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Funcionário Público – Processo Administrativo – Garantias De Defesa, de J. Guimarães Menegale

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Funcionário Público – Processo Administrativo – Garantias De Defesa, de J. Guimarães Menegale

REVISTA FORENSE 166 — ANO DE 1954

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01/10/2024

– O princípio do contraditório é indissociável da garantia de ampla defesa.

– Como integrantes do processo administrativo, a administração pública e o particular ficam por igual sujeitos às mesmas regalias e obrigações processuais.

CONSULTA

Depois de historiar, com minúcias, a demissão de funcionário a bem do serviço público, propõe a consulta:

I. Poderia o contador ser colhido de surpresa, como foi, para apresentar defesa num inquérito já ultimado, em que figurou apenas como testemunha e não como acusado?

II. Aplicar-se-ão ao caso vertente as normas estatuídas na lei nº 59, de 26 de janeiro de 1948?

III. A não-aplicação dessas normas constitui nulidade insanável?

IV. Constituirão, também, nulidades as ocorrências que focalizamos nas preliminares das defesas apresentadas em face dos dispositivos constantes do artigo 189, nº II, da Constituição federal, art. 89 da Constituição do Estado de São Paulo, e lei estadual nº 59, de 26-1-48, embora nas aludidas defesas não tenham sido citados?

V. É o mandado de segurança remédio idôneo para a decretação judicial da nulidade do processo em causa, com referência à pessoa do contador demitido?

VI. Tornar-se-á indispensável antes de sua interposição o pedido de reconsideração, consoante o disposto no art. 210, nº V, do dec.-lei nº 13.030, de 28-10-42?

PARECER

1. Em meio à fluidez e desordem características do processo administrativo entre nós, um princípio, em todo caso, assoma, por obra de sua índole constitucional, a saber, o da contrariedade, sob cujo pálio se assegura “ampla defesa” ao funcionário público, porventura sujeito a demissão.

2. O princípio do contraditório não importa, apenas, garantia à defesa do direito individual, em conflito com a administração pública mas entende, também com o interêsse, correspondente ao Estado, de dar primazia, para efeito de equilíbrio social e por amor de sua estabilidade mesma, à regularidade do processo e ao conhecimento da verdade, imprescindível à implantação da justiça. “Il contradittorio delle parte si è in pratica dimostrato il mezzo piú eficace ed idoneo ad assicurare la bontà del giudizio e far conoscere la verità”, adverte RANELLETTI (“Le guarentigie della giustizia nella pubblica amministrazione”, nº 15, c). “Si è ammesso” – prossegue, nº 163 – “comme una norma generale dei nostro diritto, in base alla disposizione dell art. 3 dalla legge sul contenzioso amministrativo, per la quale “le autorità amministrative… provvederanno con decreti motivati… ammesse le deduzioni e le osservazioni in scritto delle parti interessati”; e in applicazione del più generale che in ogni controversia, sia giudiziale, sia amministrativa, che si risolva in conflitto di diritti o d’interessi giuridicamente protetti, ogni decisione non possa essere adotatta, senza udire l’altra parte (principio del contradittorio); e nelle considerazione, infine, che nelle controversie amministrative costituisce un altro interesse, morale e politico, dell’amministrazione che tali conflitti siano risolti con la maggiore possibile giustizia ed equità; il che non può avvenire senza il contradittorio”.

3. Depois de enunciar as características do processo administrativo em confronto com o processo civil, acentua FONT-REAULX, “Les Pourvois devant le Conseil d’Etat contre les Décisions des Autres Tribunaux Administratifs”, nº 5:

“Il convient immédiatement d’ajouter qu’au dessus de ces règles communes de la procédure administratives, qui déroulent des textes spéciaux à chaque juridiction, le Conseil d’Etat a mantenu três fermement dans la procédure administrative, avec ou sans textes, en vertu des principes généraux et non écrits de la procédure, l’observation des règles essentielles à l’administration d’une bonne justice. D’après ces règles toutes les juridictions administratives, quelque soit le caractère public ou secret de leur procédure, doivent respecter le droit de défense libre et contradictoire des parties qui doivent notamment avoir à leur disposition toutes les pièces du dossier”.

4. Pacífica a tese da contrariedade, é mister deduzir os corolários que a tornam efetiva. O princípio – vale de pronto, acentuar – é o mesmo que preside ao processo civil: “Le norme amministrative” – consigna SALEMI, “Il Concetto di Parte e la Pubblica Amministrazione nel Processo Civile, Penale e Amministrativo”, -12, nota, 2 – “sono, per noi, in gran parte, norme civile speciali, sia perchè un soggeto diesse è sempre la pubblica amministrazione, sia perchè la materia oggetto è d’indole pubblica”.

Ora, “normalmente” – professa CHIOVENDA, “Instituições”, trad. brasileira, vol. II, nº 242, – “não se pode dispor ” sôbre uma demanda sem ouvir ou citar devidamente a parte contra a qual se propôs (princípio de contraditório: audiatur et altera parte)”.

Não resta dúvida: a administração pública e o particular, seja ou não funcionário, defrontam-se no processo administrativo como as partes no processo civil.

5. Como salientam DUEZ et DEBEURE “Droit Administratif”, pág. 681, as principais formas exigíveis para chegar à decisão disciplinar relacionam-se a esta idéia geral: a garantia da defesa. Desde longo tempo, proclamou o Conselho de Estado a necessidade de perfilhar “as regras essenciais das formas judiciárias que constituem a garantia natural de “todo inculpado”.

A comunicação do dossier antes das medidas disciplinares “é conforme à natureza das coisas”, já que se reconhece, ao interessado o direito de defesa. “Il faut bien que le fonctionnaire connaisse les griefs qui sont articulés contre lui pour pouvoir se défendre et il faut qu’il en ait pris connaissance avant de comparaitre devant la juridiction disciplinaire ou le conseil de discipline pour pouvoir se défendre efficacement”.

Enumera-se, mais, uma série de regras a observar, pôsto não sejam formalmente previstas por textos concernentes ao processo, pois são indispensáveis para assegurar uma real liberdade de defesa, tais como:

– a citação perante o órgão disciplinar e o prazo suficiente para comparecimento: necessário é que o inculpado tenha tempo razoável para preparar a defesa, consistente em memoriais ou explicações verbais;

– o comparecimento perante o órgão disciplinar, com procedimento apropriado para assegurar a liberdade da defesa;

– a motivação da decisão ou do parecer do órgão disciplinar;

– o caráter contraditório dos debates, como nos tribunais.

6. Aludindo ao Estado e á administração pública SALEMI, ob. cit., número 112, conclui:

“Adesso aggiungiano che questi soggeti parti oltre a dare origine al processo, possono compiere una serie di atti necessari per avergli e finnanche darli fine, in base a decisioni provenienti dalla loro volontà. Stanno ed agiscono nel processo sempre a mezzo degli organi legali”. Sem ambargo, “le attività che manifestano nel processo e di alcune sono ad essi esclusive, non permettone d’identificarli completamente alla parte privata. Cioè; sobbene determini una posizione processuale particolare, non é di tal natura da influire sulla qualifica di parte dell’ -amministrazione. La veste di parte rimane sempre inalterata“.

Tutte queste norme giuridiche” insiste, pág. 220 – “chi riguardano ora la capacità di parte ora quella processuale, ora l’assistenza in giudizio, mettono la publica -amministrazione in una posizione, certo, speciale e diversa da quella propria alla parte privata, ma non debbono spingere in inganno e fare dichiarare che la pubblica amministrazione manchi della veste di parte. Perchè a requisiti formali, indispensabili por tale qualifica, non vengo mai meno e non sono mai lesi, piuttosto ne ricevono altri in aggiunta. Possiamo, è vero, travare la spiegazione di queste aggiunte (in maggioranza concernenti la capacità processuale) sopra motivi differenti da quelli che giustificano la qualità della parte privata: ma, lo ripetiamo ancora una volta, il fondamento materiale non ha alcuna importanza per l’esame e la definizione degli istituti processuali”.

7. Como integrantes do processo administrativo, a administração pública e o particular ficam por igual sujeito às mesmas regalias e obrigações processuais. Ora, a relação processual só existe a partir do momento em que uma parte comunicar à outra pelos meios regulares, a intenção de a chamar ao processo, cuja instauração propõe. A citação do funcionário ou particular, é, portanto; insuprível, para comunicar-se vida ao processo, em que a administração pública e êle venham a ser partes. Inconcebível se torna, à vista disso, a possibilidade de surpresa, seja a uma, seja a outro.

8. Importa, neste passo, frisar o que, de resto é curial, e vem a ser que por seu caráter pessoal, elementar, só é possível e válida, a citação a pessoa determinada, aquela, e só aquela, de que depende a integração da instância judicial ou administrativa, uma vez que – lá o define CHIOVENDA, ob. cit., volume II nº 214 – “parte é aquêle que demanda em seu próprio nome (ou em cujo nome é demandada) a atuação de uma vontade da lei e aquêle de quem essa atuação é demandada“.

Seria, impraticável, pois, substituir, a certa altura, uma parte por outra: o que se há de substituir é o processo.

9. Ainda que pareça fatigante, insistamos em que, antes do processo, deve existir um sujeito jurídico, dotado do interêsse de fazer valer um direito, assim se pronuncia SALEMI ob. cit., nº 2. Não podendo, como não pode, fazer justiça por si, tem de endereçar-se necessàriamente à autoridade judiciária, por meio de demanda. Com a citação do sujeito adversário (ato com o qual de regra, se propõe a demanda e é indispensável à estatuição do juiz) inicia-se o procedimento, e o sujeito que demanda ou o que o contradiz, passa, desde o momento, a denominar-se parte. Além disso, o sujeito, que em seu próprio nome abre o processo, ou em face do qual o processo se abre, deve ter interêsse pessoal em reclamar um direito à autoridade judiciária.

10. Outros sujeitos processuais há: nem todos, porém, se consideram partes. Parte, de verdade não se pode qualificar o representante, o terceiro interessado, ou aquêle que, autorizado por outro sujeito do processo, por êle requer, porquanto só são partes os dois sujeitos processuais que, no limiar da ação, surgem para enfrentar-se.

Não se investem, ademais, na qualidade de sujeitos do processo conquanto nêle influem – e, por conseqüência, muito menos na de partes – as testemunhas, os peritos, os advogados, os escrivães, os procuradores. A ilação é que não se permite, em arrepio à concepção fundamental do processo, abranger na relação processual, de sujeito ativo a sujeito passivo, quem quer que, ocasionalmente, ou mesmo indispensàvelmente, exerce no processo função auxiliar ou secundária, pôsto que sua presença concorra para lhe imprimir movimento. Em outras palavras, não será lícito estender a qualquer dêles uma daquelas regalias ou obrigações reservadas ou impostas às partes em litígio, mesmo que se venha. com o desenvolvimento do processo, a observar ou presumir que afirmativa ou nagativamente, o objeto da relação processual interessa a êles.

11. Efetivamente, objeto do processo é aquilo que se demanda, aquilo a que o demandado, em vista da intimação ou notificação, resiste ou se recusa. Ainda o objeto, por conseguinte, é específico da relação processual estabelecida entre as duas partes e só às duas partes – a essas e não outras – diz respeito. Se o objeto passa a constituir motivo da relação entre dois sujeitos, que não êsses, desintegra-se a relação primitiva para dar lugar a outra. Quer dizer: a cada relação processual corresponde um processo.

12. Em suma:

a) são partes, no processo administrativo, a administração pública e o funcionário ou particular;

b) a essas duas partes se deferem as mesmas regalias e obrigações;

c) a relação processual só passa a existir quando a parte demandada toma conhecimento da demanda por via da citação;

d) só é praticável e válida a citação à pessoa que o demandando quer chamar ao processo;

e) não é lícito substituir, no curso do processo, uma das partes que integram, desde o início, a instância;

f) tampouco é possível alterar ou mudar o objeto da relação processual, pois a cada objeto convém um processo diferente.

13. Ora, ao que reza a consulta, certo funcionário, contador municipal, convocado a depor como testemunha em inquérito administrativo para certificar a ocorrência de irregularidades na repartição a que pertence, viu-se, de súbito, converter em acusado e como tal intimado a defender-se e, enfim, sofreu condenação à pena disciplinar radical, qual a de demissão a bem do serviço público. Temos aí, descompassada violação da ordem processual. Propôs-se inquérito administrativo (cuja equivalência ao processo administrativo convém sublinhar, para elucidação de ignaros) com o objetivo de investigar faltas de outro funcionário, e dêsse participava o contador como testemunha. A relação processual era, por conseguinte, estranho o contador. Se passível de inquérito pelo conhecimento superveniente de faltas a êle imputáveis, claro é, e irretorquível, que o novo objeto e o novo sujeito viriam a integrar nova relação processual, determinativa. para constituir-se, de novo processo, autônomo e fiel às regras próprias.

14. Nem a garantia de “ampla defesa”, de cunho constitucional, lhe facultaram, e veremos de que modo. Se o contraditório é princípio impostergável, haverá, axiomàticamente, de intervir no processo, constituído por duas partes legítimas e insubstituíveis – na hipótese a administração pública e o funcionário, a quem se atribuía a autoria das faltas a apurar. O inquérito, de que se trata só visava, e sòmente podia visar, surpreender a culpa do funcionário primitiva e exclusivamente citado que não era o contador; a êsse, ter-se-á, ou não, dispensado a segurança inscrita no art. 189, II, da Constituição; mas unicamente, a êsse, que encarnava o sujeito passivo da relação processual. Evidentemente, para outorgar igual garantia ao contador, haveria que, primeiro, integrá-lo no processo, que só a êle interessasse; para tal fim, entretanto, cumpria citá-lo individuamente, por via regular e com formalidades idênticas às que se observaram em referência ao outro, discriminando-se, ademais, o objeto de litígio. Nem valeria, para acudir aos pressupostos de sua qualificação como parte, que êle conhecesse, como por certo conhecia, na qualidade de testemunha, os fatos e a existência do inquérito sôbre os quais versava. Em conseqüência, careceu da garantia genérica da Constituição, que, todavia, especificamente se lhe deveria ensejar, no processo em que fôsse parte.

15. O dispositivo mesmo do dec. número 13.030 (de resto, como veremos, estranho a êsse procedimento, por impertinente à disciplina dos funcionários municipais) determina, no art. 242, que, ultimado o inquérito, a Comissão mandará, dentro de 48 horas, citar o acusado para, no prazo de 10 dias, apresentar defesa”. Claramente, o acusado não vem a ser aquêle cuja indicação resultou, como tal, das investigações relativas a fato imputado a terceiro, senão aquêle que tal já se indiciava na instauração do processo e à vista disso, fôra citado para se ver processar e julgar, quer dizer, já se constituíra parte.

16. A circunstância indicada pela consulta, de se lhe haver assinado prazo para a defesa (em virtude de dispositivo legal inoperante, por alheio ao processo), não corrige o defeito, nem, portanto, atende ao imperativo, do art. 189, II, da Constituição.

A garantia de ampla defesa entende-se assegurada, não por alguma concessão isolada, fragmentária ou informal, mas antes inscrita na plenitude do procedimento legal, com obediência a regras universalmente firmadas. Uma destas, e inarredável, é a da comunicação integral de seu dossier e documentos que o acompanham, isto é, do material de acusação: “Le fonctionnaire incriminé” – dispõe a lei francesa – “a le droit d’obtenir, aussitôt que l’action disciplinaire est engagée, la communication intégrale de son dossier et de tous documents annexes“. “Logo que se instaure a ação disciplinar”, logo de entrada, logo de início, há de ter o inculpado, com larga antecedência; a nota da acusação, para tomar conhecimento dela e poder-se defender; o Conselho de Estado decidiu que a comunicação “doit être faite assez longtemps à l’avance pour que le fonctionnaire puisse préparer la defense“. Se não se efetiva, logo de princípio e com razoável antecipação, essa providência, não se garante “ampla defesa” ao funcionário. Nem a restabelece a concessão posterior de prazo.

17. Questiona-se, na consulta, se não eram de se lhe aplicar as normas estatuídas na lei nº 59, de 28 de janeiro de 1948, que dispôs sôbre alteração de artigos do Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado de São Paulo.

Vejamos:

“Art. 252. Nomeada a comissão (a de inquérito), esta mandará, dentro de quarenta e oito horas, citar o funcionário para, pessoalmente ou por intermédio de advogado promover sua defesa, que será plena, assegurado o direito de acompanhar e intervir em tôdas as provas e diligências determinadas pela comissão”.

“§ 2º Concluídas as provas determinadas pela comissão, o acusado requererá e produzirá as suas no prazo de quinze dias e, terminadas estas, oferecerá em cinco dias, sua defesa”…

“§ 4º Para tôdas as provas e diligências do processo administrativo, deverá ser notificado, com antecedência de quarenta e oito horas, o acusado ou seu advogado”.

Arremata o art. 253 que “essas normas deverão ser observadas nos processos administrativos em andamento e “ainda não julgados e nos processos contra funcionários municipais“.

Palpita-me que, ao abrigo do preceito constitucional, não há mister, para o contador, a invocação de normas inaplicáveis aos funcionários municipais. Com efeito, a lei nº 59, visando à alteração de dispositivos de decreto-lei editado no regime do Estado Novo, não pode prevalecer no regime da Constituição de 1946, que arrebatou ao governador do Estado a faculdade de legislar e restituiu ao Município a autonomia, que se lhe extorquira.

Na forma do art. 23 da Constituição, “os Estados não intervirão nos Municípios senão para lhes regularizar as finanças“.

Definindo-lhes a autonomia, preceitua o art. 28:

“A autonomia dos Municípios será assegurada:

I, pela eleição do prefeito e dos vereadores;

II, pela administração própria, no que concerne ao seu peculiar interêsse, e especialmente:

a) à decretação e arrecadação dos tributos de sua competência e à aplicação de suas rendas:

b)à organização dos serviços públicos locais“.

Supérfluo se faz encarecer que pertence ao Município, como inerente à organização de seus serviços públicos, de seu peculiar interêsse, regular e manter a disciplina de seu funcionalismo, matéria regulamentar da alçada da Câmara Municipal no exercício de função legislativa. Êsse é um dos meios de lhe assegurar a autonomia, consoante a prescrição constitucional. Ilegítima, pois, mesmo ilegal e inconstitucional é a imposição, por lei estadual, de regras estatutárias dos funcionários do Município. Quanto a êste tópico, será impossível transigir, porque, favorecendo aqui a garantia de ampla defesa do funcionário em processo administrativo, a intromissão o ameaçaria, sempre, com relação a outros, além de contrariar um princípio que, no regime do país, é essencial à estrutura da Federação.

Que desejaria mais, entretanto, o funcionário para a segurança de seu direito de se defender amplamente, que a égide do princípio cardeal, auto-executável e iniludível? Tôda restrição, por mais branda, a êsse postulado carreia consigo a nulidade do ato que molestar o servidor municipal. Regras, como as da lei nº 59, ineficazes quanto aos funcionários do Município, desde que a êste se devolveu a autonomia, servirão só a título de subsídio, para honrar o princípio da garantia hoje em pleno vigor.

18. Depreende-se, pois, que, nulos os atos do processo administrativo, em que tão acintosamente se infringiram regras elementares, nulo por conseqüência; absolutamente nulo, nulo entre todos e mais que todos, é o ato final, resultado frustrâneo dos demais, aquêle que fechou a cadeia das nulidades ali assinaladas, isto é, o da demissão do contador, arbitràriamente transformado de testemunha em sujeito do processo, sem a citação regular e formal que o qualificasse como parte. Mesmo que (pôsto de parte o ditame constitucional) a lei não preveja a nulidade dos atos, assim falsificados, o defeito é mortal, porquanto, na esfera do direito administrativo, mais que alhures, os atos de processo não são nulos ùnicamente nos casos em que a lei expressamente prescreveu a nulidade, mas também quando lhes falece uma só que seja das condições prescritas para sua validade. Quod nullum est nullum producit effectum.

19. O direito do funcionário à manutenção no cargo só perece por efeito de ato administrativo válido, isento, portanto, de nulidade: atingido por ato nulo, padece violência ilegal. Não há necessidade de exame ou debate maior. Manter-se no cargo, que lhe pertence, exercer a função correspondente e auferir a contraprestação na forma de vencimento, desde que não se apure, em processo regular, no qual se lhe garanta ampla defesa, falta grave que o inabilite, constitui, para o funcionário, direito líquido e certo. Para resguardar-se da ilegalidade, resta ao lesado o apêlo ao mandado de segurança.

Não se sabe de ato mais típico de violência do que o do esbulho de um cargo público por via de processo radicalmente nulo, coma aquêle em que se julga e condena quem não é sujeito da relação processual.

20. Seria de relevar-se a nulidade, se não se produzissem conseqüências danosas ao funcionário, cujo direito afetou; uma vez, porém, que teve por decorrência privá-lo do exercício de direito líquido e certo, não há controverter que lhe cabe vingá-lo por via de segurança. Não se poderia, aliás, objetar que se trata de matéria complexa a exigir larga pesquisa de fatos ou consideração de provas, porquanto o juiz não se verá na contingência de apreciar se a demissão foi justa ou injusta, se é, na verdade, procedente a acusação, se os fatos, que se lhe imputam, são ou não são verídicos, mas apenas se o ato demissório se precedeu de processo regular, com observância das formalidades essenciais, sem as quais não se garante ao funcionário a amplitude da defesa, que a Constituição impõe.

21. O gênio do instituto do mandado de segurança pressupõe rapidez do processo. Não se compreende que a garantia do direito individual, ameaçado ou ferido por ilegalidade ou abuso do poder, fique à mercê de recursos hierárquicos, com a protelação dos quais se eternize a ação lesiva, para aflição e prejuízo material e moral do lesado. Por essa razão, obfirmou-se a jurisprudência dos tribunais em que a data, de que deflui o prazo para impetrar o writ, é a do ato violador do direito, do ato ilegal ou abusívo, e não a daquele que, liquidando os recursos administrativos, mais não faz que o confirmar. Demais a mais, na preservação da garantia individual, sôbre a qual se estende a proteção direta e irresistível do dispositivo da Constituição, nada há que solicitar à generosidade da administração pública, na pessoa de qualquer de suas autoridades, por graduada que seja.

Caso é, por conseguinte, de se impetrar, logo, a segurança.

Rio de Janeiro, 21 de maio de 1956. – J. Guimarães Menegale, advogado no Distrito Federal.

LEIA TAMBÉM O PRIMEIRO VOLUME DA REVISTA FORENSE

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