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O acordo de não persecução cível e a lei 12.846/2013
19/08/2021
No ano de 2013, a Lei Anticorrupção Empresarial (LAE – Lei 12.846/2013) previu a possibilidade de celebração de acordo de leniência com as pessoas jurídicas responsáveis pela prática dos atos lesivos tipificados em seu art. 5º, para incentivá-las a colaborar efetivamente com as investigações e o processo administrativo.
Nos termos do artigo 16, caput, da LAE, compete à autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública celebrar acordo de leniência com as pessoas jurídicas responsáveis pela prática dos atos ofensivos à Administração Pública.
Como regra, o acordo de leniência da LAE é celebrado na esfera administrativa. Apenas em caráter excepcional, o acordo de leniência poderá ser celebrado na esfera de responsabilização judicial da LAEi.
A responsabilização judicial é deflagrada por meio de uma ação civil de responsabilização da pessoa jurídica, na qual se buscará a aplicação, de forma isolada ou cumulativa, das sanções civis previstas no artigo 19 da LAE.
Essa ação civil de responsabilização da pessoa jurídica infratora prevista no artigo 19 da LAE é espécie de ação civil pública, na medida em que se destina, em última análise, à proteção do patrimônio público e do interesse público primário, bens de natureza difusaii. Prova disso é que o artigo 21 da LAE determina a adoção do rito previsto na Lei da Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/1985) nas ações de responsabilização por atos lesivos à Administração Pública.
Referida ação integra, portanto, o denominado microssistema de tutela processual coletiva, no qual se comunicam a Lei da Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor – normas centrais – e diversas outras normas periféricas, como a Lei de Improbidade Administrativa e a Lei da Ação Popular.
Dessa forma, às ações de responsabilização das pessoas jurídicas por atos lesivos à Administração Pública serão aplicadas, em caráter principal, as disposições processuais da LAE, por conta do princípio da especialidade. Em caso de lacuna, haverá a incidência das normas do microssistema de tutela processual coletiva; permanecendo a omissão, restará valer-se, subsidiariamente, do CPC.
Por considerar não haver diferença substancial entre os regimes sancionatórios (administrativo e civil) das Leis 8.429/1992 e 12.846/2013, especialmente se considerarmos que os bens jurídicos tutelados pela LIA e pela LAE são muito semelhantes e que muitos dos atos de improbidade administrativa também podem configurar os atos lesivos previstos na Lei 12.846/2013, absolutamente razoável sustentar, doravante, ser possível a celebração de acordo de não persecução cível com a pessoa jurídica investigada por ato lesivo à Administração Pública, nos termos do art. 17, § 1º, da LIA, aplicável em caráter complementar à LAE.
Com efeito, não abona a lógica jurídica admitir que a pessoa jurídica praticante de atos apenados pela LIA, que concomitantemente configurem atos lesivos à Administração Pública, possa ser beneficiada pelo ANPC na esfera da LIA, mas tenha que responder a uma ação civil pública na esfera da LAE, pela prática da mesma conduta, mesmo concordando com a aplicação antecipada de uma ou algumas das suas sanções.
Noutras palavras, a partir da alteração do artigo 17, §º 1º, da LIA, que passou a admitir expressamente a solução negociada no domínio da improbidade administrativa, pensamos que os legitimados à propositura da ação civil pública prevista na LAE também poderão celebrar ANPC com as empresas infratoras, com o objetivo de aplicar, consensualmente, uma ou mais das sanções civis previstas no artigo 19 da Lei 12.846/2013iii. O acordo também deverá contemplar a recomposição integral do patrimônio público lesado, o que se considera o núcleo irrenunciável de tutela do interesse público na matéria (LAE, art. 6º, 3º, e art. 21, parágrafo único).
O próprio êxito do ANPC no domínio da improbidade administrativa pode ficar comprometido se o reconhecimento de responsabilidade na instância da LIA, em troca de algum tipo de benefício, puder implicar responsabilização integral na esfera da LAE.
O tratamento transversal desses acordos proporciona, a um só tempo, maior segurança jurídica, maior proteção ao patrimônio público e uma atuação mais coerente por parte do Estado.
Representativa dos novos paradigmas de atuação sancionatória é a adoção dos institutos de acordos nesta atividade restritiva de direitos. É o caso da colaboração premiada e do acordo de não persecução penal, na esfera criminal, e do acordo de leniência, no direito administrativo sancionador. A LIA, ao prever o ANPC, se insere neste contexto e permite a aplicação de parte de suas regras aos demais instrumentos do microssistema, caso da LAE.
A inserção de instrumentos de consensualidade no direito sancionador implica a adoção de novas posturas interpretativas na aplicação de leis punitivas sob a égide constitucional. A ordem é promover a harmonização entre dispositivos legais, para conferir racionalidade, coerência, razoabilidade e efetividade ao sistema jurídico como um todo. Este novo desenho do regime sancionatório enseja a alteração de standards na incidência da legislação afeta ao direito administrativo sancionador, seja stricto sensu (no processo administrativo), seja na via judicial (chamada na LAE de responsabilidade civil), de pessoas jurídicas, que devem se adequar aos pressupostos que fundamentam e justificam a solução negocial incentivada pelo ordenamento.
Afigura-se, por tais razões, que outras sanções cabíveis, além das mencionadas na própria LIA, como aquelas previstas no artigo 19 da LAE, possam eventualmente ser negociadas e fixadas em acordos de não persecução cíveliv.
Noutro flanco, no que concerne à possibilidade de aplicação consensual das sanções administrativas previstas no artigo 6º da LAE, alguns esclarecimentos precisam ser feitos.
Os atos lesivos previstos no artigo 5º da LAE são passíveis de responsabilização nas esferas administrativa e judicial, sem prejuízo de que também sejam considerados ilícitos penais, cíveis ou administrativos por outras leis.
Na esfera administrativa, a Lei Anticorrupção Empresarial previu a possibilidade de celebração de acordo de leniência com as pessoas jurídicas responsáveis pela prática dos atos lesivos tipificados em seu art. 5º, de modo a isentá-las das sanções previstas no inciso II do art. 6º (publicação extraordinária da decisão condenatória) e no inciso IV do art. 19 (proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público, pelo prazo de 1 a 5 anos), possibilitando também a redução do valor da multa aplicável em até 2/3 (dois terços).
Por se tratar de instituto de direito premial, a concessão dos benefícios legais convencionados no acordo de leniência pressupõe que a pessoa jurídica processada colabore efetivamente com as investigações e com o processo administrativo, de modo que desta colaboração resultem a identificação dos demais atores envolvidos na infração e a obtenção célere de informações e documentos que comprovem o ilícito sob apuração.
Nos termos do artigo 16, caput, da LAE, compete à autoridade máximade cada órgão ou entidade pública celebrar acordo de leniência com as pessoas jurídicas responsáveis pela prática dos atos ofensivos à Administração Pública. Trata-se, como se vê, de instituto de direito premial incidente na esfera de responsabilização administrativa.
A responsabilização judicial, a seu turno, é deflagrada por meio de uma ação civil de responsabilização da pessoa jurídica, na qual se buscará a aplicação, de forma isolada ou cumulativa, das sanções civis previstas no artigo 19 da LAE. Dúvidas não há de que o Ministério Público detém legitimidade para o ajuizamento dessa ação civil objetivando a imposição das sanções civis previstas no artigo 19 da LAE.
Para além de tais sanções civis, o Ministério Público também está autorizado a pleitear, de forma cumulativa e com exclusividade, nas ações civis públicas por ele propostas, as sanções administrativas previstas no artigo 6º da LAE, consistentes em multa e publicação extraordinária da decisão condenatória. Para tanto, deverá ser constatada a omissão da autoridade competente para promover a responsabilização administrativa.
Por outras palavras, na ação civil pública movida pelo Ministério Público, pode-se solicitar tanto as sanções civis quanto a aplicação das sanções administrativas, “desde que constatada a omissão das autoridades competentes para promover a responsabilização administrativa” (art. 20, parte final).
Nessa situação especial de aplicação de sanções administrativas na esfera judicial, questão interessante é saber de quem será a competência para a celebração do acordo de leniência. O silêncio da LAE significa que, nesse caso especial, o programa de leniência foi suprimido? Pensamos que não.
O fato de se delegar à autoridade judicial a competência para a aplicação das sanções administrativas do artigo 6º da LAE em caso de omissão da autoridade competente na esfera administrativa também deve deslocar para o Ministério Público a competência para negociar e eventualmente celebrar acordo de leniência, que, nesse contexto excepcional, deverá ser homologado em juízo.
Por outras palavras, a lacuna da LAE em relação à possibilidade de acordo nessas ações civis públicas propostas exclusivamente pelo Ministério Público não afasta a aplicação do programa de leniência nessas situações excepcionais. Ele continua cabível, nas mesmas condições do art. 16, mas há que ser celebrado perante o Ministério Público.
Nessa ordem de ideias, a aplicação consensual das sanções administrativas previstas no artigo 6º da LAE, na hipótese de ação civil pública proposta pelo Ministério Público, quando constatada a omissão das autoridades competentes para promover a responsabilização administrativa, deve observar o regime jurídico do acordo de leniência, previsto no artigo 16 da Lei 12.846/2013.
Dito de outro modo, a aplicação consensual das sanções previstas no artigo 6º da LAE deve ser formalizada num acordo de leniência, celebrado preferencialmente na esfera administrativa, e excepcionalmente na esfera judicial, na hipótese acima citada, observando-se, em qualquer caso, as condições e os requisitos previstos no artigo 16 da LAE.
É correto afirmar, portanto, que o ANPC celebrado na esfera da LAE só poderá englobar as sanções civis previstas no artigo 19 da LAE. Quanto às sanções administrativas, previstas no artigo 6º da LAE, sua aplicação consensual ficará limitada à celebração do acordo de leniência, observadas as condições e os requisitos previstos no artigo 16 da LAE.
Entendimento contrário, no sentido de que ANPC também poderia englobar as sanções do artigo 6º da LAE, independentemente do cumprimento das condições do artigo 16 da LAE praticamente esvaziaria o instituto do acordo de leniência, servindo, assim, de desestímulo à colaboração efetiva da pessoa jurídica com as investigações.
A solução proposta neste ensaio harmoniza as normas da LIA e da LAE, conferindo racionalidade, coerência, razoabilidade e efetividade ao sistema jurídico como um todo.
Em conclusão, tem-se:
- as sanções civis previstas no artigo 19 da LAE podem eventualmente ser negociadas e fixadas em acordos de não persecução cível, nos termos do disposto no artigo 17, § 1º, da LIA, aplicável em caráter complementar;
- as sanções administrativas previstas no artigo 6º da LAE só podem ser negociadas e aplicadas consensualmente em acordos de leniência, observado o regime jurídico deste instituto, previsto no artigo 16 da LAE; referido acordo, celebrado preferencialmente na esfera administrativa, também poderá ser celebrado pelo Ministério Público na esfera judicial de responsabilização, em caráter excepcional, na hipótese prevista no artigo 20, parte final, da LAE.
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[I] Sobre o tema: ANDRADE, Landolfo. Interesses Difusos e Coletivos, volume 2, cap. 6, 4ª ed., Método: São Paulo, p. 764-766.
[II] Nesse sentido: MARTINS JR., Wallace Paiva. Comentários ao art. 15. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MARRARA, Thiago. Lei Anticorrupção comentada. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 264.
[III] Diz-se sanções civis porque em relação às sanções administrativas a LAE instituiu um sistema específico de autocomposição, cujo elemento central é o acordo de leniência, com regras e pressupostos próprios.
[IV] Esse entendimento foi adotado pela 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal na Orientação n. 10, que fixa as diretrizes a serem observadas na celebração de acordos no âmbito extrajudicial e judicial das Leis nº 8.429/1992 e Lei nº 12.846/2013.