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REVISTA FORENSE
A especificidade da segurança jurídica
Revista Forense
28/12/2020
Revista Forense – Volume 432 – ANO 116
JUNHO – DEZEMBRO DE 2020
Semestral
ISSN 0102-8413
FUNDADA EM 1904
PUBLICAÇÃO NACIONAL DE DOUTRINA, JURISPRUDÊNCIA E LEGISLAÇÃO
FUNDADORES
Mendes Pimentel
Estevão Pinto
Edmundo Lins
DIRETORES
José Manoel de Arruda Alvim Netto – Livre-Docente e Doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Eduardo Arruda Alvim – Doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/FADISP
SUMÁRIO REVISTA FORENSE – VOLUME 432
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- Da constitucionalidade da execução civil extrajudicial: análise dogmática do PL 6.204/2019 – Joel Dias Figueira Júnior
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- A especificidade da segurança jurídica – Jules Michelet Pereira Queiroz e Silva
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- Quando a política entra em campo (ou em quadra): liberdade de expressão de atletas vs. harmonia esportiva – Eneida Desiree Salgado e Guilherme Consul Charles
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LEIA O ARTIGO:
Resumo: O trabalho busca indicar as especificidades estruturais e eficaciais da segurança jurídica enquanto norma da espécie princípio. Para fazê-lo, inicialmente discute quais critérios distinguem os princípios de outras categorias normativas, como regras e postulados. Os princípios são definidos em função de sua estrutura finalística e prospectiva, e de sua eficácia interna e externa, que demandam aplicação por correspondência com um estado de coisas ideal promovido pela norma. A segurança jurídica se mostra um protoprincípio que é pressuposto da aplicação das demais normas jurídicas, sendo sua estrutura incidente sobre realidades jurídicas e seu peso axiológico incomensurável em face de outros princípios. Ademais, quanto à sua eficácia, a segurança jurídica apresenta-se como uma razão absoluta de eficácia definitiva e não uniforme.
Palavras-chave: princípios; segurança jurídica; estrutura; eficácia; incomensurabilidade.
Abstract: This paper seeks to indicate the specifics of the structure and effectiveness of legal certainty as a norm, particularly a principle. To do so, it initially discusses which criteria distinguish the principles from other normative categories, such as rules and postulates. The principles are defined according to their finalistic and prospective structure, and their internal and external effectiveness, which require application by correspondence with an ideal state of affairs promoted by the standard. Legal certainty proves to be a proto-principle, in the sense that it is an assumption to the application of other legal norms. It’s structure affects legal realities and its axiological weight is immeasurable in regard to other principles. In addition, regarding its effectiveness, legal certainty is presented as an absolute reason, with definitive and non-uniform effectiveness.
Keywords: principles; legal certainty; structure; effectiveness; incommensurability.
Sumário: INTRODUÇÃO; 1.PRINCÍPIOS JURÍDICOS; 1.1. REGRAS, PRINCÍPIOS E POSTULADOS; 1.2. ESTRUTURA DOS PRINCÍPIOS; 1.3. Eficácia dos Princípios; 1.3.1. Interna x externa;1.3.2. Prima facie x pro tanto; 2. ESPECIFICIDADE DA SEGURANÇA JURÍDICA COMO (PROTO)PRINCÍPIO; 2.1. Estrutura; 2.1.1. Incidência sobre realidades jurídicas; 2.1.2. Incomensurabilidade; 2.2. Eficácia; 2.2.1. Definitiva; 2.2.2. Não uniforme; CONCLUSÕES; REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem o objetivo de delimitar as peculiaridades estruturais e eficaciais da segurança jurídica como norma da espécie princípio. Noutros termos, buscar-se-á demonstrar em que aspectos a segurança jurídica difere de princípios outros e quais são as consequências práticas dessa distinção no processo decisório.
É relevante, portanto, esclarecer que o objeto do estudo pressuporá a segurança jurídica como parte integrante de um sistema jurídico. Isso porque o conceito de “segurança jurídica” pode denotar significados diversos.
Há literatura que define a segurança jurídica como uma condição pressuposta do próprio Direito, integrante de uma moralidade que é definitória do próprio sistema jurídico[1]. Nessa acepção externa, a segurança jurídica é uma condição que preexiste e conforma o Direito, sendo ela um elemento cuja ausência desconfigura a própria ideia de sistema jurídico.
Outras concepções definem a segurança jurídica como um valor metajurídico formulado no campo da ética pública[2]. Como valor, a segurança jurídica não é por si uma norma, mas sim o objeto de tutela por outras normas jurídicas, visto que é socialmente desejável. Nesse sentido, Alfredo Augusto Becker afirma que uma das funções do Direito Positivo é conferir certeza à incerteza das relações sociais[3]. Essa firmação traz implícito um significado de segurança jurídica como um valor externo para o qual o Direito e suas normas são instrumentos.
A expressão “segurança jurídica” também pode se referir a um estado de fato. Isso ocorre de maneira bastante frequente na jurisprudência. Na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 101[4], em que se discutia constitucionalidade de atos normativos que restringiam ou proibiam a importação de pneus usados, o Supremo Tribunal Federal considerou que a multiplicidade de ações judiciais, nos diversos graus de jurisdição, nas quais têm-se interpretações e decisões divergentes sobre a matéria gerava uma situação de insegurança jurídica. No sentido utilizado nessa decisão, a segurança/insegurança jurídica são premissas fáticas do raciocínio dedutivo para a aplicação do Direito.
Não são irrelevantes ao Direito essas concepções alternativas de segurança jurídica. Na realidade, as perspectivas axiológica e factual da segurança jurídica podem ser objeto de estudo de uma perspectiva dogmática e, assim, compor a estrutura da argumentação. De outro lado, a perspectiva da segurança jurídica como elemento definidor do Direito é relevante em uma análise filosófica ou sociológica da questão. O presente trabalho, todavia, busca enfrentar especificamente a perspectiva jurídica, no sentido normativo do problema.
A relevância do tema decorre das necessidades impostas por uma perspectiva argumentativa do Direito. Ao se admitir que a interpretação e a aplicação das normas não envolvem apenas atos de conhecimento (descrição), mas também atos de vontade (adscrição e criação de sentidos), passa a ser relevante uma teoria a respeito da estruturação dos argumentos jurídicos que permitem esses procedimentos. Com efeito, quando se adota uma perspectiva estrutural-argumentativa do Direito, é preciso desenvolver uma teoria das normas que permita identificar a natureza da descrição normativa, sua justificação e os termos da contribuição para a decisão[5]. O estudo também se justifica pelo caráter sistêmico do Direito e sua dependência de normas e interpretação. Isso porque são justamente esses aspectosestruturais-normativos que apartam a argumentação jurídica das demais formas de argumentação[6].
A questão da estrutura e eficácia normativa da segurança jurídica tem importância prática para evitar o uso desse princípio como mero artifício retórico, isto é, que a segurança jurídica seja invocada como valor abstrato para justificar condutas voluntaristas no âmbito da decisão. Como se verá, os princípios têm eficácias integrativa, criando regras específicas decorrentes de seu campo de atuação, e bloqueadora, impedindo a incidência de outras normas contrárias que prima facie seriam aplicáveis a determinado caso. Dadas essas propriedades, compreender como se dá o comportamento eficacial do princípio é essencial para a controlabilidade decisional.
Ademais, a segurança jurídica tem estrutura e eficácia distintas em relação aos demais princípios, como se demonstrará. Uma das peculiaridades é seu caráter reflexivo, na medida em que é possível vislumbrar contradições internas ao próprio princípio da segurança jurídica. Essa reflexividade pode ser ilustrada com um exemplo. Imagine-se que determinado Município confere às empresas que se instalem em seu território e criem determinada quantidade de vagas de emprego uma isenção fiscal sem o amparo de lei. Essa situação coloca em confronto, de um lado, o princípio da legalidade, que impede a concessão de benefícios fiscais sem o devido processo legislativo, e do outro o princípio da proteção da confiança dos contribuintes que fizeram investimentos baseados no ato normativo municipal. Ora, as duas normas em conflito são na verdade subprincípios em relação ao sobreprincípio da segurança jurídica. Por isso, configura-se nessa situação necessidade de resolver um conflito normativo interno e reflexivo da própria segurança jurídica.
Para realizar os objetivos do trabalho, será este dividido em duas partes.
A primeira parte cuidará de definir o que são princípios em contraposição a outras espécies normativas – regras e postulados – e explicar as propriedades daquela espécie no que diz respeito à estrutura e eficácia. Ao estudar as propriedades dos princípios, são firmadas premissas teóricas que posteriormente podem ser utilizadas como critérios de controlabilidade decisional com base nesse tipo de norma.
A segunda parte do trabalho, tomando por base as premissas adotadas na primeira, destacará em que aspectos a segurança jurídica difere dos demais princípios, bem como justificará o porquê dessas distinções. Antes de realizar a distinção, contudo, é preciso justificar porque a segurança jurídica seria um princípio. Por fim, o apontamento das especificidades estruturais e eficaciais da segurança jurídica permitirá, à guisa de conclusão, estabelecer critérios para a correta aplicação do princípio em casos concretos.
1. PRINCÍPIOS JURÍDICOS
1.1. REGRAS, PRINCÍPIOS E POSTULADOS
A definição dos princípios demanda a distinção deles em relação às demais espécies de normas: as regras e os postulados.
As normas são uma categoria classicamente descrita pelo positivismo. Kelsen definiu a norma como um ato de prescrição, permissão ou proibição de comportamentos[7]. Nesse sentido, a norma seria um comando de um ente competente que obriga seu destinatário a um comportamento em detrimento de sua vontade individual. É preciso observar que a definição inicial de “norma” por Kelsen tem uma grande identidade com a ideia de “regra”, ou seja, uma norma de estrutura hipotético-condicional, com a forma “se [H], então [C]”.
A definição de “norma” de Kelsen foi complementada por Hart[8], segundo o qual o Direito tem uma textura aberta. Isso significa dizer que o Direito só pode determinar previamente certo número de situações por intermédio de regras, as quais regem comportamentos, de maneira que haverá sempre um grande número de casos em que, ausente uma regra claramente aplicável, a consequência jurídica decorrerá de poder normativo (rule-making power) de um agente. Esse poder normativo em situações não expressamente previstas por regras é denominado discricionariedade.
A noção de “norma” de Kelsen foi também objeto de análise por Esser, que identificou outra espécie normativa dotada de maior abstração e generalidade: os princípios. Os princípios, ao contrário das “normas”, não estabelecem diretamente um comando vinculante, mas apenas fundamentos para a expedição deles[9]. Larenz, por sua vez, identifica os princípios como normas abertas e móveis, sem hipóteses e consequências determinadas, na medida em que sua amplitude não é definida de antemão, anteriormente à aplicação ao caso concreto[10]. Pode-se afirmar que autores como Esser e Larenz estabelecem uma distinção estrutural entre princípios e regras.
Kelsen vai de encontro à tese de Esser, negando caráter efetivamente jurídico aos princípios[11]. Para Kelsen, os princípios políticos, morais e consuetudinários somente são jurídicos na medida em que influenciam a criação de normas pelas autoridades competentes. Embora um princípio possa, portanto, influenciar uma decisão, o faz apenas indiretamente, pois o fundamento de validade de uma norma individual e concreta é o Direito Positivo.
Canaris compreende os princípios como estruturas que conferem unidade axiológica ao sistema jurídico[12]. Delimita os princípios como espécies normativas sem pretensão de exclusividade na decisão, que podem entrar em contradição entre si, gerando complementação e restrição recíproca[13]. Mais importante, Canaris compreende que os princípios carecem de concretização por outras normas, sejam subprincípios ou regras, visto que seu caráter abstrato impede a determinação imediata de consequências jurídicas[14]. Nesse sentido, pode-se denominar eficacial a distinção proposta por Canaris entre os princípios e outras espécies normativas.
De outro lado, voltando à discussão pertinente ao common law, a noção de discricionariedade de Hart é objeto de crítica de diversos autores, em especial Dworkin[15]. Para este, a concepção positivista de Hart é incompleta, uma vez que a discricionariedade dos juízes não é apenas limitada por regras, mas também por princípios decorrentes de noções de racionalidade, justiça e efetividade. Em uma visão mais crítica e completa da discricionariedade, portanto, percebe-se que ela é limitada não apenas por regras determinadas, mas por normas de caráter indeterminado.
Como se vê, ao contrário de Esser, Larenz e Canaris, Dworkin propõe uma distinção conflitual entre princípios e regras[16]. Para ele, as regras são aplicadas por uma sistemática de “tudo ou nada”, pois ou uma regra é aplicável a um dado caso ou é inválida. Os princípios, por outro lado, teriam uma dimensão de peso ou importância. Quando dois princípios colidem, um deles deverá resolver o caso, mas tomando em conta a importância relativa do outro. Não há, portanto, a invalidade de um princípio decorrente de seu afastamento em um caso concreto.
Alexy aborda os princípios por conhecida definição como mandamentos de otimização[17]. Para Alexy, os princípios são comandos para que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades fáticas e jurídicas postas. Ocorre que o âmbito de possibilidades jurídicas é dado no momento da colisão de regras e princípios, ou seja, no momento da aplicação do princípio ao caso concreto, sem possibilidade de delimitação apriorística. Ao contrário dos princípios, as regras já contêm em seu bojo a delimitação daquilo que é jurídica e faticamente possível de implementação. Noutros termos, ao contrário das regras, os princípios carecem de ponderação para a sua aplicação. Isso posto, pode-se dizer que a proposta de distinção de Alexy é conflitual, indo ao encontro daquela proposta por Dworkin.
Autores lusitanos, como é o caso de Canotilho[18], na esteira de Alexy, acolhe a noção de princípios como normas que estabelecem o dever de realização de algo na maior medida possível dentro de seus limites fáticos e jurídicos, caracterizando-os, por conseguinte, como normas ponderáveis por natureza. Também a doutrina brasileira, em grande medida, prestigia a distinção conflitual de Dworkin e Alexy[19].
É possível notar, portanto, que há distinções estruturais, eficaciais e conflituais entre os princípios e as regras. Essas distinções são na realidade observações parciais da comparação, na medida em que tanto aspectos de estrutura quanto de eficácia são relevantes para separar as duas espécies normativas. Outrossim, o comportamento normativo perante o conflito também se mostra relevante, mas é decorrente das diferenças estruturais entre princípios e regras. Além disso, a distinção conflitual não é definidora dos princípios, mas sim uma propriedade contingente à aplicação de alguns deles.
São esses três pontos abordados por Humberto Ávila em obra seminal a respeito dos princípios[20]. Ávila não apenas conjuga, mas aprimora as propostas estrutural, eficacial e conflitual em uma perspectiva da teoria das normas. Para o autor, três são os aspectos distintivos entre regras e princípios: a natureza do comportamento prescritivo, da justificação exigida e a medida de contribuição para a decisão.
Pela abordagem de Ávila, as regras são imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência. A aplicação das regras exige a avaliação da correspondência entre a construção conceitual da descrição normativa (hipótese) e a construção conceitual dos fatos, sendo essa correspondência avaliada sempre em face da finalidade ou aos princípios que lhes dão suporte. Já os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e parcialidade, cuja aplicação demanda uma correlação entre um estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção.
A escolha de uma estrutura regulatória ou principiológica pelo legislador tem objetivo de alocar o momento de decisão entre o passado e o futuro. Ao ordenar um caso por regras, o legislador toma previamente uma decisão geral e abstrata a ser aplicada, enquanto o ordenamento por princípios fixa fins a serem buscados pelo legislador, projetando para o futuro a decisão final sobre a conduta a ser adotada, o que confere margem de apreciação ao aplicador para adaptar a decisão às particularidades do caso concreto[21]. A ordenação por princípios e regras consiste em um balanceamento de flexibilidade e estabilidade do sistema jurídico.
Para ilustrar a distinção entre as formas de ordenar comportamentos, pode-se dizer que a regra é o caminho e o princípio é o destino. Como coloca Lewis Caroll em “Alice no País das Maravilhas”, se você não sabe para onde ir, qualquer caminho serve. Essa singela ilustração permite compreender o papel unificador dos princípios preceituado por Canaris na textura aberta proposta por Hart. Nem sempre será possível ao legislador definir o caminho. Mas se o aplicador ou intérprete conhece o destino ao qual chegar, pode escolher ou mesmo criar caminhos que o conduzam. Esse caminho pode se consistir em uma linha reta, em uma solução evidente, bem como linhas com curvas que permitam desviar de obstáculos encontrados na rota, desde que perseguido o destino prescrito. A ordenação do comportamento pelos princípios, portanto, permite uma unidade de finalidades no sistema jurídico mesmo no caso de lacunas aparentes.
Entretanto, os princípios demandam ainda outra distinção, desta vez em face dos postulados. Mantendo a ilustração singela acima referida, se as regras são o caminho e os princípios são o destino, pode-se dizer que os postulados são o mapa.
Não se podem confundir postulados quer com princípios, quer com regras. Embora sejam comumente referidos pela jurisprudência como “princípios”[22], postulados como razoabilidade e proporcionalidade são na verdade pautas normativas de aplicação do Direito[23]. Tais postulados configuram não estados ideais, mas sim critérios de aplicação de normas, de modo que sua classificação como princípios implica uma “abertura” metódica que permite ampliar indevidamente o espectro de atuação do Poder Judiciário sobre os atos dos demais poderes[24].
Observando essas questões, Humberto Ávila define uma categoria normativa de postulados aplicativos, cuja função é estruturar a aplicação concreta do Direito[25]. Em termos de estrutura, os postulados são normas imediatamente metódicas, cuja eficácia é instituir critérios de aplicação de outras normas. Daí o autor referir-se a essa categoria como “normas de segundo grau” ou “metanormas”.
Ávila pontua que os postulados não se confundem com os princípios e regras, pois se situam em um nível diverso, sendo diretrizes de aplicação. Justamente por se situarem em um nível superior, os postulados orientam a aplicação de princípios e regras, não havendo implicação recíproca entre eles e as outras categorias normativas. Ademais, enquanto regras e princípios são normas que orientam o comportamento do Estado e dos cidadãos, os postulados se destinam a orientar a atividade do aplicador e intérprete do Direito, dado seu caráter metódico.
Feita a distinção das diversas espécies normativas, vê-se que podem os princípios ser classificados como normas jurídicas, que têm características estruturais e eficaciais próprias. A distinção conflitual, preceituada por Dworkin e Alexy, como se verá, não é definidora dos princípios, mas sim contingente. Nesse sentido, serão destacadas as características próprias dos princípios, com o objetivo de em seguida destacar as peculiaridades da segurança jurídica.
1.2. ESTRUTURA DOS PRINCÍPIOS
Como foi possível observar até o momento, os princípios têm por estrutura o caráter finalístico e prospectivo. Os princípios estabelecem estados ideais que devem ser alcançados pelo aplicador e pelo intérprete. Com efeito, não têm uma estrutura hipotético-condicional exaustiva como as regras.
Nesse sentido, pode-se dizer que os princípios são normas abertas e genéricas[26]. O caráter aberto ocorre porque o princípio não enumera prévia e exaustivamente as situações em que seria aplicável, tampouco em quais casos pode se deixar de aplicar as consequências prescritas (exceções). O caráter genérico ocorre porque, em função da sua estrutura aberta, demandam a expedição de outras normas para sua concretização, bem como porque esta pode se dar de várias maneiras diferentes.
Como se vê, a concretização de um princípio é o processo argumentativo pelo qual ele é utilizado como premissa para construir uma regra não expressa idônea a resolver uma controvérsia[27].
O caráter finalístico, aberto e genérico dos princípios impede que eles sejam aplicados por subsunção, como ocorre com as regras. A estrutura de um princípio exige que sua aplicação observe a correspondência entre um estado de coisas atual e um estado de coisas ideal que o princípio comanda o intérprete e aplicador a atingir. Trata-se, portanto, de um juízo de correspondência entre situações de fatoreal e ideal, que embora não seja estritamente subsuntivo, tem caráter inegavelmente racional argumentativo. O propósito do princípio é fazer que esses dois estados se aproximem por medidas de concretização.
A estrutura dos princípios permite ao intérprete e aplicador efetivamente criar normas jurídicas necessárias ao alcance do estado de fato preceituado. Daí uma questão importante: pode o intérprete ou aplicador, ao ler um enunciado, escolher se ele veicula uma regra ou um princípio?
Os princípios do Estado de Direito e democrático militam contra esse “poder de escolha”. Esses princípios instituem uma finalidade de que a conduta dos cidadãos seja governada por regras proferidas por seus representantes eleitos[28]. Daí por que não pode o intérprete ou aplicador ignorar uma opção feita pelo legislador de normatizar diretamente um comportamento ou uma finalidade[29]. É dizer: se o legislador indica o caminho, ele em geral deve ser seguido. A escolha do caminho só é livre quando o legislador se limita a indicar o destino. A linguagem, portanto, impõe limites à interpretação dos enunciados. O legislador pode enunciar diretamente um comportamento ou uma finalidade em um dado texto, e esse enunciado distinguirá se exprime uma regra ou um princípio[30].
É preciso vislumbrar que “escolher” interpretar um enunciado como princípio e como regra implica conferir maior ou menor poder de conformação ao próprio intérprete e aplicador. Veja-se como exemplo a interpretação do inciso LVI do art. 5º da Constituição Federal, que dispõe serem inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos. O texto do dispositivo indica poder daí se extrair uma regra, que proíbe o Estado de se utilizar de uma prova ilícita no processo. Em outras palavras, se for produzida uma prova ilícita no processo, então essa prova será inadmissível. Contudo, fosse livre o intérprete a escolher se esse inciso veicula regra ou princípio, poderia propor por exemplo sua ponderação em face de outros princípios como a supremacia do interesse público, a moralidade ou a eficiência, para justificar a utilização de uma prova ilícita em um processo tributário. Tirar uma regra por princípio, ao fim e ao cabo, é uma estratégia para uma interpretação cética e particularista do Direito.
Não se nega, por outro lado, que um mesmo enunciado possa exprimir ao mesmo tempo uma regra e um princípio, ou mesmo um postulado. O devido processo legal (art. 5º, LIV, da Constituição), por exemplo, parte de um enunciado de caráter tridimensional, ora regra, ora postulado, ora princípio[31]. A legalidade tributária (art. 150, I, da Constituição), tem caráter bidimensional, exprimindo um princípio e uma regra[32]. Mesmo nesses casos, quando o fato em exame se subsume ao antecedente do aspecto de regra, não pode o intérprete afastar este em prol do aspecto principiológico. Por exemplo, não se pode interpretar “principiologiamente” a legalidade para ponderá-la com o princípio da solidariedade social (art. 195 da Constituição) para autorizar a cobrança de contribuições previdenciárias sem o devido suporte legislativo.
1.3. Eficácia dos Princípios
1.3.1. Interna x externa
A eficácia dos princípios é definida a partir da sua justificação e do seu grau de contribuição para a decisão. Dessa perspectiva, já se firmou que os princípios são normas imediatamente finalísticas com pretensão de complementaridade e parcialidade, cuja aplicação demanda uma correlação entre um estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção.
A eficácia de uma norma diz respeito à sua capacidade de produzir efeitos, sendo que esta depende tanto da sua relação com outras normas quanto com os fatos sobre os quais ela incide[33]. Daí a eficácia dos princípios poder ser dividida em interna e externa[34]. A eficácia é interna em relação ao sistema normativo, ou seja, compreende as funções eficaciais que relacionam o princípio a outras normas, como outros princípios ou mesmo regras.
A eficácia interna pode ocorrer direta ou indiretamente. Ocorre de forma direta quando um princípio por si só é fundamento para determinada decisão, sem ser intermediado por princípios mais específicos ou regras. O princípio é apto, portanto, a exercer uma função integrativa, fundamentando processos de criação de normas jurídicas na qualidade de argumento pertinente à justificação externa normativa do silogismo[35]. Exemplo dessa eficácia é o enunciado nº 13 da Súmula Vinculante do Supremo Tribunal Federal que veda a prática de nepotismo nos três Poderes do Estado. Entendeu a Suprema Corte que a vedação ao nepotismo não precisa ser veiculada por lei formal, sendo uma aplicação direta dos princípios da moralidade e da impessoalidade previstos pelo art. 37 da Constituição[36].
A eficácia interna pode ainda se configurar indiretamente, nas relações entre um princípio mais amplo (sobreprincípio) e um mais restrito (subprincípio), ou entre um princípio e uma regra. Essas funções eficaciais indiretas remetem ao caráter sistemático estruturante dos princípios apontado por Canaris[37]: de um lado, os princípios se configuram por complementação e restrição recíprocas e, de outro, necessitam muitas vezes de concretização por outros princípios ou regras.
Um princípio mais restrito pode exercer a função de definir um princípio mais amplo (a anterioridade tributária é definidora da segurança jurídica), da mesma forma que o sobreprincípio conforma a interpretação dos seus subprincípios ou de regras (o princípio da segurança jurídica influencia a aplicação do princípio da legalidade). Ainda, um princípio pode bloquear a aplicação de um outro princípio ou de uma regra, criando um cenário de derrotabilidade.
De outro lado, a eficácia é externa quando relaciona um princípio aos fatos sobre os quais ele incide. Nesse sentido, um princípio influencia os fatos ao estabelecer quais deles são pertinentes para sua aplicação, bem como estabelece critérios para a sua valoração. De acordo com a estrutura imediatamente finalística dos princípios, a eficácia externa serve para definir o estado atual de coisas pertinente ao campo de aplicação do princípio, bem como valorar o estado ideal de coisas cuja persecução o princípio impõe. Importa salientar que o Direito exerce uma eficácia conformativa dos próprios fatos sobre os quais incide, ao mesmo tempo que é reciprocamente definido por eles[38]. Basta pensar, por exemplo, no funcionamento de uma fábrica. A depender do ramo do Direito de cuja perspectiva se parta, fatos distintos podem ser tidos como relevantes a solucionar a controvérsia jurídica. Um determinado fator de risco ambiental na fábrica pode ser indiferente do ponto de vista dos princípios do Direito Empresarial, mas de suma relevância para o Direito do Trabalho. Da mesma maneira, a valoração desse fato pode variar: o mesmo fator de risco, do ponto de vista trabalhista, pode ensejar medidas de proteção e indenização ao trabalhador, enquanto do ponto de vista ambiental, ensejar medidas de compensação aos direitos ambientais difusos.
É preciso chamar atenção ao seguinte ponto: a eficácia dos princípios é uma decorrência da sua estrutura, notadamente do seu caráter finalístico, aberto e genérico, o que modifica a sua forma de justificação e contribuição para a decisão. A estrutura comum à maioria dos princípios implica, portanto, funções eficaciais também comuns, embora nem sempre idênticas. O que se verificará na segunda parte deste trabalho é que a própria estrutura da segurança jurídica implica a modificação da sua eficácia.
1.3.2. Prima facie x pro tanto
As distinções conflituais entre regras e princípios, a exemplo daquelas de Dworkin e Alexy, pressupõem como elementar da espécie normativa princípio a ponderabilidade, ou seja, a possibilidade de ter sua eficácia afastada em face de razões contrárias decorrentes de outros princípios de maior peso axiológico.
Nesse sentido, Alexy define os princípios como normas que não contém mandamentos definitivos, mas sim prima facie, no sentido de que embora sejam aplicáveis preliminarmente para a resolução de um caso, em face da ponderação com razões contrárias podem ter sua eficácia completamente afastada como resultado[39]. Também se poderia conceber princípios de eficácia pro tanto, ou seja, ainda que não decisivos, permanecem relevantes durante todo o processo argumentativo. Já as regras teriam eficácia definitiva, uma vez que preveem toda a extensão do seu conteúdo dentro de suas possibilidades jurídicas e fáticas[40]. Uma regra será sempre aplicada aos casos inseridos nos seus pressupostos fáticos e jurídicos.
No entanto, mesmo Alexy admite que uma regra pode deixar de ser aplicada em razões de cláusulas implícitas de exceção, situação na qual perdem seu caráter definitivo[41]. Nesse sentido, reconhece o concebido por Hart, que indica que toda regra traz implícitas causas de defectibilidade, ou seja, exceções em que a aplicabilidade da regra feriria o seu propósito mesmo[42]. O que diferenciaria a eficácia prima facie dos princípios é que ela é atingida em função do peso maior de um princípio antagônico, enquanto no caso das regras ela decorreria de um princípio antagônico não apenas à regra em si, mas também aos princípios formais que a fundamentam[43]. Nisso, Alexy diverge de Dworkin, para quem as regras devem comportar em sua formulação exaustivamente a sua lista de exceções, sob pena de perderem a própria natureza de regra[44].
Por considerar que o caráter prima facie é definidor dos princípios, Alexy rejeita o que denomina “princípios absolutos”[45]. Tais princípios, pela intensidade de sua dimensão de peso, jamais poderiam ser afastados por princípios contrários. A rejeição dessa ideia parte primeiramente da noção de que um princípio absoluto jamais poderia sofrer limitação pelos direitos fundamentais. Se o princípio garante um direito individual, paradoxalmente não poderia ser limitado pelo direito fundamental de outrem. Por isso, entende Alexy que um princípio absoluto jamais seria comparável com um direito individual, e se tutelasse um direito fundamental, jamais poderia ser garantido a mais de um sujeito.
Daí surge o problema de princípios que são “aparentemente” absolutos, como a dignidade da pessoa humana, prevista no art. 1º da Lei Fundamental alemã. Não se conceberia uma situação ou um princípio que afastasse integralmente a inviolabilidade da dignidade humana. A esse argumento responde Alexy que a dignidade humana na Lei Fundamental alemã veicula não apenas um princípio, mas também uma regra, sendo esta que tem eficácia definitiva[46].
Entretanto a definição conflitual de princípio não procede na medida em que a ponderabilidade não é definitória, mas sim contingente a essa espécie normativa, como aponta Ávila[47]. A primeira razão para a discordância é que para que todo princípio fosse ponderável, todos os princípios teriam que estar no mesmo nível normativo.
Princípios são razões para a ação, de maneira que essas razões têm dimensões de maior ou menor força lógica[48]. Uma razão contrária de força lógica maior pode afastar uma razão anterior, que se mostra, então, uma razão prima facie. Mas se uma razão não for afastada por outra contrária, poderá ser uma razão conclusiva ou absoluta[49]. Será conclusiva se ela não tiver sido afastada por uma razão oposta, e será absoluta se não houver caso em que poderá ser afastada por uma razão contrária. Pode-se dizer, portanto, que toda razão absoluta é conclusiva, mas o inverso não é verdadeiro.
O ponto fulcral da crítica a Alexy é que o Direito comporta – e precisa comportar – razões absolutas de decisão. Isso porque há princípios estruturantes do sistema jurídico que, se afastados, acabariam por deformá-lo[50]. No Direito, as razões precisam ter um fim que não pode ser questionado, o que Tercio Sampaio Ferraz denomina inegabilidade dos pontos de partida[51]. Os princípios vão encontrando fundamentação em seus sobreprincípios, e estes nos princípios superiores a eles, até que se cheguem a princípios que conformam o sistema jurídico como um todo. Relativizar esses princípios estruturantes, portanto, não os afasta isoladamente, mas todo o sistema jurídico neles baseado[52].
Veja-se o princípio do Estado de Direito, pelo qual a conduta dos indivíduos e do Estado é governada por normas jurídicas democraticamente produzidas. O Estado de Direito inegavelmente traduz um princípio, um estado de coisas gradualmente desejado cuja conduta o intérprete e o aplicador do Direito devem perseguir. Ao se admitir o afastamento do princípio do Estado de Direito, está-se negando na realidade o próprio Direito. Trata-se, portanto, de uma razão dogmática absoluta, cujo afastamento foge às regras do jogo estabelecido.
Ademais, os princípios, como já visto, têm diversas funções eficaciais. Essa pluralidade de eficácias, somada ao fato de haverem diversos níveis axiológicos de princípios, indica que não há apenas conflitos e interações horizontais, mas também verticais. Com efeito, um subprincípio em “conflito” com seu sobreprincípio não está verdadeiramente em conflito, mas travando uma relação ou de conformidade ou de definição.
Na verdade, a segurança jurídica é justamente um desses princípios estruturantes do sistema que não pode ser afastado. A se admitir que a distinção conflitual é válida, das duas uma: ou não se poderia definir a segurança jurídica como um princípio, ou admitir-se-ia a sua ponderabilidade, desconfigurando os fundamentos do sistema. Nem se poderia afastar esse problema com o argumento de que ela seria uma regra. A complexidade das dimensões e aspectos da segurança jurídica como um todo simplesmente não se coadunam com a estrutura hipotético-condicional de regra.
Tomando por base o exemplo de Alexy, vê-se que a dignidade da pessoa humana é o caso de um princípio imponderável. Sendo o ser humano destinatário da regulação do Direito, não pode ser reduzido a mero objeto[53], sendo esse um sentido essencial da dignidade humana. Contudo, ao contrário do que preceitua Alexy, trata-se de princípio de estrutura finalística, aberta e genérica, a partir do qual não é possível se extrair uma única regra definitória. O princípio da dignidade humana pode sim dar origem a várias regras e princípios decorrentes da sua eficácia integrativa, sendo que essas normas são aquelas que lhe dão concretude, mas com ele próprio não se confundem. Exemplo disso é a regra, consubstanciada no enunciado nº 11 da Súmula Vinculante do Supremo Tribunal Federal, de que somente é lícito o uso de algemas em caso de fundado receio de que o preso ofereça risco a si e aos agentes prisionais. Trata-se de regra concretizadora justamente do princípio da dignidade da pessoa humana, mas que com ela não se confunde. Com efeito, não se pode dizer que a dignidade humana pode ser ponderada com outros princípios – como a moralidade ou a supremacia do interesse público – e isso decorre não do seu caráter de regra, mas sim do seu caráter de princípio estruturante.
Ademais, a constatação de Alexy de que todo princípio deve ser limitado pelos direitos fundamentais e que as garantias por ele propostas devem sê-lo para mais de um sujeito não nega a existência de princípios imponderáveis. Essa constatação implica reconhecer a possibilidade de tensões internas em um princípio estruturante, seja uma contraposição de seu sentido objetivo em face do sentido subjetivo (notadamente com eficácia de proteção e tutela do cidadão) seja na contraposição de posições jurídicas subjetivas nele fundadas. Na segunda parte deste trabalho, será destacado que isso ocorre no caso da segurança jurídica, sendo o problema solucionado por sua eficácia não uniforme.
Conclui-se, portanto, que a eficácia prima facie não é definidora, mas contingente dos princípios. Feito o exame mais genérico dessa categoria normativa, passa-se agora a analisar as especificidades da segurança jurídica.
2. ESPECIFICIDADE DA SEGURANÇA JURÍDICA COMO (PROTO)PRINCÍPIO
A segurança jurídica pode ser definida como uma norma da espécie princípio que exige dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário a adoção de comportamentos que contribuam mais para a existência, em benefício dos cidadãos e na sua perspectiva, de um estado de confiabilidade e de calculabilidade jurídico-racional das estruturas argumentativas reconstruídas de normas gerais e individuais, como instrumento garantidor do respeito à sua capacidade de – sem engano, frustração, surpresa e arbitrariedade – plasmar digna e responsavelmente o seu presente e fazer um planejamento estratégico juridicamente informado do seu futuro[54].
A segurança jurídica pode ser interpretada a partir de diversos fundamentos[55]. Diretamente, a partir da noção de segurança, preceituada pelo art. 5º, caput, da Constituição. Também pode ser indiretamente deduzida a partir de seus sobreprincípios, como o Estado de Direito, a separação dos poderes, o princípio democrático e as garantias de liberdade. Ademais, pode ser extraído por indução de subprincípios que fundamenta, como a legalidade, a moralidade, a anterioridade, entre outros.
Neste capítulo, demonstrar-se-á as peculiaridades estruturais da segurança jurídica como princípio, na medida em que é elemento estrutural do Direito e garante pelo Direito estados ideais que tutelam expectativas do cidadão em face do Estado. Esse caráter estruturante, por conseguinte, implica uma propriedade de incomensurabilidade, na medida em que não admite a posição axiológica da segurança jurídica seu afastamento por razões contrárias.
As peculiaridades estruturais fundantes da segurança jurídica, por sua vez, implicam necessariamente peculiaridades eficaciais, notadamente sua eficácia definitiva e não uniforme.
O conhecimento dessas peculiaridades é essencial para que se compreenda a forma de justificação e as formas de contribuição da segurança jurídica para a decisão de casos concretos.
2.1. Estrutura
2.1.1. Incidência sobre realidades jurídicas
Da própria definição do princípio da segurança jurídica apontada acima, é possível notar que se delimita uma finalidade de certeza do Direito e pelo Direito. Ora, os estados ideais de confiabilidade e de calculabilidade dizem respeito às estruturas argumentativas de interpretação e aplicação do próprio Direito.
Essa definição da segurança jurídica como princípio conformador do Direito é corrente na doutrina. Klaus Vogel preceitua três exigências decorrentes do princípio da segurança jurídica: que o Direito seja determinado; que os procedimentos para sua aplicação estejam disponíveis (eficácia); e que o público em geral tenha a oportunidade de se ajustar às exigências do sistema jurídico[56]. Mas Vogel também admite que a eficácia do Direito demanda alterações no conteúdo preliminar dos enunciados normativos para permitir a sua aplicação, sendo impossível a absoluta estabilidade e determinação, as quais devem se dar em graus[57].
César Garcia Novoa salienta que a segurança jurídica não diz respeito apenas aos atos materiais dos aplicadores do Direito, mas sim à segurança das próprias normas reguladoras do comportamento[58]. Para Novoa, a segurança jurídica demanda, de um lado, segurança de orientação a respeito das possibilidades normativas de relevância e de qualificação dos fatos e, de outro, segurança de realização, a qual demanda que as normas abstratamente postas sejam efetivamente aplicadas nos casos por elas previstos[59].
No mesmo sentido, Canotilho identifica a segurança jurídica como um dever de fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos atos de poder estatais emanados por quaisquer de seus Poderes[60]. Por isso, o autor lusitano, da mesma forma como fazem Vogel e Novoa, destaca que o princípio atua sobre elementos objetivos da ordem jurídica, prevendo aspectos de estabilidade do Direito, segurança de orientação e efetiva realização.
Ramírez, por sua vez, salienta que a segurança jurídica impõe graus de objetividade ao processo argumentativo da decisão judicial, de maneira que esse princípio demanda previsibilidade e controlabilidade do processo decisório[61]. Ao contrário de Vogel, portanto, Ramírez não exige que o Direito seja em si determinado, mas sim que sejam racionais os processos argumentativos necessários à sua aplicação (determinabilidade em detrimento de determinação). Nesse sentido, a segurança jurídica seria a antítese da arbitrariedade e, por conseguinte, um princípio conformador da aplicação do Direito que implica controlabilidade decisional.
Com efeito, de todas essas definições, percebe-se que a segurança jurídica exige que o Direito seja conhecido a partir dos processos argumentativos que o estruturam, de maneira que o poder seja controlável e que o comportamento do Estado não frustre o planejamento corretamente orientado do cidadão. Há, ainda, a necessidade de que o Direito seja confiável em um sentido de eficácia, isto é, que a sua aplicação se dê nos seus próprios termos, não pelo voluntarismo do intérprete e do aplicador.
Essas colocações são relevantes para observar que o princípio da segurança jurídica não atua diretamente sobre fatos, mas sim sobre o próprio Direito[62]. É dizer que a correspondência entre meios e fins imposta pelo princípio da segurança jurídica demanda uma situação de cognoscibilidade, calculabilidade e confiabilidade do Direito, não diretamente dos fatos a ele subjacentes. Nisso está a primeira especificidade do princípio da segurança jurídica ante os demais, cuja eficácia externa se projeta sobre os fatos. Daí se dizer que o Direito é ao mesmo tempo objeto e instrumento do princípio da segurança jurídica.
Assim, ao se afirmar, como fez o Supremo Tribunal Federal na já citada ADPF 101, que uma determinada situação apresenta insegurança jurídica, se está a apontar um cenário normativo desconforme ao estado ideal preceituado pelo princípio da segurança jurídica. Este princípio, em virtude de sua condição estrutural, terá a eficácia de selecionar seu campo de atuação (pertinência) e em seguida valorar as circunstâncias, indicando possíveis rotas de solução para se alcançar a finalidade normativa de confiança.
O art. 30 da Lei de Introdução às Normas no Direito Brasileiro, com a redação da Lei no 13.655/2018, passou a prever que as autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas. Ao fazê-lo, o legislador verteu no Direito positivo a noção aqui evidenciada, de que a segurança jurídica atua não sobre fatos, mas sobre a aplicação do Direito. Trata-se, por expressa disposição da lei, de pressuposto aplicativo do Direito. O aludido art. 30 se revela, nesse desiderato, uma enunciação parcial do princípio da segurança jurídica, embora esclarecedora a respeito da sua natureza.
Considerando que a segurança jurídica incide sobre normas jurídicas, não sobre fatos, seria de se indagar: não seria a segurança jurídica na realidade um postulado? A resposta é negativa. Isso porque, como se estabeleceu na primeira parte deste trabalho, um postulado é uma norma metódica. A segurança jurídica, de acordo com a proposta de definição apresentada, não tem caráter metódico, mas sim finalístico, próprio dos princípios[63]. Embora incida sobre realidades jurídicas, a segurança jurídica não é um mapa, mas sim um destino, instituidora de estados ideais de congnoscibilidade, calculabilidade e confiabilidade do Direito.
2.1.2. Incomensurabilidade
Demonstrou-se, na primeira parte deste trabalho, que a ponderabilidade é uma propriedade contingente dos princípios, não necessária. Ela se verificará nos casos em que princípios situados no mesmo nível axiológico e normativo colidam. No caso da segurança jurídica, por ter caráter estruturante do sistema normativo, descabe vislumbrar situações de ponderação. Como se viu no tópico anterior, o princípio da segurança jurídica verte sobre o Direito, conformando-o e garantindo estados ideais que preceitua. Mostra-se, por conseguinte, um pressuposto de aplicação de outras normas[64].
Na verdade, como a segurança jurídica está profundamente conectada com a noção de eficácia do Direito, conforma até mesmo o processo de interpretação. O intérprete, para garantir a eficácia da lei, deve superar contradições e descontinuidades do sistema jurídico, e isso é uma exigência própria da segurança jurídica[65]. Daí porque ela também não pode ser concebida como absoluta determinação e estabilidade com base em enunciados textuais, mas sim como determinabilidade a partir de critérios argumentativos estruturados.
Essa posição normativa coloca na estrutura do princípio da segurança jurídica uma propriedade de relevo: a incomensurabilidade. A incomensurabilidade ocorre quando bens relevantes não podem ser comparados por uma métrica racional comum sem descaracterizar a sua própria definição[66]. Essa característica decorre da constatação de que os bens (jurídicos, inclusive) são avaliados a depender da sua finalidade. Pode-se, por exemplo, comparar se o gelo é mais frio que a água. Mas não se pode comparar se o gelo é mais frio do que uma música é bela. Não há métrica comum consistente com a própria definição dos bens.
Como já se colocou, portanto, a noção de ponderabilidade falha ao não reconhecer que os bens jurídicos podem ocupar graus hierárquicos e axiológicos diversos. Se isso acontece, inevitavelmente haverá “conflitos” entre eles que não podem ser resolvidos por ponderação, pois não há uma métrica comum a eles a permitir a ponderação com uma finalidade posta. Na verdade, a noção de ponderação como uma propriedade universal é uma perspectiva utilitarista dos princípios, não normativa.
Nesse sentido, em obras mais recentes, Dworkin parece reformular (ou abandorar) a distinção conflitual entre princípios e regras. Em sua obra final sobre a teoria dos valores, passa a pregar a unidade dos valores, o que pode ser sinteticamente definido como a integração e coerência dos valores morais[67]. Em uma nova leitura de Dworkin, Raz aponta que os valores se relacionam entre si, de maneira que podem constituir ou ser constituídos a partir uns dos outros, ou relacionados de outras formas úteis na sua explicação[68]. Isso não significa dizer que os valores são unívocos ou uniformes, mas sim que se relacionam de maneira coerente.
A constatação do próprio Dworkin a respeito da unidade dos valores demonstra, portanto, que a relação conflitual não é a única possível, muito pelo contrário: é contingente. Princípios superiores mais frequentemente fundamentarão princípios mais restritos, enquanto princípios estruturantes verterão sobre todos os demais princípios, não sendo possível vislumbrar casos de verdadeiro conflito.
Assim, um dado princípio não pode ser ponderado com a segurança jurídica de maneira a afastá-la, pois o “conflito” entre eles não é horizontal. Agindo sobre o princípio, a segurança jurídica nem o pondera nem é por ele ponderada, mas sim o conforma aos estados ideais que promove.
Antes de prosseguir à discussão da eficácia, um ponto deve ser objeto de atenção. A constatação de o princípio da segurança jurídica ser incomensurável não o desfigura necessariamente nem em valor nem em elemento definidor do ordenamento jurídico, embora essas possam ser, como demonstrado na introdução, possíveis denotações da expressão “segurança jurídica”. A segurança jurídica como valor não tem caráter normativo, mas sim de objeto de tutela. Já a segurança como elemento definidor de um sistema jurídico o precede, não dele depende. A segurança jurídica como princípio é uma norma, embora seja norma estruturante incomensurável, de maneira que não precede o Direito, mas existe em seu âmbito. Assim como o alicerce faz parte do prédio que sustenta, a segurança jurídica faz parte e sustenta o sistema jurídico.
2.2. Eficácia
2.2.1. Definitiva
Em virtude das suas propriedades estruturais, o princípio da segurança jurídica foge às definições de eficácia prima facie e pro tanto, configurando-se, na verdade, como norma de eficácia definitiva.
Doutrina aponta que o princípio da segurança jurídica está sempre presente onde houver Direito, de maneira que norma jurídica aplicada sem a sua contemplação é um sem-sentido na sistemática do dever ser[69]. Nessa mesma orientação, Peczenik define que a segurança jurídica envolve um binômio de compromisso com a previsibilidade e um critério de aceitabilidade moral das decisões[70]. Com efeito, a segurança jurídica se reveste de caráter justificante do próprio Direito, como já apontado, e não pode ser afastada sob pena de implicar arbítrio de uma decisão, ou seja, transformá-la em não Direito. Esse caráter inafastável, portanto, é decorrente da estrutura de que a segurança jurídica é dotada.
A segurança jurídica não pode ser considerada eficaz meramente prima facie porque não pode ser desconsiderada na conclusão do raciocínio interpretativo. Tampouco será uma razão pro tanto, cuja incidência, embora relevante, não é conclusiva. Assim, a segurança jurídica é uma norma inderrotável, ou seja, não comporta afastamento[71], de maneira ainda mais forte que as regras, que podem ser afastadas em hipóteses de exceções implícitas.
A segurança jurídica, portanto, é uma razão absoluta, no sentido de não poder ser afastada por outras razões. Poder-se-ia, contudo, questionar se os subprincípios que encontram seu fundamento na segurança jurídica não poderiam ser afastados e, via de consequência, seria o próprio sobreprincípio a ser afastado parcialmente.
Entretanto, a segurança jurídica nem é algo inteiramente distinto dos seus elementos e subprincípios, tampouco é a mera soma deles[72]. A segurança jurídica tanto opera por intermédio de seus subprincípios e de regras, funcionando como razão auxiliar[73], como também atua diretamente. Além disso, como se verá no próximo tópico, atua de maneira a configurar e reconfigurar as relações entre as normas dela decorrentes. O princípio da segurança jurídica, portanto, além de ser uma soma de seus subprincípios e regras também tem conteúdo normativo por configurar e reconfigurar as relações entre eles.
Pela estrutura incomensurável e eficácia definitiva, é inadequada a argumentação decisória que busca a ponderação da segurança jurídica em face de outras normas. Veja-se, por exemplo, a argumentação do voto vencedor no Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade no 4.481[74]. Nessa oportunidade, o Supremo Tribunal discutiu a possibilidade de modulação dos efeitos da decisão a respeito da inconstitucionalidade de incentivo fiscal de ICMS concedido unilateralmente pelo Estado do Paraná, em violação ao art. 155, § 2º, XII, “g”, da Constituição. Na oportunidade, o voto do relator consignou expressamente que “a modulação dos efeitos temporais da decisão que declara a inconstitucionalidade decorre da ponderação entre a disposição constitucional tida por violada e os princípios da boa-fé e da segurança jurídica”. Ora, não se poderia no caso concreto ponderar e afastar a segurança jurídica. Na realidade, a questão posta não implicaria a ponderação da segurança jurídica, mas sim a contradição interna eventual de seus elementos constitutivos, de um lado a eficácia da Constituição e, de outro, a proteção da confiança dos contribuintes beneficiados; de um lado a segurança do passado e, de outro, a segurança do futuro.
Para compreender a maneira pela qual se solucionam esses conflitos internos da segurança jurídica, é preciso compreender sua eficácia não uniforme.
2.2.2. Não uniforme
Paulo de Barros Carvalho indica que a segurança jurídica tem uma estatura normativa de sobreprincípio[75]. Trata-se de afirmação com a qual se concorda parcialmente.
De fato, pode-se considerar que a segurança jurídica tem caráter de sobreprincípio na medida em que encadeia sua eficácia internaindireta sobre outros princípios e normas, exercendo funções interpretativa e bloqueadora. Contudo, atua também diretamente como princípio, com eficácia integrativa originária em que atua imediatamente em situações jurídicas não regradas por seus subprincípios, bem como concretizada em regra ou em direito subjetivo, notadamente pelo subprincípio da proteção da confiança[76]. A segurança jurídica, por conseguinte, pode ser definida como princípio intermediário na medida em que ocupa diversos graus de positivação e relacionamento interno.
Entretanto, na eficácia de sobreprincípio, é preciso salientar justamente a questão das contradições internas da segurança jurídica, como já apontado no tópico anterior. Sendo um princípio de diversas formas de atuação, é possível que elementos da segurança jurídica venham a se mostrar contraditórios em determinadas contingências.
Essas contradições internas ensejam uma eficácia reconfiguradora da segurança jurídica[77]. Isso porque, para a realização global dos estados ideais promovidos pelo princípio, alguns de seus subprincípios, regras ou dimensões precisam ter sua eficácia mitigada. É o caso já apontado da manutenção temporária (por modulação de efeitos) de incentivos fiscais concedidos de maneira inconstitucional. Nesses casos, a eficácia do Direito, decorrente da aplicação da regra constitucional que obriga os Estados e Distrito Federal a conferir benefícios fiscais de forma conjunta, não individualmente, tem sua eficácia bloqueada para permitir a implementação de outro aspecto da segurança jurídica, a proteção da confiança legítima.
De outro lado, é possível que um estado ideal (calculabilidade) seja mitigado em favor de outro (confiabilidade), na medida em que se reduz a previsibilidade futura do ordenamento para preservar situações passadas. O oposto também seria possível a depender da situação.
Como se observa, a função reconfiguradora evidencia que a estrutura da segurança jurídica é incomensurável e, de outro lado, sua eficácia é definitiva, pois a segurança jurídica em si permanece sempre presente onde há Direito, no dizer de Barros Carvalho. O que ocorre é que a função reconfiguradora permite delimitar a eficácia dos diversos aspectos da segurança jurídica com a finalidade de aumentar o grau de segurança do Direito amplamente considerado. Daí se vislumbrar que a segurança jurídica é um valor maior do que a mera soma de seus aspectos e subprincípios, devendo ser aplicada com eficácia não uniforme adaptável às diversas situações de colisão interna.
Quando um subprincípio ou regra da segurança jurídica é prestigiado no conflito interno, pode-se dizer que o sobreprincípio exerce sobre ele uma função de suporte, na medida em que ele se mostra mais relevante para uma aplicação global da certeza normativa. No caso, ao prestigiar a proteção da confiança em detrimento da eficácia de uma regra constitucional, o que faz a segurança jurídica é conferir-lhe suporte normativo com maior “peso”.
Um exemplo do Direito comparado pode ilustrar a função de suporte da segurança jurídica sobre seus subprincípios. No caso Weber’s Wine World Handels-GmbH[78], o Tribunal de Justiça da União Europeia discutiu decisão da administração tributária de Viena, Áustria, que negou direito à restituição de imposto sobre bebidas alcóolicas ao contribuinte em virtude de o ônus econômico do tributo ter sido presumidamente repassado a consumidores, nos termos do item 3 do § 185 do respectivo Código Tributário (Wiener Abgabenordnung – WAO)[79]. O que importa destacar dessa decisão é que o Tribunal admitiu que por razões de segurança jurídica os Estados-membros podem limitar na legislação nacional a repetição de tributos que estejam em desacordo com a legislação comunitária[80], como por exemplo estabelecendo prazos de prescrição. Trata essa espécie de norma limitadora de regra de tutela da segurança jurídica em sentido objetivo. Contudo, no caso concreto, entendeu a Corte que o § 185 do WAO, embora fundado em razões de segurança jurídica, violava o mandamento de eficácia da legislação comunitária e o princípio da proteção da confiança[81], sendo ambas as normas também decorrentes da segurança jurídica, mas aqui em sentido subjetivo. Com efeito, o Tribunal conferiu maior peso às normas protetivas de caráter subjetivo em detrimento das restritivas de caráter objetivo, imputando às primeiras maior carga valorativa – ou suporte – decorrente do princípio da segurança jurídica. Com essa argumentação, o tribunal buscou reconfigurar as relações internas da segurança jurídica de modo a dar-lhe maior eficácia global.
Em outro aspecto, havendo um conflito externo de um subprincípio, regra ou direito subjetivo concretizador da segurança jurídica com outras normas, ela pode atuar com função de blindagem, emprestando aos seus derivados o seu caráter global incomensurável e definitivo na argumentação. A função de blindagem, nesse sentido, permite a aplicação de eficácia superior aos subprincípios que teoricamente poderiam ser limitados por razões contrárias, mas que encontram reforço no caráter estrutural da segurança jurídica.
Não bastasse isso, pode-se conceber que a função de blindagem “empresta” caráter estruturante geral a princípios que não o têm. Pode-se conceber, por exemplo, que um subprincípio ou regra fundado na segurança jurídica possa atuar como parâmetro de controle de arguição de descumprimento de preceito fundamental (art. 102, § 1º, da Constituição).
Também é possível, de outro lado, que a eficácia de blindagem exerça influência interpretativa a um subprincípio, no sentido de permitir interpretação extensiva dos enunciados que veiculam subprincípios. É o caso do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do Recurso Extraordinário nº 637.485[82], em que se discutia a possibilidade de um prefeito reeleito por um município candidatar-se ao cargo de alcaide de outra municipalidade (caso do “prefeito itinerante”). A jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral era no sentido de que não havia vedação constitucional a essa prática. Contudo, posteriormente, o TSE modificou sua jurisprudência, vedando a prática. O Supremo Tribunal, embora tenha referendado o entendimento da questão de fundo pelo TSE, entendeu que às decisões do Tribunal Eleitoral que modifiquem sua própria jurisprudência se aplica o princípio da anterioridade eleitoral do art. 16 da Constituição, segundo o qual a lei que modificar o processo eleitoral não será aplicável à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência. Para dar interpretação extensiva ao art. 16 de modo a abranger decisões judiciais, o Supremo destacou que no âmbito eleitoral, a segurança jurídica assume a sua face de princípio da confiança para proteger a estabilização das expectativas de todos aqueles que de alguma forma participam dos prélios eleitorais. A importância fundamental do princípio da segurança jurídica para o regular transcurso dos processos eleitorais está plasmada no princípio da anterioridade eleitoral positivado no art. 16 da Constituição. Com efeito, tratou-se de utilizar a segurança jurídica como fundamento para conferir interpretação extensiva a uma regra dela decorrente.
Tudo isso colocado, deve-se relembrar que os princípios exercem sua eficácia de maneira variada, por uma miríade de funções. O que é peculiar no princípio da segurança jurídica é que a sua eficácia definitiva o obriga a reconfigurar-se internamente, de maneira a conferir flexibilidade a seus subprincípios e regras derivadas na realização do seu objetivo. Daí referir-se à particularidade da eficácia não uniforme da segurança jurídica. Esse caráter não uniforme permite a coexistência dos diversos aspectos da segurança jurídicas, afastando a já citada crítica de Alexy a respeito da existência de “princípios absolutos”.
Essas propriedades estruturais e eficaciais da segurança jurídica, portanto, permitem defini-lo não apenas como sobreprincípio ou como princípio intermediário, mas sim como verdadeiro protoprincípio, uma vez que é pressuposto geral da aplicação das normas e veículo para a garantia da sua efetividade.
CONCLUSÕES
Pelas razões apresentadas ao longo deste trabalho, pode-se concluir que a segurança jurídica é um pressuposto funcional para a aplicação de outras normas, sendo essa a sua especificidade, fundada em dois pontos: sua estrutura (incidente sobre realidades jurídicas e incomensurável) e sua eficácia (definitiva e não uniforme).
O intérprete e o aplicador do Direito devem atentar a essa especificidade do princípio, sob pena de utilizá-lo de maneira inidônea na argumentação. Utilizá-lo de maneira inidônea implica apequenar fundamentos republicanos da Constituição Federal, bem como em relativizar valores cuja inobservância desnatura os próprios fundamentos do sistema jurídico.
Desconhecer ou ignorar a contribuição específica da segurança jurídica para a fundamentação da decisão implica fazer contraposições indevidas, como vislumbrar um conflito entre as noções de justiça e certeza, por exemplo, como se fosse possível dentro das premissas do Direito ter um sem o outro. Nesse ponto, rememore-se a lição de Ramírez, de que a segurança jurídica é um mecanismo de controle decisional que se contrapõe ao arbítrio. Ora, vista a justiça também como proibição ao arbítrio, não há como se conceber um espaço de conflito entre ela e a segurança jurídica. Fala-se, portanto, jamais em oposição, mas sim em uma inevitável conexão entre justiça e segurança[83].
Também seria descabido contrapor, como já se viu ocorrer em algumas decisões judiciais, a segurança jurídica e a eficácia da Constituição ou de suas normas. A eficácia é um elemento da segurança jurídica, no aspecto da segurança de realização, de que os fatos subsumidos na hipótese da norma encontrarão as consequências nela previstas. Com efeito, bloquear a eficácia de dada norma com base na segurança jurídica, como já apontado, é um conflito interno que só se justifica se o resultado do afastamento for um estado maior de segurança. Também nesse caso, portanto, não há de se falar em oposição, mas sim de conexão e, via de consequência, reconfiguração eficacial.
Compreender a estrutura e a eficácia da segurança jurídica implica ter sempre em mente que ela é uma constante, não uma variável a ser circunstancialmente objeto de preocupação. Essa compreensão ampla é ainda um obstáculo para arroubos voluntaristas que buscam realizar valores individuais de justiça sem observar o caráter que a segurança jurídica tem de conformar o direito sobre o qual e pelo qual incide.
SOBRE A AUTORA
JULES MICHELET PEREIRA QUEIROZ E SILVA
Doutorando em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília. Professor do Instituto Brasiliense de Direito Público. Consultor legislativo da Câmara dos Deputados e advogado.
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[4] ADPF 101, Relatora Min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, j. 24.06.2009.
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[13]Idem, pp. 88-95.
[14]Ibidem, p. 96-99.
[15] DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. London: Duckworth, 1997, p. 33-36.
[16]Idem, p. 24-28.
[17] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. Trad. de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 90-91
[18] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2004, p. 1255.
[19] MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 130; BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 277-279.
[20] ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2019, p. 70-90.
[21] SCHAUER, Frederick. Thinking like a lawyer: a new introduction to legal reasoning. Cambridge: Harvard University Press, 2009, p. 194.
[22] Referindo-se à razoabilidade como princípio: STF, RE 625.263 RG, Rel. Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, j. 13.06.2013; referindo-se à proporcionalidade: STF, HC 123.734, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, Tribunal Pleno, j. 03.08.2015.
[23] GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes: a interpretação/aplicação do direito e os princípios. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 135-136.
[24] DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 178.
[25] ÁVILA, Teoria dos princípios…, p. 143-144.
[26] GUASTINI, Riccardo. La interpretación de los documentos normativos. Naucalpan de Juarez: CIIJUS, 2018, p.342-344.
[27] GUASTINI, Riccardo. Ensayos escépticos sobre la interpretación. Puno: Zela, 2018, p. 219.
[28] ÁVILA, Humberto. Constituição, liberdade e interpretação. São Paulo: Malheiros, 2019, p. 38-39.
[29] SCHAUER, ob. cit., p. 192.
[30] ALEXANDER, Larry; SHERWIN, Emily. The rule of rules: morality, rules and the dilemmas of Law. Durham and London: Duke University Press, 2001, p. 159.
[31] ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
[32]Idem.
[33] FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão e dominação. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 208.
[34] ÁVILA, Teoria dos princípios, p. 104-110.
[35] GUASTINI, La interpretación de los documentos…, p. 367.
[36] Nesse sentido: STF, RE 579.651, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 20.08.2018.
[37]Ob. cit., p. 92-99.
[38] TARUFFO, Michele. La prueba. Madrid: Marcial Pons, 2008, p. 17; LAGIER, Daniel Gonzales. Quaestio facti: ensayos sobre prueba, causalidade e acción. Lima: Palestra, 2019; UBERTIS, Giulio. Quaestio facti e quaestio juris. Quaestio facti: Revista internacional sobre razionamento probatorio, n. 1, ano 2020, Madrid, Marcial Pons, p. 70.
[39]Ob. cit., p. 104.
[40]Idem.
[41]Ibidem.
[42] HART, Herbert L. A. The ascription of responsability and rights. Proceedings of the Aristotelian Society, New Series, vol. 49 (1948-1949), p. 171-194.
[43] ALEXY, ob. cit., p. 105.
[44] DWORKIN, ob. cit., p. 24.
[45]Ob. cit., p. 111-114.
[46]Ob. cit., p. 112.
[47] ÁVILA, Teoria dos princípios, p. 130-141.
[48] RAZ, Joseph. Practical reasons and norms. Oxford: Oxford University Press, 1999, p. 25-27.
[49]Idem, p. 27-28.
[50] ÁVILA, Teoria dos princípios, p. 135.
[51]Ob. cit., p. 57.
[52] AARNIO, Aulis. Reason and authority: a treatise on the dynamic paradigm of legal dogmatics. Dartmouth: Ashgate, 1997, p. 119-127.
[53] BVerGE 30, 1 (Abhörurteil).
[54] ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2019, p. 286.
[55]Idem, pp. 219-259.
[56] VOGEL, Klaus. Rechtssicherheit und Rückwirkung zwischen Vernunftrecht und Verfassungsrecht. Juristenzeitung, a. 43, set. 1988, p. 834.
[57]Idem, p. 835.
[58] NOVOA, César García. Aplicación de los tributos y seguridad jurídica. Derecho & Sociedad, Pontificia Universidad Catolica de Peru, Lima, (27), 2006, p. 30.
[59]Idem, p. 28.
[60]Ob. cit., p. 257.
[61] RAMÍREZ, Federico Arcos. La seguridad jurídica en la aplicación judicial del Derecho. De la previsibilidad a la argumentación. Anuario de filosofia del derecho, Sociedad Española de Filosofía Jurídica y Política, nº XIX, jan. 2002, p. 209.
[62] ÁVILA, Teoria da segurança jurídica, p. 698.
[63]Idem, p. 697.
[64] ÁVILA, Teoria da segurança jurídica, p. 694-695.
[65] VANONI, Ezio. Natureza e interpretação das leis tributárias. Trad. de Rubens Gomes de Souza. Rio de Janeiro: Forense, 1932, p. 190.
[66] SUNSTEIN, Cass. Incommensurability and kinds of valuation: some applications in Law. In: CHANG, Ruth. Incommensurability, incomparability and practical reasons. Cambridge: Harvard University Press, 1997, p. 238.
[67] DWORKIN, Ronald. Justice for hedgehogs. Cambridge and London: Harvard University Press, 2011.
[68] RAZ, Joseph. A Hedgehog’s Unity of Value. Oxford Legal Studies Research Paper, nº 32, maio 2014, p. 5.
[69] CARVALHO, Paulo de Barros. O princípio da segurança jurídica em matéria tributária. Revista da Faculdade de Direito, Universidade De São Paulo, nº 98, 2003, p. 174.
[70] PECZENIK, Aleksander. On Law and Reason. Dordrecht: Springer, 2008, p. 25.
[71] GUASTINI, La interpretación de los documentos normativos, p. 343.
[72] ÁVILA, Teoria da segurança jurídica, p. 691-693.
[73] RAZ, Practical reason and norms, p. 33-35.
[74] STF, ADI 4481, Relator Min. Luís Roberto Barroso, Tribunal Pleno, j. 11.03.2015.
[75]Ob. cit., p. 175.
[76] ÁVILA, Teoria da segurança jurídica, p. 685-686.
[77]Idem, p. 680-681.
[78] TJUE, C-147/2001, Quinta Seção, j. 02.10.2003.
[79] “O sujeito passivo na?o tera? direito ao reembolso no caso de a imposic?a?o ser economicamente suportada por um terceiro distinto do sujeito passivo; nesse caso, a reduc?a?o da di?vida fiscal atrave?s de autoliquidac?a?o ou decisa?o de liquidac?a?o na?o dara? lugar a um cre?dito fiscal. Na medida em que uma imposic?a?o assim repercutida na?o tenha ainda sido paga, a autoridade fiscal devera? exigi-la em liquidac?a?o separada.”
[80] § 38 da decisão.
[81] §§ 29, 42 e 44 da decisão.
[82] STF, RE 637.485, Rel. Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, j. 01.08.2012.
[83] ÁVILA, Teoria da segurança jurídica, p. 702.
<CLIQUE E ACESSE O VOL.431>
LEIA TAMBÉM O PRIMEIRO VOLUME DA REVISTA FORENSE
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 1
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