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A inconstitucionalidade do art. 23-C da Lei de Improbidade Administrativa
Rafael Carvalho Rezende Oliveira
04/05/2022
Neste artigo, Rafael Carvalho Rezende Oliveira apresenta argumentos sobre a inconstitucionalidade do art. 23-C da Lei de Improbidade Administrativa. Acompanhe e entenda!
A inconstitucionalidade do art. 23-C da Lei de Improbidade Administrativa
A Lei 14.230/2021 promoveu profundas alterações na Lei 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa – LIA), considerada como um dos principais instrumentos jurídicos integrantes do Sistema Brasileiro de Combate à Corrupção.
A referida reforma legislativa representa, de fato, uma descaracterização da redação originária da LIA, com a modificação de quase todos os seus dispositivos. Destacam-se algumas novidades, tais como:
a) a extinção da modalidade culposa de improbidade e a necessidade de dolo específico;
b) a inexistência de improbidade por divergência de interpretação da Lei (“delito hermenêutica”);
c) a taxatividade das hipóteses de improbidade por violação aos princípios;
d) a modificação do prazo prescricional, com a previsão, inclusive, da prescrição intercorrente;
e) a exclusão da remessa necessária nas ações de improbidade; etc.
Formalmente, restou preservada a numeração da LIA, mas, sob o aspecto material, o seu conteúdo foi intensamente alterado. Trata-se, na realidade, de uma nova Lei com a mesma numeração.
Administração Pública do medo
As alterações promovidas pela Lei 14.230/2021 representam, em grande medida, uma reação à denominada “Administração Pública do medo”, caracterizada pela aversão à inovação e pelos incentivos aos comportamentos conservadores e formalistas, ainda que não coincidam com o melhor atendimento do interesse público na perspectiva do gestor público.[1]
Isso não afasta, contudo, as polêmicas na interpretação de diversos dispositivos alterados. Aliás, algumas discussões já foram objeto de judicialização perante o STF.
Mencione-se, por exemplo, a discussão sobre a retroatividade das normas mais benéficas da LIA, após as alterações promovidas pela Lei 14.230/2021, pendente de julgamento no STF, com repercussão geral reconhecida, nos termos do Tema 1.199[2]:
“Definição de eventual (IR)RETROATIVIDADE das disposições da Lei 14.230/2021, em especial, em relação: (I) A necessidade da presença do elemento subjetivo – dolo – para a configuração do ato de improbidade administrativa, inclusive no artigo 10 da LIA; e (II) A aplicação dos novos prazos de prescrição geral e intercorrente”.
É importante destacar que o STF determinou a suspensão dos prazos prescricionais nos processos de improbidade administrativa, com recursos especiais ou extraordinários sobrestados, até o julgamento do mérito do Tema 1.199, com o objetivo de resguardar o exercício da pretensão sancionatória estatal e assegurar a efetividade dos processos já instaurados.[3]
Ademais, no julgamento das ADIs 7.042 e 7.043[4], o Ministro Alexandre de Moraes deferiu medida cautelar para (a) conceder interpretação conforme a Constituição Federal ao caput e §§ 6º-A, 10-C e 14, do art. 17 da LIA, com a redação dada pela Lei 14.230/2021, com o reconhecimento da existência de legitimidade ativa concorrente entre o Ministério Público e as pessoas jurídicas interessadas para a propositura da ação por ato de improbidade administrativa; (b) suspender os efeitos do § 20 do art. 17 da LIA, incluído pela Lei 14.230/2021, que estabelecia a obrigatoriedade de representação judicial por parte da assessoria jurídica nas ações de improbidade propostas contra administradores públicos que tenham atuado em conformidade com o parecer da referida assessoria; e (c) suspender os efeitos do art. 3º da Lei 14.230/2021 que fixou o prazo de um ano, contado da publicação do citado diploma legal, para o Ministério Público competente manifestar o interesse no prosseguimento das ações por improbidade administrativa em curso ajuizadas pela Fazenda Pública, inclusive em grau de recurso.
Inconstitucionalidade do art. 23-C
Além das relevantes discussões jurídicas anteriormente mencionadas, o presente estudo pretende destacar a inconstitucionalidade do art. 23-C da LIA, inserido pela Lei 14.230/2021, que dispõe:
“Art. 23-C. Atos que ensejem enriquecimento ilícito, perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação de recursos públicos dos partidos políticos, ou de suas fundações, serão responsabilizados nos termos da Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995.”
É possível perceber a clara tentativa de descaracterizar a improbidade administrativa dos atos ilícitos praticados contra os recursos públicos geridos por partidos políticos.
De nossa parte, sempre sustentamos que os partidos políticos poderiam ser inseridos no rol das vítimas da improbidade, com a aplicação das sanções de improbidade aos autores dos respectivos atos de improbidade, especialmente porque os referidos partidos seriam englobados pela redação originária do art. 1º da LIA e os respectivos dirigentes seriam equiparados aos agentes públicos para fins de improbidade, em conformidade com a redação originária do art. 2º da LIA.[5]
Isso porque os partidos políticos, não obstante constituírem pessoas jurídicas de direito privado (art. 44, V, do Código Civil), recebem recursos de natureza pública, oriundos do Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos (Fundo Partidário).
Fundo partidário
O art. 38 da Lei 9.096/1995 (Lei Orgânica dos Partidos Políticos) dispõe que o Fundo Partidário é constituído por:
a) multas e penalidades pecuniárias aplicadas nos termos do Código Eleitoral e leis conexas;
b) recursos financeiros que lhe forem destinados por lei, em caráter permanente ou eventual;
c) doações de pessoa física ou jurídica, efetuadas por intermédio de depósitos bancários diretamente na conta do Fundo Partidário;
d) dotações orçamentárias da União em valor nunca inferior, cada ano, ao número de eleitores inscritos em 31 de dezembro do ano anterior ao da proposta orçamentária, multiplicados por trinta e cinco centavos de real, em valores de agosto de 1995.
É fácil perceber a natureza pública da maior parte dos recursos que integram o Fundo Partidário e que são destinados aos partidos.
Ocorre que o art. 23-C da LIA, inserido pela Lei 14.230/2021, repita-se, pretendeu descaracterizar a improbidade administrativa dos atos que caracterizem enriquecimento ilícito, perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação de recursos públicos dos partidos políticos, ou de suas fundações, que seriam punidos na forma da Lei 9.096/1995 (Lei dos Partidos Políticos), que prevê, basicamente, sanções pecuniárias, afastando-se as sanções mais severas tipificadas na LIA.
Abre-se caminho, inclusive, para discussão quanto à retroatividade do art. 23-C da LIA para extinguir os processos em curso ou rescindir as decisões condenatórias que aplicaram sanções aos autores dos atos de improbidade em face dos partidos políticos.
Entendemos que o art. 23-C da LIA, inserido pela Lei 14.230/2021, é inconstitucional em razão da violação aos princípios constitucionais da isonomia, da razoabilidade e da proporcionalidade, além da afronta ao art. 37, caput e § 4º, da CRFB.
Não há, em verdade, qualquer fundamento razoável para estabelecer tratamento diferenciado e menos gravoso aos dirigentes partidários e demais autores dos atos ilícitos praticados contra os partidos políticos, uma vez que os recursos públicos, compreendidos no fundo partidário, merecem a mesma proteção dos demais recursos do erário.
O afastamento da incidência da LIA, na hipótese, configuraria tratamento privilegiado odioso e desproporcional para determinado grupo de pessoas, além de acarretar uma diminuição indevida da proteção dos recursos públicos, com o afastamento indevido das sanções de improbidade tipificadas no art. 37, § 4º, da CRFB e no art. 12 da LIA.
Cabe lembrar que a discussão quanto à incidência das sanções de improbidade aos agentes políticos envolveu, durante determinado período, discussão semelhante, uma vez que havia a tentativa por parcela da doutrina e da jurisprudência de afastamento da LIA dos referidos agentes que, nessa perspectiva, responderiam apenas com fundamento na legislação regente do crime de responsabilidade. [6]
Jurisprudência
Após intensa polêmica, o STF, revendo posição anterior, decidiu que os agentes políticos, com exceção do Presidente da República (art. 85, V, da CRFB), submetem-se ao duplo regime sancionatório: responsabilidade civil pelos atos de improbidade administrativa e responsabilidade político-administrativa por crimes de responsabilidade.
Assim como não seria adequado afastar os agentes políticos da incidência da LIA, não se afigura possível a tentativa de afastamento do referido diploma legal dos dirigentes partidários e demais responsáveis por atos ilícitos direcionados contra os recursos públicos geridos por partidos políticos.
Os atos de acarretam enriquecimento ilícito, lesão ao erário ou violação aos princípios, assim tipificados nos arts. 9º, 10 e 11 da LIA, devem ser caracterizados como improbidade administrativa, independentemente da qualificação das pessoas responsáveis pela gestão de recursos públicos, o que abrangeria as entidades privadas que recebem subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de entes públicos ou governamentais, bem como as entidades privadas para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra no seu patrimônio ou receita atual, na forma dos §§ 6º e 7º do art. 1.º da LIA, incluídos pela Lei 14.230/2021.
Em síntese, consideramos inconstitucional o art. 23-C da LIA, com a consequente possibilidade de configuração da improbidade dos atos que caracterizem enriquecimento ilícito, perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação de recursos públicos dos partidos políticos ou de suas fundações, entidades que devem ser enquadradas nos citados §§ 6º e 7º do art. 1.º da LIA.
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NOTAS
[1]Sobre o tema, vide: OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende; HALPERN, Erick. O mito do “quanto mais controle, melhor” na Administração Pública. Revista Brasileira de Direito Público, v. 71, p. 91-116, 2020; SANTOS, Rodrigo Valgas dos. Direito administrativo do medo: risco e fuga da responsabilização dos agentes públicos, São Paulo: Thomson Reuters, Brasil, 2020.
[2] De nossa parte, sustentamos a retroatividade das normas mais benéficas no âmbito da improbidade administrativa: OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende; HALPERN, Erick. A retroatividade da lei mais benéfica no Direito Administrativo sancionador e a reforma da lei de improbidade pela Lei 14.230/2021. Soluções em Direito Administrativo e Municipal, v. 4, p. 47, 2022; NEVES, Daniel Amorim Assumpção; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Comentários à reforma da lei de improbidade administrativa. Rio de Janeiro: Forense, 2021.
[3]STF, ARE 843.989 ED-segundos/PR, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJe-077 25.04.2022.
[4] Vale destacar que, a despeito de ter suspendido a eficácia do §20 do art. 17 da LIA, o pronunciamento do Ministro Alexandre de Moraes não explicita as razões que levaram ao afastamento do dispositivo legal. STF, ADI 7.042 MC/DF e ADI 7.043 MC/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJe-033 21.02.2022. Sobre os temas debatidos nas mencionadas ações judiciais, vide: VALE, Luís Manoel Borges do; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Os impactos da reforma da Lei de Improbidade Administrativa na advocacia pública. Solução em Direito Administrativo e Municipal, v. 4, p. 115-128, 2022.
[5]Com o mesmo entendimento, no contexto da redação originária da Lei 8.429/1992, vide: FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Atos de improbidade administrativa: doutrina, legislação e jurisprudência. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 245; GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 6 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 231.
[6] STF, Pet 3.240 AgR/DF, Rel. p/ Acórdão Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, DJe-171 22.08.2018 (Informativo de Jurisprudência do STF 901). Sobre o tema, vide item 4.2.1.2.