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Sanções premiais e o acordo de não persecução civil
Rafael Carvalho Rezende Oliveira
03/06/2022
por Rafael Carvalho Rezende Oliveira e Marcelo Mazzola
Em qualquer sociedade organizada, normas são fundamentais para viabilizar o convívio em harmonia[1]. Sem pautas de conduta definidas, prevaleceriam a desordem e a insegurança.
De um modo geral, cabe ao Estado fiscalizar o cumprimento das normas. E uma de suas ferramentas é a sanção, considerada instrumento de direcionamento social[2].
A sanção tanto pode ter uma feição negativa (punir os transgressores) como uma conotação positiva (premiar comportamentos). Ou seja, punir é apenas uma forma de disciplinar, mas não a única.
Como assinala Maurício Benevides Filho[3], a sanção jurídica é uma reação ou retribuição prevista no ordenamento, que tanto pode ter uma conotação negativa (punir o sujeito que pratica um ato antijurídico) como uma feição positiva (premiar o indivíduo que adota o comportamento esperado).
Em termos simples, é a consequência prevista pelo ordenamento jurídico, “seja ela negativa (repressiva) ou positiva (premial), que será imputada a um determinado sujeito que deixou de observar ou que observa este mesmo ordenamento”[4].
Neste artigo, examinar-se-á a potencialidade das sanções premiais[5] previstas no acordo de não persecução civil (ANPC), no contexto da Lei de Improbidade Administrativa.
Contexto sobre as sanções premiais
Inicialmente, não se pode perder de vista que, no decorrer do tempo, a “técnica punitiva revelou-se muito simplista e inadequada, impondo um recurso cada vez mais frequente à técnica promocional”[6]. Nesse contexto, a lógica premial passou a ser incrementada como forma de induzir os homens a se comportarem de acordo com aquilo que as normas jurídicas buscam encorajar.
Como pontuam Heloisa Carpena e Renata Ortenblad[7], independentemente dos argumentos dogmáticos e da defesa retórica, “é preciso atentar para dados da realidade e resgatar a função da ordem jurídica, que é a de aperfeiçoar o convívio social, estimulando comportamentos desejáveis e reprimindo os indesejados”.
Nesse compasso, as sanções premiais – que podem conviver pacificamente com as sanções punitivas[8] – propiciam a criação de um círculo retroalimentante de positividade, funcionando como indutores de comportamentos, o que favorece o cumprimento antecipado de metas e obrigações.
Lei da Improbidade Administrativa e ANPC
Recentemente, a Lei nº 14.230/2021, que alterou a Lei nº 8.429/1992 (Lei da Improbidade Administrativa – LIA), revogou o art. 17, § 1º , que havia sido alterado pelo pacote “Anticrime”, e incluiu o art. 17-B para prever a possibilidade de o Ministério Público, conforme as circunstâncias do caso concreto, celebrar o ANPC.
Tal acordo pode ser celebrado “antes da investigação de apuração do ilícito, no curso da ação de improbidade ou no momento da execução da sentença condenatória” (art. 17-B, § 4º), e deve ser homologado judicialmente.
Registre-se que o ANPC deve observar as “vantagens, para o interesse público, da rápida solução do caso” (art. 17-B, § 2º), podendo, ainda, contemplar mecanismos “de incentivo à denúncia de irregularidades”, além de outras medidas em favor do interesse público e boas práticas administrativas (art. 17-B, § 6º). Trata-se, portanto, de terreno altamente frutífero para as sanções premiais.
Na prática, o ANPC constitui instrumento de autocomposição no âmbito da improbidade administrativa, uma espécie de pactum de não petendo[9], que, a rigor, engloba questões de direito material (por exemplo, sanções, ressarcimento do dano) e de direito processual (por exemplo, a própria não judicialização). Em tais arranjos, é possível que os envolvidos criem “trocas entre direito material e direito processual, um trade-off entre formalidades processuais e benefícios no campo do direito material”.[10]
De acordo com o art. 17-B da LIA, o Ministério Público pode celebrar o ANPC, conforme as circunstâncias do caso concreto, que deve prever, no mínimo: (i) o integral ressarcimento do dano[11]; e (ii) a reversão à pessoa jurídica lesada da vantagem indevida obtida, ainda que oriunda de agentes privados.
As referidas medidas, que devem integrar obrigatoriamente o ANPC, não possuem natureza sancionatória, mas reparatória[12]. Com efeito, o legislador não exigiu a previsão obrigatória de sanções no acordo, o que abre caminho para o afastamento integral das sanções ou, eventualmente, para definição das sanções que sejam proporcionais no caso concreto.
Respeitado o conteúdo reparatório obrigatório, o órgão ministerial tem discricionariedade para definir o conteúdo do acordo juntamente com o acusado, observando-se o princípio da proporcionalidade e os parâmetros fixados no art. 17-B, § 2º, da LIA, quais sejam: (i) a personalidade do agente, (ii) a natureza, (iii) as circunstâncias, (iv) a gravidade, (v) a repercussão social do ato de improbidade e (vi) as vantagens, para o interesse público, da rápida solução do caso.
Entendemos que não há obrigatoriedade para oferecimento do ANPC por parte do Ministério Público, mas revela-se possível e recomendável que o referido órgão estabeleça, por meio de atos normativos, parâmetros objetivos para propositura dos acordos e seus respectivos conteúdos pelos seus respectivos membros, com o intuito de garantir maior racionalidade e isonomia, sem afastar a discricionariedade inerente à atuação de cada membro do Parquet[13].
Note-se que, de acordo com o art. 17-B, § 1º, da LIA, a celebração do ANPC depende do preenchimento dos seguintes requisitos cumulativos: (i) da oitiva do ente federativo lesado, em momento anterior ou posterior à propositura da ação; (ii) de aprovação, no prazo de até 60 (sessenta) dias, pelo órgão do Ministério Público competente para apreciar as promoções de arquivamento de inquéritos civis, se anterior ao ajuizamento da ação; e (iii) de homologação judicial, independentemente se o acordo ocorrer antes ou depois do ajuizamento da ação de improbidade administrativa.
Na hipótese de descumprimento do ANPC, o investigado ou o demandado ficará impedido de celebrar novo acordo pelo prazo de 5 (cinco) anos, contado do conhecimento pelo Ministério Público do efetivo descumprimento (art. 17-B, § 7º, da LIA).
Nesse contexto, ressalvadas as exigências mínimas previstas no art. 17-B, I e II, da LIA, que, como visto, possuem caráter reparatório, existe ampla margem de discricionariedade para os interessados negociarem o conteúdo do acordo, inclusive com a fixação de sanções premiais.
Por meio das sanções premiais estipuladas no ANPC, o que se quer é estimular determinado comportamento não obrigatório (a denúncia de irregularidades, o cumprimento antecipado de obrigações etc.). A mesma lógica, portanto, das sanções premiais legais (o destinatário da norma não é obrigado a praticar a conduta, mas se adotar o comportamento esperado fará jus ao prêmio).
Sanções premiais no ANPC
Parece claro que a estipulação de sanções premiais no ANPC pode auxiliar no equacionamento do conflito, com inegáveis benefícios para o interesse público.
Do ponto de vista processual (especialmente em relação aos acordos celebrados no curso da ação e na fase de execução da sentença condenatória), as sanções premiais previstas no ANPC são capazes de valorizar a eficiência processual, a duração razoável do processo, entre outras garantias processuais. Isso porque, os prêmios previstos no ANPC podem acelerar o desfecho da causa, o cumprimento antecipado de obrigações e a própria devolução de valores à pessoa jurídica lesada.
No campo material, o ANPC, além de prever a obrigação de ressarcimento do dano e de devolução da vantagem indevida, pode ser utilizado para institucionalização de “mecanismos e procedimentos internos de integridade, de auditoria e de incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica, se for o caso”, de modo a contribuir para prevenção de futuros atos ilícitos, na forma autorizada pelo art. 17-B, § 6º, da LIA.
Apenas a título de contribuição, cabe imaginar algumas sanções premiais cabíveis no ANPC.
Por exemplo, poderiam os envolvidos estabelecer a previsão de desconto para pagamento à vista ou antecipado do valor avençado, como forma de estimular a efetivação do cumprimento das obrigações financeiras do acordo. A vantagem, nesse caso, seria o recebimento mais célere do valor indicado no acordo para as obrigações financeiras assumidas pelo investigado/demandado, o que justificaria a concessão do desconto.
Outra possibilidade seria a estipulação de obrigações de fazer e da realização de investimentos em substituição do valor da multa, com a fixação de metas e benefícios ao investigado/demandado, caso o adimplemento ocorra antes dos respectivos marcos temporais.
Imagine-se, por exemplo, que, ao invés de impor multa à determinada empresa por violação à legislação ambiental, o ANPC preveja que o montante equivalente seja investido, pela própria empresa (poluidora), na restauração do meio ambiente (compensações ambientais)[14]em diferentes etapas. No acordo, pode-se ajustar que, se o investigado/denunciado realizar sua obrigação antes da meta fixada, terá uma vantagem na próxima fase (por exemplo, mais tempo ou mesmo a redução do montante a investir etc.)
Nessa hipótese específica, o acordo pode satisfazer com maior intensidade o resultado subjacente à própria sanção de improbidade, qual seja, a restauração do dano gerado pela atuação ilícita do acusado da prática do ato de improbidade. Em vez de aplicar a multa e cobrá-la, pela via administrativa e/ou judicial, com a consequente (e potencial) arrecadação e posterior aplicação dos recursos na restauração do bem jurídico lesado, o órgão competente, por meio do ANPC, estabeleceria a obrigação de o agente regulado investir o mesmo montante diretamente na recuperação do dano causado, evitando desperdício de tempo e de recursos públicos, prevendo-se, ainda, benefícios ao investigado/demandando, caso as metas traçadas sejam antecipadas.
Em outro cenário, também é possível prever que, se o pagamento do valor relativo ao ressarcimento ao erário for realizado de forma antecipada ao previsto no ANPC, afastar-se-á determinada sanção prevista no acordo (ex: o pagamento antecipado do montante estipulado para o ressarcimento ao erário poderia justificar exclusão da multa ou da proibição de contratar com o Poder Público).
Enfim, são múltiplas as possibilidades. Não se pretende esgotar as situações, mas apenas pavimentar o terreno para que a lógica premial seja prestigiada no ANPC.
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Sobre os autores
Rafael Carvalho Rezende Oliveira
Pós-Doutor pela Fordham University School of Law (Nova York). Doutor em Direito pela UVA-RJ. Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-RJ. Especialista em Direito do Estado pela UERJ. Professor Titular de Direito Administrativo do IBMEC. Professor do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Direito – Mestrado e Doutorado do PPGD/UVA. Professor do Mestrado Acadêmico em Direito da Universidade Cândido Mendes. Professor de Direito Administrativo da EMERJ e do curso FORUM. Professor dos cursos de Pós-Graduação da FGV e Cândido Mendes. Membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio de Janeiro (IDAERJ). Presidente do Conselho editorial interno da Revista Brasileira de Alternative Dispute Resolution (RBADR). Membro da lista de árbitros do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA). Ex-Defensor Público Federal. Procurador do Município do Rio de Janeiro. Sócio-fundador do escritório Rafael Oliveira Advogados Associados. Árbitro e consultor jurídico. E-mail: contato@roaa.adv.br.
Marcelo Mazzola
Doutor e Mestre em Direito Processual pela UERJ. Professor da EMERJ. Coordenador de Processo Civil da Escola Superior de Advocacia (ESA/RJ) e da Associação Brasileira de Propriedade Intelectual (ABPI). Vice-Presidente de Propriedade Intelectual do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro) e do Instituto Carioca de Processo Civil (ICPC). Advogado.
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NOTAS
[1]DURKHEIM, Émile. Les règles de la méthode sociologique. Paris: Flammarion, 2010.
[2]BOBBIO, Norberto. Dalla struttura alla funzione – Nuovi studi di teoria del diritto. Milano: Edizioni di Comunità, 1977, p. 87.
[3]BENEVIDES FILHO, Mauricio. O que é sanção? Revista da Faculdade de Direito, Fortaleza, v. 34, n. 1, p. 355-373, jan./jun. 2013 Disponível em http://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/11850/1/2013_art_mbenevidesfilho.pdf. Acesso em: 12.05.2022.
[4] LIGERO, Gilberto Notário. Sanções Processuais por Improbidade na Execução Civil.Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Direito. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2014, p. 37.
[5] A expressão sanção premial já está positivada na a) lei (ex: capítulo IV da Lei Complementar nº 29/2004, do Município de Mogi das Cruzes/SP); b) doutrina (ex: BENEVIDES FILHO, Mauricio. A sanção premial no direito.Brasília: Brasília Jurídica, 1999; MAZZOLA, Marcelo. Sanções premiais no processo civil: previsão legal, estipulação convencional e proposta de sistematização (standards) para sua fixação judicial. São Paulo: JusPodivm, 2022); e c) jurisprudência (ex: STF, ADI 1.923/DF, Rel. Min. Ayres Britto, Rel. para acórdão Min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, DJe 17.12.2015).
[6] MELO FILHO, Álvaro. Introdução ao Direito Premial. Tese submetida como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Ciências Jurídicas. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1975, p. 172-174.
[7]CARPENA, Heloisa; ORTENBLAD, Renata. Ganha mais não leva. Por que o vencido nas ações civis públicas não paga honorários sucumbenciais ao Ministério Público? Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 280, jun./2018, p. 347.
[8] STJ, REsp 1.579.321/SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, DJe 21.02.2018.
[9] CABRAL, Antonio do Passo. Pactum de non petendo: a promessa de não processar no direito brasileiro. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 305, jul./2020, p. 17-43. Na prática, o investigador/demandante relativiza ou exclui algumas sanções que, em tese, poderiam ser aplicadas ao investigado/demandado – deixando de propor a ação de improbidade ou de aguardar o trânsito em julgado da eventual condenação do réu – para implementar desde logo o integral ressarcimento do dano e a reversão à pessoa jurídica lesada da vantagem indevida obtida, sem prejuízo de outras medidas razoáveis que podem ser previstas no acordo para o atendimento do interesse público (art. 17-B, I e II, da LIA, incluído pela Lei nº 14.230/2021). Sob a ótica do investigado/demandado, a assunção do compromisso de ressarcir o dano ao erário e devolver a vantagem indevida recebida à pessoa jurídica lesada, bem como de cumprir outras medidas eventualmente previstas no acordo, são incentivadas pela certeza do afastamento, ainda que parcial, das sanções previstas na LIA (além da própria não judicialização da ação de improbidade).
[10] CABRAL, Antonio do Passo. Da instrumentalidade à materialização do processo: as relações contemporâneas entre direito material e direito processual. Civil Procedure Review, v. 12, n. 2: maio-ago. 2021, p. 87-88; DIDIER JR., Fredie; LIPIANI, Júlia; ARAGÃO, Leandro Santos. Negócios jurídicos processuais em contratos empresariais. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 279, maio/2018, p. 41-42.
[11] Na apuração do valor do dano a ser ressarcido, deverá ser realizada a oitiva do Tribunal de Contas competente, que se manifestará, com indicação dos parâmetros utilizados, no prazo de 90 (noventa) dias, na forma do art. 17-B, § 3º, da LIA.
[12]NEVES, Daniel Amorim Assumpção; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Improbidade Administrativa. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 247-250. No mesmo sentido: STJ, Segunda Turma, AgRg no Ag 1.378.210/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 14.04.2011, DJe 25.04.2011.
[13]NEVES, Daniel Amorim Assumpção; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Comentários à reforma da Lei de Improbidade Administrativa. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 99.
[14] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Novo perfil da regulação estatal: Administração Pública de Resultados e Análise de Impacto Regulatório. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 202.