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O prazo de defesa e a indisponibilidade de bens na nova Lei de Improbidade Administrativa: aspectos de direito intertemporal
12/01/2022
Alteração das mais significativas no ordenamento jurídico neste ano ocorreu na Lei de Improbidade Administrativa (lei 8.429, de 2 de junho de 1992), por força da lei 14.230, de 25 de outubro de 2021. Diz-se isso tanto pela repercussão que alcançou a discussão sobre o novel marco legislativo, quanto, e principalmente, pela verticalidade da reforma legislativa em si.
Em sumarização que peca pela generalidade, a alteração legislativa versou sobre temas materiais e processuais, envolvendo a discussão dos tipos de improbidade, o elemento subjetivo para sua configuração (dolo e culpa), as sanções aplicáveis, a prescrição da pretensão punitiva (retroativa, inclusive), a extensão da responsabilidade subjetiva, o procedimento para apuração da improbidade, os requisitos para a decretação de indisponibilidade dos bens e sua amplitude etc.
Muito há o que se debater; porém, neste limiar, tem-se apresentado como questão central o debate sobre a aplicação retroativa das alterações legislativas sobre processos pendentes e condenações passadas[1].
A partir disso, o presente texto visa problematizar os impactos dessa moldura legislativa sobre os processos em curso, na dimensão processual em geral, particularmente sobre as alterações relativas ao procedimento, os requisitos para decretação da indisponibilidade dos bens e sua extensão objetiva.
Pois bem, a primeira marca para quem se dedica ao exame do tópico de direito intertemporal na perspectiva processual, é a de que o passado não pode ser calcinado pelas luzes do presente, isto é, o isolamento dos atos processuais (tempus regit actum). O Código de Processo Civil exemplifica tal nos artigos 14, 1.046, 1047, 1.054, 1.057, enquanto assim o faz o Código de Processo Penal no artigo 2º, por exemplo.
O segundo confim do direito intertemporal na disciplina processual é o que estabelece sua aplicação imediata tão logo entre em vigor, como se apreende também dos dispositivos acima alinhados.
Ainda assim, a singeleza desse binário não pode escamotear as dificuldades de sua conjugação nas situações práticas que se apresentam nos processos. Para ficarmos no exemplo sempre lembrado, como resolver o problema de uma lei que altere o prazo de um recurso (para cinco dias, quando antes eram quinze dias), na hipótese em que tal prazo está em curso. A aplicação imediata da lei processual, nesse exemplo, poderia inclusive fulminar o próprio recurso, na situação em que já tenha transcorrido mais de cinco dias do prazo inicial. Certamente, nessa aplicação desmedida, teríamos uma retroatividade da lei[2], o que ofende o disposto no artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição da República Federativa do Brasil).
De outra parte, não é viável simplesmente isolar o ato processual, como fato já consumado, já que, bem vistas as coisas, o ato processual recursal ainda não foi realizado, é apenas uma potencialidade que depende da iniciativa da parte (poder de recorrer).
O problema é que o tempo jurídico[3], ao tentar separar o passado, o presente e o futuro, não encontra uma realidade espacial confinada e seccionada em tais marcos; ao revés, alcança situações em curso, nas quais a força motriz ainda é o desenvolvimento, especificamente em processos que iniciaram antes da alteração legislativa, que se desenvolvem durante tal alteração e certamente finalizar-se-ão em momento posterior a ela.
Portanto, a resolução dos problemas da intertemporalidade no direito processual (a resolução desses conflitos nomológicos), passa pela adequada aplicação imediata da lei aos processos em curso, preservando o que já devidamente realizado (isolamento dos atos processuais) e afastando a aplicação retroativa da novel legislação.
São essas as premissas que conduzem às respostas para as alterações processuais da Lei de Improbidade, principalmente no que toca à alteração procedimental, os requisitos para a concessão da indisponibilidade e sua extensão objetiva.
a) Unificação procedimental da defesa
Como se sabe, a Lei de Improbidade, na sua redação pretérita (fruto da Medida Provisória n.º 2.225-45, de 4 de setembro de 2001), estabelecia um procedimento de defesa bifásico, no qual, proposta a demanda, notifica-se o requerido para apresentar manifestação com suas justificativas e documentos (artigo 17, § 7º, da Lei de Improbidade – redação anterior). Acaso não lograsse êxito em descontruir a imputação de improbidade, o juiz analisaria a inicial, e nada havendo a obstaculizar seu trâmite, admitiria a demanda, quando então o réu seria citado para apresentar contestação no prazo de quinze dias.
Basicamente, tínhamos uma defesa dual, em uma primeira fase destinada à discussão da admissibilidade da própria demanda, sendo sucedida pela apresentação da contestação propriamente dita[4].
Pois bem, uma das alterações legislativas implementadas voltou a unificar a fase de resposta, razão por que o réu é citado desde logo para apresentar sua contestação, com todos os elementos de defesa, ainda que com o prazo maior de trinta dias (artigo 17, § 7º, da Lei de Improbidade – nova redação).
Portanto, entre diversas dinâmicas processuais possíveis, três merecem uma reflexão imediata: i) processos apresentados durante a vigência da lei anterior, mas ainda na fase inicial do seu processamento, pelo que ainda não cientificado o réu sobre sua existência; ii) réu já foi cientificado para apresentar a primeira manifestação, ou já a apresentou, sem que tenha sido recebida ou não a inicial, mas ainda não cientificado para apresentar contestação; iii) réu apresentou a primeira manifestação com base na lei anterior, tendo sido recebida a inicial e cientificado para apresentar contestação.
A primeira situação (i), resolve-se pela aplicação imediata do regramento processual, pelo que o réu será imediatamente citado para apresentar contestação no prazo de trinta dias, na forma da redação atual do § 7º do artigo 17 da Lei de Improbidade. Não existe, por assim dizer, direito adquirido ao regime jurídico processual, ao procedimento pretérito, aplicando-se imediatamente as novas regras processuais.
Da mesma forma, na segunda proposição (ii), o juiz deverá realizar a admissibilidade da demanda (na forma da legislação anterior – isolamento dos atos processuais) e, acaso recebida, determinar a citação do réu para contestar no prazo de trinta dias (artigo 17, § 7º, da Lei de Improbidade – redação nova). Como o réu ainda não foi cientificado para contestar a demanda, não se consolidou o ato processual de comunicação para que realize a contestação na perspectiva da legislação anterior, pois não ocorreu o encapsulamento do ato processual de comunicação[5] e fixação do prazo de contestação.
Tangencialmente, se o réu já foi citado para apresentar contestação com base na lei anterior (iii), ou seja, com prazo de quinze dias (artigo 17, § 7º, da Lei de Improbidade – redação anterior), tendo em vista que já perfectbilizado o ato de comunicação e fixação do prazo de contestação (isolamento dos atos processuais), referido prazo deve ser observado. Por óbvio, nada impede que tal prazo seja estendido pelo juiz, inclusive mediante a injunção da parte, nos termos do inciso VI do artigo 139 do Código de Processo Civil e observando a baliza do parágrafo único desse último dispositivo, tudo a bem da ampla defesa (artigo 5º, inciso LV, da Constituição).
b) Decretação de indisponibilidade dos bens
No ponto, a aplicação do novo regramento da Lei de Improbidade, concernente à indisponibilidade de bens, tem reflexo tanto sobre os requisitos a que se subordina a decretação da indisponibilidade, quanto a sua extensão objetiva.
Lembre-se, consolidado na jurisprudência a possibilidade de decretação da indisponibilidade sem que seja necessária a demonstração de qualquer urgência, a qual estaria presumida judicialmente ante à presença de fortes indícios da prática da improbidade pre[6].
O Superior Tribunal de Justiça chancelou tal perspectiva no seu Tema Repetitivo nº 701: “É possível a decretação da ‘indisponibilidade de bens do promovido em Ação Civil Pública por Ato de Improbidade Administrativa, quando ausente (ou não demonstrada) a prática de atos (ou a sua tentativa) que induzam a conclusão de risco de alienação, oneração ou dilapidação patrimonial de bens do acionado, dificultando ou impossibilitando o eventual ressarcimento futuro‘”.
Ainda, o Superior Tribunal de Justiça validou a possibilidade dessa indisponibilidade recair, para além dos valores supostamente objeto de enriquecimento ilícito ou do dano, sobre os valores da eventual multa civil a ser aplicada: “É possível a inclusão do valor de eventual multa civil na medida de indisponibilidade de bens decretada na ação de improbidade administrativa, inclusive naquelas demandas ajuizadas com esteio na alegada prática de conduta prevista no art. 11 da Lei 8.429/1992, tipificador da ofensa aos princípios nucleares administrativos” (Tema Repetitivo n.º 1055).
Em contraponto, nesses dois aspectos o legislador reformista atuou[7], primeiro para determinar que a decretação da indisponibilidade pressupõe a demonstração efetiva da urgência (artigo 16, §§ 3º e 8º), excluindo-se, ademais, do seu espectro o valor da multa civil (artigo 16, § 10).
Assim sendo, como ficam as indisponibilidades já concedidas sem a demonstração da urgência e abrangendo a multa civil?
Nos processos pendentes de análise, as indisponibilidades devem observar o regramento atual (aplicação imediata do regramento processual), ainda que requerida a cautela no regime revogado.
Porém, nos casos em que já foi decretada a indisponibilidade sob a luz do regime revogado, tais decisões não podem ser consideradas imediatamente ilegais e incorretas, como se houvesse déficit na sua fundamentação ou indevida extensão objetiva no seu alcance. Afinal, ao tempo em que proferidas observavam o respectivo estado da arte.[8].
Nada impede, contudo, que as partes prejudicadas por indisponibilidade deferidas no regime revogado provoquem o Judiciário a reavaliar a cautela dantes deferida à luz do novo quadro legislativo. Não perante as instâncias recursais onde repousam agravos, recursos especiais e etc. (que avaliarão a regularidade da decisão proferida à luz da legislação revogada). Mas sim perante o próprio juízo que originariamente apreciou a medida. Afinal, considerando que a indisponibilidade é uma tutela provisória – como tal revogável e modificável a qualquer tempo – poderá o juiz, eventualmente, rever a medida dantes deferida, por entender que o afrouxamento dos requisitos legais para sua concessão é evento novo que justifica a revogação da cautela.
Típico caso, portanto, para eventual aplicação e consideração do fato jurídico superveniente (CPC, artigos 493 e 933), que visa mediar a relação entre processo e o tempo (acomodação do fio de prumo decisório ao horizonte da vida[9]).
Conclusão
Sem dúvida, essa breve incursão quanto a temas processuais na dimensão do direito intertemporal bem demonstra as dificuldades na aplicação da nova disciplina da Lei de Improbidade sobre os processos em curso, com repercussões práticas inegáveis. Mesmo a existência de premissas fixas para resolução de tais questões (aplicação imediata da legislação processual e isolamento dos atos processuais), ainda que sirvam de luz, não diminuem as zonas cinzentas a serem enfrentadas.
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NOTAS
[1] Já tivemos oportunidade de advertir outrora: “Um dos temas mais subestimados nas reformas legislativas diz respeito ao conflito de leis no tempo ou, como se costuma denominar, o direito intertemporal” (GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, André Vasconcelos; OLIVEIRA JUNIOR, Zulmar Duarte de Oliveira. Comentários ao Código se Processo Civil. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.p. 1603).
[2] “O princípio da irretroatividade é um filho do progresso; estratificou-se evolutivamente; portanto, embora impando de modernismo, retrógrados se revelam os que se insurgem contra ele. Primitivamente imperava a irrestrita aplicabilidade da lei aos fatos anteriores. (…). A irretroatividade constitui a regra. A retroatividade é exceção; como tal, cumpre entendê-la e aplicá-la; deve achar-se expressamente imposta; ou resultar da natureza, da própria essência do novo direito; enfim, ser reconhecível com segurança o mandamento ou preceito em tal sentido; interpreta-se estritamente; na dúvida, não se observa o retrocesso, prevalece o Direito comum” (MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal. São Paulo: Freitas Bastos, 1946. p. 50).
[3] “O tempo jurídico, na fixação dos termos e dos prazos, fatais, peremptórios, improrrogáveis ou prorrogáveis, corta a realidade que dura, distinguindo a legalidade de ontem da legalidade de hoje, separando a validade do que se fez ontem e a invalidade do que fez hoje, o dia útil de hoje e o dia útil de amanhã, a perda e a aquisição, o castigo dos que dormiram até o dia ‘x’ e o prêmio dos que permaneceram em ativa vigília até a data ‘y'” (BATALHA, Wilson de Souza Campos. Direito intertemporal. Rio de Janeiro: Forense, 1980. p. 15).
[4] Esse tema foi objeto de exame lateral no Tema Repetitivo nº 334 do Superior Tribunal de Justiça: “O especialíssimo procedimento estabelecido na Lei 8.429/92, que prevê um juízo de delibação para recebimento da petição inicial (art. 17, §§ 8º e 9º), precedido de notificação do demandado (art. 17, § 7º), somente é aplicável para ações de improbidade administrativa típicas”.
[5] Perceba-se, desimportante para a temática o início do curso do prazo (CPC, artigo 231), porquanto a integração na relação jurídica processual e o estabelecimento do prazo de defesa se dá com o ato de comunicação (CPC, artigos 238 e 240), sendo que a juntada do ato de comunicação só permite o início da contagem do prazo, mas não altera a circunstância de que já integrado o réu a relação processual e cientificado sobre a possibilidade de apresentar contestação.
[6] Embora um dos autores tenha defendido o contrário, o padrão jurisprudencial dirigiu-se em sentido diverso.
[7] Esse é um típico caso que justifica a alteração do padrão jurisprudencial (overruling): “Bom é dizer, nada impede que um tema objeto de precedente seja revisitado pelo Poder Legislativo, ainda que para alterar a solução até então atribuída à questão pelo Poder Judiciário. Teríamos uma espécie de defasagem do precedente, que perde sua substância, a base, a ratio decidendi, pela mudança do paradigma legislativo que levou à sua formação. De ver, o Legislativo em tais circunstâncias normalmente enunciará uma desatualização do programa normativo estatuído pelo precedente, funcionando a atuação legislativa como causa eficiente da alteração do precedente, em virtude dos anseios da sociedade pela mudança. Nada mais, do que o próprio exercício de mediação democrática inerente ao Poder Legislativo. Bem observado o fenômeno, a alteração legislativa não revogará simplesmente o precedente. Mas ao dispor sobre a matéria em sentido diferente daquele, acabará consequentemente levando ao reexame da temática, oferecendo ainda novo material jurídico a permitir e justificar sua modificação.” (JOBIM, Marco Félix; OLIVEIRA JUNIOR, Zulmar Duarte. Súmula, jurisprudência e precedente: da distinção à superação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2021. p. 134).
[8] “Diversamente das penas aplicadas a tipos de improbidade doravante extintos, a indisponibilidade não é sanção. É cautela, garantia. Tema de cunho único e exclusivamente processual. Por isso, o regime a ser aqui aplicado é o da conservação dos atos processuais, na forma do já citado art. 14 do CPC. Não se pode chamar pela retroação benéfica do novo regime, por conta da suposta incidência dos princípios do direito administrativo sancionador da LIA (art. 1º, § 4º, da LIA), eis que não estamos tratando de sanção, mas sim de medida estritamente processual de cunho conservativo” (GAJARDONI, Fernando da Fonseca; CRUZ, Luana Pedrosa de Figueredo; GOMES JR., Luiz Manoel; FAVRETO, Rogerio. Comentários à Nova Lei de Improbidade Administrativa. 5ª ed. São Paulo: RT, 2021, p. 308/309.
[9] GAJARDONI et. al., op. cit., p. 707.