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Reforma Administrativa ou Reforma Contra os Servidores Públicos Uma Análise Crítica das Propostas de “Modernização” do Estado Brasileiro

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Reforma Administrativa ou Reforma Contra os Servidores Públicos? Uma Análise Crítica das Propostas de “Modernização” do Estado Brasileiro

CONSTITUIÇÃO FEDERAL

REFORMA ADMINISTRATIVA

SERVIDORES PÚBLICOS

STF

Bruno Betti Costa

Bruno Betti Costa

03/09/2025

O debate em torno da chamada reforma administrativa, recorrentemente posicionado na agenda pública como um marco indispensável para a modernização do Estado brasileiro, suscita uma análise aprofundada que transcenda a superfície do discurso político-midiático.

A promessa de eficiência, economicidade e inovação, embora formalmente alinhada aos anseios de uma sociedade que demanda serviços públicos de maior qualidade, oculta, sob uma leitura atenta de suas propostas concretas, uma orientação que se afasta dos paradigmas de uma genuína reestruturação organizacional. Emerge, com contundência, uma questão incômoda e fundamental: estamos diante de uma reforma da Administração Pública, em sua acepção estrutural e funcional, ou, na verdade, de uma reforma contra a figura do servidor público, concebido como o epicentro dos problemas fiscais e operacionais do Estado?

A presente análise se propõe a desvelar as camadas deste debate, demonstrando que o foco das propostas legislativas tem sido a precarização do regime jurídico do funcionalismo e a mitigação de garantias institucionais, em detrimento de uma abordagem sistêmica que efetivamente modernize processos, aperfeiçoe a gestão e fortaleça os mecanismos de integridade.

Capítulo I: A Hermenêutica da Modernização Estatal e a Falácia da Inovação Sem Conteúdo

1.1. O Paradigma da Modernização Administrativa e a Contradição das Propostas Atuais

Uma reforma administrativa genuína, conforme a doutrina mais abalizada do Direito Administrativo e da Ciência da Administração, pressupõe uma intervenção sistêmica e multifacetada nas estruturas, nos processos e na cultura organizacional do aparelho estatal. Tal empreitada deveria orientar-se pela otimização da alocação de recursos, pela digitalização de serviços para ampliar o acesso e a conveniência ao cidadão, pela implementação de modelos de gestão mais ágeis e adaptáveis às dinâmicas sociais contemporâneas e, fundamentalmente, pela inserção da máquina pública na realidade tecnológica e informacional do século XXI. O discurso que ampara as recentes propostas de reforma evoca, de fato, esses ideais, chegando a mencionar o princípio da inovação.

Contudo, o texto normativo que materializa essa retórica não apresenta qualquer mecanismo concreto de inovação. Configura-se, assim, uma contradição gritante e reveladora: proclama-se a modernidade, mas insiste-se em medidas de caráter meramente restritivo e fiscalista, que remontam a modelos arcaicos de gestão de pessoal. Na prática, o que se apresenta ao escrutínio público não é um projeto de reengenharia administrativa, mas uma lista de restrições a direitos e garantias historicamente consolidados dos servidores públicos. A Administração, em sua essência orgânica e procedimental, permanece inalterada, presa a uma lógica burocrática que a própria reforma administrativa alega combater.

1.2. O Discurso Estigmatizante e a Aberração Conceitual na Análise do Serviço Público

A narrativa que confere sustentação política e social a este movimento reformista é notoriamente conhecida e periodicamente requentada: o servidor público não trabalha, representa um custo excessivo para o erário e desfruta de privilégios injustificáveis. Essa construção retórica, frequentemente alimentada por informações descontextualizadas ou deliberadamente distorcidas, consolidou-se em certos segmentos da opinião pública, adquirindo o perigoso status de senso comum. 

No entanto, do ponto de vista técnico e conceitual, trata-se de uma aberração. O funcionalismo público é composto por uma massa heterogênea de trabalhadores que, em sua esmagadora maioria, atuam sob jornadas intensas de trabalho, submetidos a pressões constantes e a um rigoroso escrutínio social e institucional, prestando serviços essenciais e indelegáveis em áreas vitais como saúde, educação, arrecadação tributária, controle interno e externo, e segurança pública. 

A generalização salarial é igualmente falaciosa. Enquanto uma minoria de carreiras de elite aufere remunerações elevadas, um contingente massivo de servidores, especialmente nos âmbitos municipal e estadual, percebe vencimentos modestos, por vezes incompatíveis com a complexidade e a responsabilidade de suas atribuições. Generalizar, neste contexto, é mais do que uma injustiça; é uma desonestidade intelectual que invalida qualquer pretensão de diagnóstico sério sobre os desafios da gestão pública. É inegável a existência de abusos e distorções, mas o caminho racional e republicano para sua correção consiste na aplicação de mecanismos de controle e na implementação de ajustes pontuais, e não na retirada indiscriminada de direitos de toda uma categoria profissional, punindo a regra em nome da exceção.

Capítulo II: A Estabilidade Funcional como Garantia Institucional e a Ameaça à Impessoalidade Administrativa

2.1. A Natureza Jurídica da Estabilidade e sua Função Contramajoritária

Um dos pontos mais emblemáticos e sensíveis do debate é o ataque sistemático à garantia da estabilidade, consagrada no artigo 41 da Constituição Federal. Muitos de seus detratores a defendem como um privilégio anacrônico e injustificado, um entrave à meritocracia e à eficiência. Essa visão, contudo, ignora a natureza jurídica e a finalidade institucional deste instituto. 

A estabilidade não é, e nunca foi concebida como, um privilégio pessoal do servidor. Ao contrário, trata-se de uma garantia institucional de independência funcional, estabelecida em favor do interesse público e da própria Administração. Sua principal função é proteger o agente público contra pressões políticas indevidas, perseguições de natureza partidária e demissões arbitrárias que poderiam ser motivadas por interesses particulares ou de grupos que ascendem transitoriamente ao poder. 

O Supremo Tribunal Federal, em sua função de guardião da Constituição, já reconheceu em diversas ocasiões que a estabilidade não se confunde com um privilégio, mas se qualifica como um instrumento indispensável à proteção do interesse público, ao blindar o servidor contra ingerências que poderiam comprometer a legalidade, a impessoalidade e a moralidade de seus atos. Sem a salvaguarda da estabilidade, abre-se uma perigosa porta para a instrumentalização da máquina pública, para o assédio institucional, para a manipulação de decisões técnicas e para a nomeação de apaniguados em detrimento de profissionais qualificados, representando um retrocesso ao patrimonialismo que a Constituição de 1988 buscou superar.

2.2. O Falso Dilema entre Estabilidade e Eficiência

A narrativa que opõe estabilidade à eficiência parte de uma premissa equivocada. O ordenamento jurídico brasileiro já prevê mecanismos para a demissão de servidores estáveis que não cumpram com seus deveres. A própria Constituição estabelece que a perda do cargo ocorrerá em virtude de sentença judicial transitada em julgado, mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa, ou mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada ampla defesa. 

A ineficiência, a desídia e a improbidade já são, portanto, causas para a demissão. Se tais instrumentos não são aplicados com a devida frequência ou rigor, o problema reside na gestão e na cultura organizacional, e não na garantia constitucional em si. Fragilizar a estabilidade não promoverá, automaticamente, a eficiência. Pelo contrário, poderá gerar um ambiente de insegurança e subserviência, no qual o servidor público, temendo a demissão imotivada, hesitará em fiscalizar, em contrariar ordens ilegais ou em tomar decisões técnicas que desagradem seus superiores hierárquicos ou os detentores do poder político. 

A verdadeira eficiência administrativa é alcançada com investimentos em capacitação, com a definição de metas claras, com sistemas de avaliação de desempenho justos e transparentes, e com a valorização do mérito, e não com a precarização dos vínculos funcionais.

Capítulo III: O Paradoxo Fiscal e o Silêncio Seletivo sobre a Corrupção

3.1. O Mito do Gasto Excessivo e o Papel do Servidor na Recuperação de Ativos

Outro argumento recorrente e central na defesa da reforma administrativa é o de que a folha de pagamento do funcionalismo consome uma parcela “excessiva” dos recursos do Estado, inviabilizando investimentos e políticas públicas. Essa análise, contudo, é frequentemente superficial e seletiva, pois ignora dados que demonstram o oposto: são precisamente os servidores públicos, atuando em órgãos de controle, de arrecadação e de representação judicial do Estado, que recuperam bilhões de reais desviados por esquemas de corrupção e os devolvem aos cofres públicos. 

Levantamentos jornalísticos e dados oficiais corroboram essa realidade. Um levantamento indica que o Brasil já conseguiu reaver mais de R$ 25 bilhões desviados pela corrupção nos últimos anos¹. A Advocacia-Geral da União (AGU), apenas no ano de 2023, ajuizou 2.153 ações de improbidade administrativa e de ressarcimento ao erário, cobrando um total de R$ 3,8 bilhões de origem ilícita, além de ter firmado 1.415 acordos que resultaram em pelo menos R$ 100 milhões em ressarcimentos efetivos². 

Desde 2017, a Controladoria-Geral da União (CGU) e a AGU já garantiram o retorno de R$ 19,3 bilhões por meio de acordos de leniência com empresas envolvidas em atos ilícitos, dos quais R$ 10 bilhões já foram efetivamente pagos³. 

É inegável, portanto, que os servidores públicos são parte fundamental do ciclo de recuperação do patrimônio público, e esses recursos, por eles recuperados, são os que financiam políticas sociais, projetos de infraestrutura e a prestação de serviços essenciais à população. Apresentá-los meramente como um “custo”, ignorando seu papel como “ativo” estratégico na preservação da higidez fiscal, é uma distorção grave da realidade.

3.2. A Contradição Profunda: O Foco nos Servidores e a Negligência no Combate à Corrupção

Há uma contradição ainda mais profunda e reveladora na agenda reformista: por que tanto empenho em reduzir direitos e garantias dos servidores e, em contrapartida, tão pouco esforço legislativo para combater a corrupção sistêmica — esta sim, a verdadeira e incessante sangria dos cofres públicos? Relatórios de organizações da sociedade civil dedicadas ao tema da transparência demonstram um cenário preocupante. Em 2024, segundo a Transparência Internacional, nenhum projeto de lei relevante de combate à corrupção e à lavagem de dinheiro avançou de forma significativa no Congresso Nacional⁴. 

A regulamentação do lobby, um mecanismo essencial para conferir transparência à relação entre interesses públicos e privados, permanece paralisada; a legislação de proteção a denunciantes (whistleblowers) foi abandonada; e a modernização do sistema de prevenção à lavagem de dinheiro foi negligenciada. 

Paralelamente, mecanismos como o chamado “orçamento secreto” e suas variantes subsequentes seguiram corroendo a transparência orçamentária e alimentando a suspeita de irregularidades, com múltiplas investigações em andamento na Procuradoria-Geral da República. Esse modelo, ao pulverizar recursos públicos em municípios com baixa capacidade de fiscalização e controle social, amplia exponencialmente o risco de captura política e desvio de verbas públicas⁵. Enquanto os servidores são publicamente responsabilizados pela crise fiscal, os verdadeiros mecanismos de desperdício, ineficiência e corrupção permanecem não apenas intocados, mas por vezes legitimados por reformas legislativas, como ocorreu com a Lei nº 14.230/2021, que enfraqueceu drasticamente a Lei de Improbidade Administrativa.

Conclusão: A Resposta Incômoda e a Urgência de uma Reforma Administrativa Genuína

Diante do exposto, a resposta à pergunta inicial se torna dolorosamente clara: a chamada reforma administrativa, nos moldes em que tem sido proposta e debatida, não tem como foco a modernização da Administração Pública, mas sim a reconfiguração do regime jurídico dos servidores públicos. É, em sua essência, uma reforma administrativa contra eles. O risco inerente a essa abordagem é evidente e de consequências graves para o futuro do Estado brasileiro: fragilizar o serviço público, desestimular a atração e a retenção de talentos para carreiras técnicas, minar a independência funcional dos agentes estatais e, por fim, abrir um vasto espaço para a manipulação política e o clientelismo. 

A questão final que se impõe é: a quem interessa uma reforma administrativa que desarma o servidor público, o agente responsável pelo controle e pela execução da lei, mas protege e fortalece os mecanismos que viabilizam a corrupção e o mau uso do dinheiro público? Certamente, não ao interesse público. Talvez seja o momento de inverter a lógica do debate: em vez de atacar os servidores, é preciso exigir dos governantes e dos legisladores uma reforma que torne a Administração Pública mais eficiente em seus processos, mais transparente em suas decisões e menos vulnerável à corrupção. Apenas um projeto com essas características poderia, de fato e de direito, merecer o nome de reforma administrativa.

Referências

  1.  Veja. A conta da corrupção: R$ 25 bilhões já retornaram aos cofres públicos. Disponível em: https://veja.abril.com.br/politica/a-conta-da-corrupcao-r-25-bilhoes-ja-retornaram-aos-cofres-publicos/. Acesso em: ago. 2025.
  2.  AGU. Avanços do Brasil na recuperação de dinheiro desviado de corrupção. Disponível em: https://www.gov.br/agu/pt-br/comunicacao/noticias/agu-destaca-avancos-do-brasil-na-recuperacao-de-dinheiro-desviado-de-corrupcao–791820. Acesso em: ago. 2025.
  3.  Congresso em Foco. Acordos de leniência já devolveram R$ 10 bilhões aos cofres públicos. Disponível em: https://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/acordos-de-leniencia-ja-devolveram-r-10-bilhoes-aos-cofres-publicos/. Acesso em: ago. 2025.
  4.  Transparência Internacional Brasil. Retrospectiva 2024: ausência de projetos de combate à corrupção e à lavagem de dinheiro. Disponível em: https://transparenciainternacional.org.br/posts/retrospectiva-2024-ausencia-de-projetos-de-combate-a-corrupcao-e-a-lavagem-de-dinheiro/. Acesso em: ago. 2025.
  5.  Transparência Internacional Brasil. Retrospectiva 2024: os impactos do orçamento secreto. Disponível em: https://transparenciainternacional.org.br/posts/retrospectiva-2024-os-impactos-do-orcamento-secreto/. Acesso em: ago. 2025.

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