador”, este, sem dúvida, o elemento propulsor da prática do delito. Ou seja, o crime é perpetrado mediante o impulso e preparação de terceiro, que intervém na esfera subjetiva do autor. No caso, o ardil empregado para o ato traduz a figura do crime impossível, previsto no art. 17 do Código Penal. Por isso, Nelson Hungria denominava o fato de “crime putativo por obra do agente provocador”, como bem consigna Rômulo Moreira. (4) A jurisprudência, aliás, pacificou-se nesse sentido. (5)
Podem invocar-se, porém, outras duas linhas de impugnação argumentativa.
Uma delas reside em que esse tipo de conduta espelha evidente abuso de poder, vale dizer, demonstra um comportamento em que o agente provocador atua em descompasso com os poderes que lhe foram originalmente conferidos. É como alinhava Hely Lopes Meirelles em sua clássica obra: “O abuso de poder ocorre quando a autoridade, embora competente para praticar o ato, ultrapassa os limites de suas atribuições ou se desvia das finalidades administrativas”. (6)
Entretanto, há um segundo aspecto, de grande relevância, que acaba por comprometer a própria constitucionalidade da medida. Com efeito, ela reflete um comportamento ardiloso da autoridade para conseguir determinado resultado. Decerto não é esse o método mais adequado sob o ângulo da ética, pois que o agente provocador cria uma cena falsa e teatral e distorce a conduta do agente “testado”. Ou seja, recorre-se à imoralidade para tentar identificar outra imoralidade. Definitivamente, esse método refoge a qualquer modelo moral.
A proposta fere de morte o princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no art. 1º, III, da Constituição. Estudando o tema, Daniel Sarmento explica que o princípio trata “da pessoa vista como um fim em si, e não como mero instrumento a serviço do Estado, da comunidade ou de terceiros; como merecedora do mesmo respeito e consideração que todas as demais, e não como parte de um estamento na hierarquia social…”. (7) De fato, adotar o regime do “teste de integridade” é converter o agente provocado em instrumento a serviço do Estado, carreando-lhe os ônus que caberiam a este.
Na verdade, não cabe ao Estado perscrutar a intenção, remota ou imediata, do agente, mas, ao contrário, deve ser-lhe exigido que reúna os elementos necessários à comprovação de que o agente cometeu efetivamente o ato de improbidade, e não instar o indivíduo à autoincriminação. Afinal, como bem consigna Cretella Junior sobre a dignidade da pessoa humana, deve ser “repelido, como aviltante e merecedor de combate, qualquer tipo de comportamento que atente contra esse apanágio do homem”. (8) Fica, pois, flagrante a inconstitucionalidade desse método medieval.
Por fim, não custa relembrar que, a despeito da vontade de todos de enfrentar os altos índices de corrupção em nosso país, não se pode recorrer ao emprego de mecanismos próprios dos regimes tirânicos. Seria, sem dúvida, um retrocesso na democracia.
Irrepreensíveis, pois, as palavras do ilustre advogado Luciano Bandeira: “Quanto existe uma proposta que limita a capacidade de defesa do cidadão perante o Estado, não estamos falando de Justiça e sim de autoritarismo. Até porque, um processo não demora porque existem recursos ou advogados, mas pela incapacidade de gestão eficiente da máquina pública, especialmente do Poder Judiciário”. (9)
Como até este momento não houve a votação do projeto, ainda é tempo de expungir esse mecanismo autoritário e kafkiano da futura lei que regerá as novas medidas contra a corrupção.
NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
(1) JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO, Manual de direito administrativo, Gen/Atlas, 30 ª ed., 2016, pág. 22.
(2) PEDRO ROBERTO DECOMAIN, Improbidade administrativa, 2007, pág. 24.
(3) MARCELO FIGUEIREDO, Probidade administrativa, Malheiros, 5ª Ed., 2004, pág. 42.
(4) RÔMULO MOREIRA, no trabalho Teste de integridade proposto pelo MPF e incompatível com a Constituição, site Consultor Jurídico (conjur.com.br), acesso em 18.10.2016.
(5) STF, Súmula 145.
(6) HELY LOPES MEIRELLES, Direito administrativo brasileiro, Malheiros, 39ª ed., 2013, pág. 117.
(7) DANIEL SARMENTO, Dignidade da pessoa humana, Forum, 2016, pág. 92.
(8) JOSÉ CRETELLA JUNIOR, Comentários à Constituição de 1988, Forense Univ., vol. I, 1989, pág. 139.
(9) LUCIANO BANDEIRA, Retrocesso na democracia, publicado no jornal “O Globo”, de 17.10.2016.
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