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“Compliance” no setor privado: compromisso com a ética e a lei
José dos Santos Carvalho Filho
17/03/2016
- A literatura jurídica praticamente não fazia qualquer menção ao vocábulo inglês compliance. De certo modo, justificava-se essa omissão pelo fato de que a própria legislação não dava grande importância a essa figura, até mesmo porque ainda não havia sido editada qualquer lei sobre a conduta de pessoas jurídicas do setor privado quando se firmasse um vínculo com a Administração Pública.
- Com o advento da Lei nº 12.846, de 1.8.2013 (Lei Anticorrupção), que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a Administração Pública, nacional e estrangeira, o programa de compliance passou a ser comentado, analisado e discutido não apenas na esfera jurídica, mas também na de administração empresarial do setor privado, na qual passou a ser ora conveniente, ora compulsória, mas sempre importante pelos valores que pretende preservar.
- À guisa de associar o termo à ideia que transmite no idioma pátrio, compliance tem tradução plúrima, mas, para os fins da citada lei, significa compromisso, respeito, obediência, submissão de alguém relativamente a determinado fato ou pessoa. (1) De fato, o núcleo de tais ideias foi o que constituiu alvo da lei, indicando uma exigência a ser cumprida por entidades do setor privado.
- Trata-se, em última análise, do compromisso da pessoa jurídica privada de fazer a coisa certa, vale dizer, de adotar comportamento de observância aos princípios éticos e às normas legais. Modernamente, algumas empresas têm encetado esforços para mudar sua cultura empresarial, com o intuito de optar por uma postura honesta e transparente perante o poder público, clientes, acionistas, fornecedores e prestadores de serviços. Enfim, colocar a ética e a higidez de conduta em posição preponderante à de atropelo de normas e pessoas em prol da busca desenfreada do lucro.
- O programa de compliance ficou expresso na Lei nº 12.846/2013 como requisito para a celebração de acordo de leniência por pessoas jurídicas responsáveis pela prática de atos contra a Administração Pública, mormente os atos de corrupção. Interessante notar que a Lei nº 12.529, de 30.11.2011, que estruturou o sistema brasileiro de defesa da concorrência, embora tenha previsto também o acordo de leniência para infrações da ordem econômica, não incluiu a exigência do programa de compliance para as empresas pactuantes.
- Diferentemente, no entanto, a Lei Anticorrupção trata do programa em dois momentos. Primeiramente, impôs que o acordo de leniência só possa ser celebrado pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, por seus órgãos internos, se a pessoa jurídica autora da infração colaborar efetivamente com as investigações e com o processo administrativo, de modo que da cooperação resulte “o comprometimento da pessoa jurídica na implementação ou na melhoria de mecanismos internos de integridade” (art. 16, IV, Lei 12.846). (2)
- Em segundo lugar, tamanha foi a preocupação do legislador – no caso, o autor da MP 703/2015, que alterou a Lei 12.846 – que a exigência foi repetida. Com efeito, diz a lei que o acordo só pode ser celebrado mediante o preenchimento cumulativo de alguns requisitos, e entre eles está o de que “a pessoa jurídica se comprometa a implementar ou a melhorar os mecanismos internos de integridade, auditoria, incentivo às denúncias de irregularidades e à aplicação efetiva de código de ética e de conduta” (art. 16, § 1º, IV, Lei 12.846).
- A interpretação comparada dos dispositivos poderia levar a uma contradictio, pois que fica a dúvida de saber se, para celebrar o acordo de leniência, a pessoa jurídica já deve ter o programa de compliance, como consta do § 1º, IV, do art. 16 (3), ou se o compromisso é que resultará a posteriori do acordo, como faz crer o caput, IV, do mesmo art. 16.
- Em nosso entender, a interpretação deve ser feita cum grano salis e numa visão lógica. Se a empresa interessada na celebração do acordo de leniência ainda não tiver o programa de compliance, deve assumir o compromisso de elaborá-lo e implementá-lo; assumindo tal compromisso, fica preenchido o requisito para o acordo.
- A outra faceta da interpretação consiste na formalização do compromisso com a implementação do programa, constituindo ele cláusula do próprio acordo, pois que assim poderá compreender-se o conteúdo do caput, no sentido de que do acordo resultará a formação do programa.
- Toda essa formalização do programa de compliance deveria ser dispensável, se a governança corporativa das empresas, principalmente dos grandes grupos empresariais, atendesse a padrões éticos normais e, também, se seus diretores fossem cidadãos honestos, sem perseguir a obtenção de lucros, ganhos e riqueza às custas dos cofres públicos.
- O que era para ser uma conduta normal entre pessoas jurídicas idôneas e transparentes passou a constituir imposição para a celebração do acordo de leniência, como também resultado desse ajuste – é o que registra a lei regente. Não há dúvida, assim, que o referido programa traduz atualmente uma verdadeira conditio sine qua para que a pessoa jurídica se beneficie do acordo, com redução ou remissão de multas, ou com isenção de sanções e outros benefícios.
- O programa de compliance representa a inclusão, no sistema normativo-corporativo da empresa, de um código de conduta com parâmetros legais e éticos, constituído de normas que imponham a toda a equipe empresarial um comportamento honesto, transparente e obediente às leis. Tais normas não podem admitir distinções entre seus destinatários. Tanto os dirigentes e a cúpula da empresa, quanto os empregados e técnicos de modo geral, devem sujeitar-se ao citado código. Na verdade, nunca é a empresa que produz os atos atentatórios à lei e à ética, já que, como entidade exclusivamente jurídica, não tem como manifestar vontades formais. Quem o faz são os seus prepostos, que, frequentemente, dela se valem para locupletar-se de vantagens indevidas.
- Os bons executivos empresariais começam a reconhecer a excelência do programa e os benefícios que dele resultam. Um deles consigna que “a política de conformidade traz inúmeros benefícios às empresas, a começar pela vantagem competitiva. É um diferencial de peso na busca por negócios e investimentos. Paralelamente, políticas efetivas de prevenção contra práticas ilícitas trazem ganhos adicionais: reforçam a marca e a imagem da empresa e protegem a reputação dos executivos, aumentando a atratividade dos negócios e atendendo às expectativas dos acionistas”. (4)
- O CADE – Conselho Econômico de Defesa Econômica – teve a iniciativa de criar um manual para o programa de compliance como sugestão para a atuação das empresas na área econômica. Nele, parte-se do pressuposto de que os resultados positivos são obtidos quando o programa consegue incutir nos colaboradores de uma empresa a importância de fazer a coisa certa. O bom desenvolvimento do programa – acrescenta-se – beneficia a sociedade, a economia e a concorrência e, aditamos nós, o próprio Poder Público, habitualmente assolado pela associação criminosa de algumas sociedades. (5)
- Dando ênfase aos benefícios resultantes do programa, o aludido manual menciona os seguintes: (1) a prevenção de riscos de ofensa às leis e às regras éticas; (2) a identificação antecipada de problemas, favorecendo pronta resposta da empresa; (3) o reconhecimento de ilicitudes em outras empresas, obrigando a uma seleção para firmar negócios; (4) o benefício reputacional, como parte essencial de uma cultura de ética nos negócios; (5) a conscientização dos funcionários, que passam a exercer sua função mobilizados pela legalidade e transparência; e (6) redução de custos e contingências, no sentido de proteger a empresa contra infrações, punições (multas, cassações de alvará etc), investigações, medidas excludentes nos processos de licitações e contratos e outros efeitos gravosos da mesma espécie.
- O certo é que, embora a elaboração e o cumprimento de um programa de compliance se configure como condição para que empresas possam firmar acordos de leniência, como o impõe a Lei nº 12.846/2013, o desejável é que, mesmo sem a perspectiva de fazer o acordo, as corporações já se organizem, preventivamente, para implementar os códigos de conduta internos, na busca de objetivos que se pautem pelos preceitos legais e morais.
- Mas, se as corporações empresariais devem deflagrar essa iniciativa internamente, os governos precisam fazer a sua parte, alijando aqueles agentes que se servem de seus cargos para adquirir e usufruir benefícios pessoais, como regra em associação com algumas pessoas jurídicas que ainda estão longe de preocupar-se com a conduta moral.
- O que se tem observado é que esses agentes, por integrarem frequentemente as mais altas esferas de poder, acabam escapando dos efeitos punitivos da lei e, o que é mais lamentável, quase sempre interferem para que o sistema, com todas as suas ferramentas anacrônicas, lhes ofereça guarida e proteção contra eventual ato repressivo e punibilidade.
- Uma última observação não ficaria sem sentido neste passo. Será de todo inócua a exigência de implementação do programa de compliance se o ente público pactuante do acordo de leniência não tiver meios de fiscalizar o cumprimento da exigência e sua observância. O imediatismo aqui será inimigo da eficácia.
- Noutro giro, ter-se-á que verificar, futuramente, se os governos vão realmente levar a sério o compromisso para a criação dos códigos de ética, ou se continuará sendo desenvolvida a organização criminosa, que, como temos observado, decorre da associação de autoridades governamentais e empresas do setor privado, para causar, conforme tem ocorrido, mais sangria ainda nos cofres públicos e mais desapontamento na alma dos cidadãos.
NOTAS E BIBLIOGRAFIA:
(1) Michaellis Dicionário Prático, Melhoramentos, 1998, p. 74.
(2) O inciso foi incluído pela MP nº 703, de 18.12.2015.
(3) Também aqui houve inclusão pela MP 703/2015.
(4) CLÁUDIO PEIXOTO, sócio-diretor da Consultoria KPMG (entrevista no jornal O Globo, em 31.1.2016).
(5) Guia de Programas de Compliance (sítio do CADE, acesso em 4.3.2016).
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