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O que fazer se não concordar com o resultado das eleições
Henderson Fürst
04/11/2022
Diversos eleitores descontentes com o resultado do 2.º turno das eleições de 2022 tem se manifestado nas ruas e redes sociais sobre a possibilidade de “intervenção militar constitucional”, “intervenção federal” e alguns outros recursos envolvendo as Forças Armadas ou os poderes constitucionais para mudar os resultado das eleições.
Este breve texto é uma explicação do que são tais situações de exceção e o que se pode fazer caso você não concorde com o resultado das eleições.
Premissas de interpretação da Constituição Federal
Como direito constitucional não é um conhecimento ensinado a todos cidadãos, infelizmente, e a leitura da Constituição Federal nem sempre é um hábito, é importante ressaltar algumas coisas importantes, que vamos ter por premissas.
A primeira delas é que a Constituição Federal deve ser lida e aplicada por inteira. Não é possível que apenas um artigo seja aplicável retirando a aplicação de todos os demais. É um sistema normativo vivo que precisa ser sempre interpretado em consonância.
A segunda delas é que não há resposta fora da Constituição. Qualquer solução ou resposta, por mais acertada e fácil que pareça, que seja sem a Constituição, ou contrariando-a, será uma resposta errada.
A terceira delas é que em outros momentos da história da humanidade foram dadas respostas que contrariavam a Constituição e o resultado, embora soasse agradável num primeiro momento, foi desastroso em seguida. Seguir a Constituição é uma forma de sobrevivência civilizatória, que possibilita a existência digna de toda a comunidade que se forma sob a Constituição, dos mais fortes aos mais fracos.
O que é intervenção federal
A regra da Constituição é clara: os entes públicos são autônomos. Isso se encontra expressamente dito no caput dos artigos 34 e 35 da CF, quando estabelece que um ente não intervirá no outro, respeitando sua autonomia e funções constitucionais.
Ocorre que, para assegurar os próprios princípios constitucionais e os deveres que estabelecidos pelo texto constitucional, é possível que a intervenção ocorra, e as hipóteses em que pode ocorrer são expressas e numeradas pela própria Constituição:
I – manter a integridade nacional;
II – repelir invasão estrangeira ou de uma unidade da Federação em outra;
III – pôr termo a grave comprometimento da ordem pública;
IV – garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação;
V – reorganizar as finanças da unidade da Federação que:
a) suspender o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos consecutivos, salvo motivo de força maior;
b) deixar de entregar aos Municípios receitas tributárias fixadas nesta Constituição, dentro dos prazos estabelecidos em lei;
VI – prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial;
VII – assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:
a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático;
b) direitos da pessoa humana;
c) autonomia municipal;
d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta.
e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)
Para que a intervenção federal ocorra, é preciso que seja estabelecida por um decreto do Presidente da República, que definirá especificamente a amplitude da intervenção, o prazo, condições da execução e, se for o caso, a nomeação de um interventor.
Mas não é uma decisão exclusiva do Presidente da República. É preciso que tenha a aprovação do Congresso Nacional, que irá apreciar no prazo de vinte e quatro horas.
Nos últimos 24 anos, apenas duas vezes isso aconteceu, e foram ambas em 2018. Uma no Rio de Janeiro, quanto à segurança pública, e outra em Roraima.
O que é intervenção militar constitucional
As forças armadas brasileiras também são reguladas pela Constituição Federal, especialmente porque se trata de um importante órgão do Estado.
É preciso considerar que a regulação dada a elas pela Constituição de 1988 considerava justamente as circunstâncias daquele momento: “o Brasil dispunha de recursos e oportunidades de construir uma política de defesa que não estivesse voltada para a contenção de rivais regionais.
Podia, ao contrário, buscar associá-la a esforços mais amplos que tivessem por objetivo permitir-nos extrair todos os benefícios potenciais de uma circunstância geopolítica excepcionalmente benigna: éramos, afinal, o líder natural de um continente em paz, com notável estabilidade de fronteiras”, pondera o General do Exército Sergio Westphalen Etchegoyen.[1]
Nesse mesmo sentido, lembra o General do Exército que os princípios constitucionais das Forças Armadas seguem também os princípios da República: a soberania, a cidadania, a dignidade humana, o pluralismo político, a prevalência dos direitos humanos, a autodeterminação dos povos, a não intervenção, a defesa da paz, a solução pacífica dos conflitos, repúdio ao terrorismo e ao racismo (arts. 1.º e 4.º da Constituição Federal).
Neste contexto é que se insere o art. 142, que diz:
Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
Como se pode observar, não há nenhuma expressão de “intervenção militar”. E, muito embora isso seja entoado por algumas pessoas, a garantia da lei e da ordem não é uma intervenção autônoma das forças armadas. Essa interpretação foi dada, inclusive, pela própria Câmara dos Deputados, em parecer que pode ser lido aqui.
A única hipótese de emprego da garantia da lei e da ordem é aquela dada pela Lei Complementar 97/1999, em que, esgotados os instrumentos previstos pela própria Constituição Federal para situações de exceção, como o estado de defesa e estado de sítio, por meio de pedido de um dos poderes constitucionais ao Presidente da República[2].
Essa hipótese somente poderá ocorrer para preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimoniais (art. 15, § 2.º, da LC 97/1999). Trata-se de instrumento de comando civil, e que se encontra entre medidas previstas para situações de exceção, cuja possibilidade de emprego é dada por regras claras e hipóteses exclusivas.
Não existe, portanto, “intervenção militar”. Intervenção militar é golpe, é rasgar a Constituição, é fugir das regras do jogo e das premissas que mencionamos.
Mas e a hipótese da Lei Complementar 97/1999, mesmo que não seja “intervenção militar”, não poderia ser utilizada?
Não. Tampouco a intervenção federal. Não se trata de uma das hipóteses de exceção previstas. Aliás, se as manifestações ganharam dimensão a ponto de atrapalhar a ordem pública e a efetividade de outros direitos constitucionais, como o direito à saúde e o direito de locomoção, é contra os próprios manifestantes que a intervenção federal pode vir a ser utilizada.
O que fazer se não concordar com o resultado das eleições então?
É importante entender que um dos principais riscos ao desenvolvimento civilizatório que temos é o de ver quem pensa diferentemente como um inimigo.
A grande dádiva da humanidade para sobreviver e desenvolver-se ao atual nível tecnológico, sanitário e cultural é, justamente, a capacidade de se proteger, de se cuidar, de viver em grupo, porque somos um dos animais mais frágeis biologicamente para sobreviver.
A lógica binária amigo/inimigo é uma técnica estimulada por setores que possuem interesse no enfraquecimento social, que ganham com a crise, mas é errado enquanto exercício da cidadania. Isso porque tratar o outro como inimigo é um mecanismo que normaliza a retirada de direitos dele, normaliza o seu extermínio, normaliza a inexistência de diálogo, a sua coisificação para, posteriormente, eliminá-lo[3] – tal como acontecei no nazismo.
E o que é possível fazer então?
Há diversos instrumentos que um cidadão pode utilizar para fiscalizar, cobrar e exigir de governantes o cumprimento da Constituição e das leis. Seguem alguns:
- Ação popular: prevista no art. 5.º, LXXIII, da CF, é uma ação que pode ser proposta por qualquer cidadão para anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural. E importa dizer que é possível propor esta ação independentemente de ter um advogado, embora seja altamente recomendável que o tenha.
- Direito de petição: prevista no art. 5.º, XXXIV, da CF, é um direito de todo cidadão para se dirigir aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder.
- Solicitar informações nos termos da Lei do Acesso a Informação (Lei 12.527/2011), tanto no Portal da Transparência quanto no Fala.Br.
Além dos instrumentos jurídicos acima, existem os instrumentos políticos:
- Lei por iniciativa popular, nos termos do art. 14, II, da CF;
- Participação em partidos políticos para organizar oposição e crítica às políticas públicas;
- Participação de associações civis organizadas em torno de questões políticas com o qual se identifique, tal como o Instituto Não Aceito Corrupção, entre outros.
O que não se pode fazer é agir fora da Constituição. Isso é golpe. É crime. E é um retrocesso ao processo civilizatório que a sociedade brasileira tem desenvolvido em sua história. “O Brasil é inevitável. Não há mais por que posterga-lo!”[4].
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[1] ETCHEGOYEN, Sergio. As forças armadas e a Constituição Federal. In: DIAS TOFFOLI, José Antonio. 30 anos da Constituição Brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 372.
[2] CASTELO BRANCO, Pedro H. Villas Bôas; GOUVÊA, Carina Barbosa. As Forças Armadas na história constitucional brasileira: compreendendo as dimensões de militarismo e militarização. In: (Coord.) GOUVÊA, Carina Barbosa; CASTELO BRANCO, Pedro H. Villas Bôas; COSTA, Isabela Maria Bezerra. Estado de exceção, populismos e a militarização da política na pandemia da COVID-19. Belo Horizonte: Editora Letramento, 2022, p. 29-52.
[3] ABBOUD, Georges. Democracia para quem não acredita. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2021, p. 183.
[4] ETCHEGOYEN, Sergio. As forças armadas e a Constituição Federal. In: DIAS TOFFOLI, José Antonio. 30 anos da Constituição Brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 383.