32
Ínicio
>
Artigos
>
Empresarial
ARTIGOS
EMPRESARIAL
Sintomatologia jurídico-patrimonial da família
26/08/2024
Há um corte no título e na análise desenvolvida em Holding Familiar e suas Vantagens (16.ed. Editora Atlas, 2024). Mas não se preocupe. Não é nada demais: apenas uma questão epistemológica que, de resto, é própria de todo trabalho acadêmico: definir o objeto de sua pesquisa. Fala-se em corte [ou recorte] epistemológico. No caso, houve uma opção por examinar a utilização da holding para o planejamento jurídico- patrimonial das famílias. Esse constituiu o corpus de questões sobre o qual nos debruçamos. Mas há um aspecto conexo a essa escolha que demanda destaque: a holding é uma ferramenta jurídica que serve não apenas à família. Aliás, seu uso mais largo está alhures: na arquitetura societária de grupos econômicos e, sim, nos projetos de estruturação e reestruturação societários.
Holding como ferramenta jurídica
Eis o ponto de partida: holding é uma ferramenta jurídica. E, como sói acontecer com todo o instrumental jurídico, cuida-se de ferramenta conceitual (abstrata, ideal), embora com a capacidade de produzir resultados materiais, isto é, de determinar mudanças dadas no plano físico, nomeadamente das relações interindividuais. Nada que seja estranho ao Direito, obviamente. Embora o sistema jurídico, em sua totalidade, diga respeito ao plano ideológico (o logos, como diriam os gregos), reflete-se na prática social (práxis) que, por seu turno, é parte da realidade concreta, física (a phisis, voltando aos gregos). Pode parecer lengalenga. Não é. Compreender essa relação entre o ideológico e a prática social é a raiz da melhor compreensão do Direito e, sim, da melhor realização jurídica. É próprio do jurista agir no plano conceitual (nomeadamente normativo) visando produzir resultados no plano dos atos e fatos. Não dominar a arte desse trajeto que vai da previsão normativa ao eco comportamental é ser ineficiente. E usamos norma, aqui, em sentido amplo: da norma abstrata (que diz respeito às ações de Estado: parlamentares e regulamentares) à norma individual privada: a cláusula, o contrato, o estatuto.
Há que sublinhar a importância de tal equação para a chamada advocacia privada não-contenciosa, justo o setor das operações jurídicas a que foi destinado Holding Familiar e suas Vantagens. Embora não se possa reduzir a relevância que têm os processos de negociação e processamentos administrativos, parte significativa do mister diz respeito à capacidade de redação de previsões normativas que, pretende-se, devem produzir os resultados almejados na realidade social: na vida do cliente. Daí nossa crítica recorrente ao uso de modelos fechados, feita no Manual de Redação de Contratos Sociais, Estatutos e Acordos de Sócios (8.ed. Editora Atlas, 2024): abdica-se da construção de modelos normativos que atendam ao caso concreto, isto é, que podem refletir-se em atos e fatos. O modelo fechado, copiado reiteradamente, diz respeito a qualquer caso; portanto, produz efeitos genéricos, nunca específicos. É ferramenta de baixa tecnologia jurídica. Dá para o gasto, se tanto. Não raro, sua generalidade foge aos contornos do caso em concreto, criando desafios que não seriam necessários. É um horror, simplesmente: torna o exercício advocatício um mister de tecnicidade reduzida: uma advocacia que tenta resolver tudo a golpes de marreta.
Voltando à holding, seu emprego e seu estudo podem se dar num enfoque mais aberto ou mais focado. A figura corporativa em si ou o seu uso para certa finalidade. Vamos usar uma analogia: pode-se aprender genericamente sobre o uso de uma retroescavadeira ou, de forma mais específica, focar em seu uso em plantas de mineração: especificidades, manejo apropriado, cuidados, sinergias e otimizações etc. O mesmo fizemos com Holding Familiar e suas Vantagens. Tratamos da ferramenta no contexto específico do planejamento jurídico das famílias. Por isso buscamos demonstrar diversas situações em que se pode lançar mão da estratégia para que se alcance resultados específicos. Em outros contextos, situações diversas se apresentam, igualmente interessantes e valiosas. Em suma: não há legislação especial para holding familiar. É a legislação regular. O que importa em seu estudo e em sua utilização específica é manter-se atento às possibilidades – de arquitetura jurídica e de engenharia jurídica (e são perspectivas diversas, ainda que complementares) – que são oferecidas para os profissionais (do Direito, da Contabilidade, da Administração de Empresas) e para os clientes que buscam o seu socorro.
Indispensabilidade de procedimentos voltados à percepção da sintomatologia jurídico-patrimonial
É neste contexto que se coloca uma dos aspectos práticos mais cruciais que devem anteceder o manejo, ou não, da holding a bem de uma família: a indispensabilidade de procedimentos voltados à percepção da sintomatologia jurídico-patrimonial específica de cada situação dada para, (1) definir se a ferramenta adequada é efetivamente uma holding, e (2) estabelecer as balizas que deverão ser atendidas na arquitetura corporativa a se projetar, incluindo elementos específicos de engenharia jurídica, levando em conta eventuais variantes e condicionantes de maior dimensão. Em oposição ao modismo reinante, é preciso deixar claro que holding não é instrumento que sirva a qualquer caso, que resolva qualquer situação. Então o primeiro passo é fazer um levantamento dos sintomas que trazem o cliente ao especialista. Noutras palavras, o primeiro passo é perscrutar o que ele sente: o que o preocupa, o que o incomoda, o que lhe dói, o que almeja, o que sonha, o que pretende etc. Daí falamos em sintomatologia: quais são os sintomas jurídicos do cliente (ou, se preferir, do paciente jurídico); afinal, a sintomatologia é a disciplina que se ocupa do levantamento de sinais e sintomas, bem como de sua interpretação. E não se pode olvidar que sintoma é palavra de origem grega com que se forma a partir de duas ideias tómos (parte, pedaço) e sin (em conjunto, unido). Chega ao português a partir do latim: symptoma é a junção das partes, dos múltiplos sinais que, unidos, permitem aquilatar o que se passa e, de resto, qual a intervenção adequada.
É um passo, um momento, uma fase indispensável para que efetivamente haja planejamento patrimonial. Do contrário, o trajeto será ineficaz. É o momento de fazer um retrato da família e, de quebra, de cada um daqueles que irá se tornar sócio, concentrando-se em capturar detalhes; muitas vezes, gravam-se observações para, depois, elaborar esquemas e desenhos (design thinking, diz-se) que orientaram a redação das plataformas normativas, como explicamos em Estruturação Jurídica de Empresas (Editora Atlas, 2024). Nenhuma novidade, lembrando haver uma regra latina, vetusta, que já dizia: Rem tene, verba sequentur [domine o assunto que as palavras virão]. É crucial dominar a teoria do Direito Societário, as particularidades do que é uma holding familiar e, enfim, a história de cada cliente, da cada família.
Aliás, é imprescindível mesmo questionar sobre aspectos para os quais, mui provavelmente, o cliente sequer atinou. Não se pode perder de vista tratar-se de um leigo em Direito e, assim, alguém que não domina os saberes que estão – ou devem estar – envolvidos numa operação desse tipo. Não é apenas o que o cliente acha que quer: há que se procurar o que o cliente tem necessidade, o que melhor lhe atenderá. Uma expressão de racionalidade e excelência que, sim, identifica-se em médicos, geólogos, engenheiros, educadores físicos e, obviamente, deveria se identificar entre advogados, contadores, economistas, administradores de empresa. Se é para reorganizar, é preciso melhorar. Não se pode aceitar, de jeito maneira, que o cliente, que a família, saia em situação pior. Isso seria uma falha profissional repreensível. Justo por isso é fundamental preocupar-se com um eventual descompasso entre o conjunto de ações implementadas e a sintomatologia mais precisa do cliente e sua família.
Essa fase de investigação do que se passa com a família e seu patrimônio é crucial: saber o que se deve resolver e, mais do que isso, tudo o que está implicado na operação. Em fato, pode haver restrições operativas, podem ser identificados eventuais problemas de ordens diversas, dificuldades a serem vencidas (ou custosas demais para que sejam vencidas), necessidade de criar ou manter certos privilégios (situação muito comum em relação aos pais ou avós), busca por equilíbrios, preparação para conflitos possíveis e/ou prováveis (em maior ou menor grau), problemas com inadimplência, cisões (indispensáveis, recomendáveis, eventuais, aceitáveis). Esse mapa de investigação, de sondagem, tem que ser o paradigma que o profissional usa para aquilatar corretamente sua intervenção. Escassez de dados é o caminho mais curto para o fracasso na implantação do planejamento jurídico: é falha que mitiga sua capacidade transformadora, frustrando as expectativas legítimas do cliente.
Profissionais e bancas com nível mais sofisticado de atuação podem ainda trazer para a investigação variantes ainda mais sutis, como aferição de impactos sobre a liquidez patrimonial, estimativa de geração de superávit transformável em receita renovável para os envolvidos (a holding ou suas controladas produzindo receita que, sob a forma de dividendos, seja distribuída aos interessados), arquitetura societária mais complexa para distinguir sociedades controladoras de sociedades operacionais e/ou divisões por setor de atuação (entre outras), separação de parcelas destinadas a operações (exemplo: alienação, arrendamento, investimento por terceiros, metamorfoses societárias) já antevistas ou submetida a marcos regulatórios específicos (infraestrutura corporativa específica). Aliás, uma pesquisa bem-feita pode detectar conjunções de impacto próximo e que, sim, não podem ser jamais descartadas pelos responsáveis pela operação. Exemplos? Planos de ampliação e/ou diversificação patrimonial (aquisições empresariais, como exemplo fácil; novas propriedades rurais produtivas, por igual) e/ou mercadológica (atender a um mercado maior, seja em número de consumidores, região ou em número de bens e/ou serviços oferecidos), planos de modernização, expansão ou melhoria, chegando mesmo a implicações de conduta e ética societária (complience), boa governança, metas ESG, dependendo do que está em jogo.
Quanto maior a competência do profissional e/ou do escritório (jurídico ou multidisciplinar) envolvidos, maior é a excelência na realização dessa fase de diagnóstico e, consequentemente, mais dinâmico será o avanço do projeto e, mais do que isso, maior será a geração de benefícios para os envolvidos. É o caso de rotinas voltadas para assegurar sustentabilidade jurídica e social da arquitetura jurídica pensada, nomeadamente sustentabilidade familiar, lembrando haver casos em que uma boa estrutura ao ser corretamente implementada pode conduzir a uma benfazeja repontencialização de relações familiares esmaecidas. Não é incomum. A segurança oferecida por uma estrutura societária que posicione adequadamente papéis e funções individuais, na mesma toada em que regre com sabedoria as relações interindividuais, tem, sim, esse condão de determinar um ambiente propício para uma maior harmonia familiar.
Alfim, talvez para a surpresa do leitor, não nos furtaremos ao dever de destacar que essa fase de diagnósticos, os levantamentos produzidos podem alcançar mesmo questões do escritório que está sendo contratado. Não é realidade comezinha, obviamente. Contudo, em organizações maiores (a exemplo das grandes bancas de advocacia) e/ou naquelas em que há uma atuação mais dinâmica, a envolver multiplicidade simultânea de casos a resolver, aquilatar o que é necessário permite definir não só o que fazer, mas quem poderá/deverá fazer e quais os respectivos custos, com ecos diretos nos honorários a serem definidos. Há equipes, aliás, que trabalham interdisciplinarmente, o que também cria a necessidade de refletir tais fontes nas sondagens preliminares. Será necessária a intervenção de contadores ou apenas advogados? A existência de conflitos entre os interessados implica a atuação de conciliadores e/ou mediadores? Há registro de consultorias que recomendam e estimulam a instalação de terapia familiar (com excelentes resultados, aliás). Não é só. Verificam-se casos, já mais distante dos Escritórios de Advocacia, em que o trabalho avança sobre uma reengenharia da organização: administração, gerência, logística, mercadologia, finanças. Tomada por esse viés, a sintomatologia jurídico-patrimonial da família indicará equações internas, como custos operacionais, horas-trabalho, profissionais afetados, tecnologia jurídica necessária, fluxos de trabalho interno (mesmo aqueles que resultem de sazonalidade), tudo a desembocar na precificação do serviço a ser prestado.
Para fechar, voltaremos ao ramerrame de nossas advertências habituais. A holding não é um milagre, não é um elixir que resolva todo e qualquer problema, nem tem serventia universal. Trata-se apenas uma das ferramentas da caixa. Mais uma das ferramentas da caixa. Daí a importância de se estudar a família, seu patrimônio, suas características específicas para, assim, definir qual é a melhor solução, a melhor estratégia, qual tem maior potencial de sucesso em planos (ou prazos) diversos (curto, médio ou longo), qual revela maior flexibilidade para o manejo, qual apresenta maiores riscos, restrições, qual permite usos ou benefícios múltiplos. Outras referências úteis: maior ou menor capacidade de modulação, maior ou menor multidirecionalidade (fundamental em patrimônios de emprego econômico, como participações societárias, fazendas, lavras minerárias etc. A tudo isso se pode chamar de sintomatologia jurídico-patrimonial da família e, sim, é a primeira e indispensável fase de um processo de planejamento jurídico, envolva ou não a utilização de uma holding.
CLIQUE E CONHEÇA O LIVRO DO AUTOR
LEIA TAMBÉM