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Primeiras considerações ao novo Código de Processo Ético-Profissional do Conselho Federal de Medicina
Henderson Fürst
28/03/2022
por Henderson Fürst e Ricardo Yamin Fernandes
O modo como uma comunidade investiga, processa, condena e executa uma pena diz muito sobre o desenvolvimento do seu estágio civilizatório. Por conta disso, o cuidado que códigos contendo ritos de investigação e acusação para fundamentar uma condenação são importantes e devem ser atualizados conforme se verifique descompasso entre a consciência civilizatória de direitos fundamentais e os ritos de acusação.
Novo Código de Processo Ético-Profissional do CFM
É neste sentido que escrevemos este artigo, pois, para conceder maior segurança jurídica e transparência para a classe médica, o Conselho Federal de Medicina (CFM), por meio da resolução n.º 2.306/2022 de 25 de março de 2022, aprovou o Código de Processo Ético-Profissional para disciplinar todos os procedimentos administrativos de sindicâncias a processos ético-profissionais no âmbito dos Conselhos Regionais de Medicina.
Tendo em vista que os Conselhos de Medicina são, ao mesmo tempo, julgadores e disciplinadores da classe médica, mister se faz a criação de regras uniformes, para todos, de modo a dar previsibilidade e conhecimento, à toda classe médica, das regras do jogo.
Analisaremos, a seguir, algumas novidades trazidas pelo novo Código, bem como alguns aspectos relevantes.
A virtualização do processo ético
O Conselho Federal de Medicina apresenta um Código de Processo com diversas e necessárias atualizações, especialmente no que concerne à possibilidade da realização de inúmeros atos processuais de maneira eletrônica. A possibilidade do aproveitamento de recursos eletrônicos e digitais na condução dos processos surge de uma necessidade escancarada pela pandemia, muito bem incorporada neste Código.
Anteriormente, foi por uma emenda ao CPEP pela Resolução CFM 2.278/2020 que se possibilitou a realização por videoconferência. Todavia, agora, ao longo do texto se encontra diversas enfatizações da possibilidade de uso de recursos tecnológicos, como é o caso do art. 19, § 5.º[1]; do art. 22, §§ 1.º e 2.º, quando trata das audiências de conciliação[2]; art. 25, §§ 1.º e 2.º, quando trata da audiência para realização do TAC[3]; a audiência da sessão plenária de interdição cautelar da medicina, no art. 29, § 4.º[4], entre outros.
A virtualização da citação e intimação
Um dos principais atos processuais é a informação do investigado de que há um procedimento instaurado contra si, bem como o chamamento ao processo, o que se dá pela citação.
Pelas regras anteriores, a citação era realizada na forma de envio ou entrega da citação, nos termos do art. 37[5]. Com a preferência pelo ambiente virtual, inclusive pela velocidade e economia que implica, a citação se dará preferencialmente por aplicativos de mensagens ou correspondência eletrônica, desde que sejam adotados meios de confirmar a autenticidade do número telefônico ou do endereço eletrônico, bem como a identidade do destinatário do ato processual, com os dados da ficha cadastral do CFM ou da denúncia apresentada, nos termos dos §§ 1.º a 4.º do art. 41[6].
Importante salientar que não basta o envio da citação por e-mail ou por mensagem de SMS/Whatsapp/Telegram. Primeiro, porque o número ou o e-mail pode não ser o melhor contato do profissional que está sendo citado, ainda que seja o dado que esteja na base do CFM. Segundo, porque o número ou o e-mail pode estar equivocado na tentativa de citação, o que implicará em nulidade de todos os atos processuais realizados.
Assim, a boa prática da citação digital implica em:
- Ser realizada por número de contato ou e-mail oficial do CRM ou CFM;
- Existir confirmação de leitura da mensagem por aplicativo ou e-mail dentro do prazo de 3 dias;
- Haver confirmação de quem está recebendo a mensagem;
- Justificar eventual divergência entre os dados cadastrados no CFM com o dado utilizado para citação;
- Formalizar o ato da citação nos autos, indicando por imagem e certificados a comprovação de recebimento, visualização e identidade do receptor.
De outro modo, a citação deve ser realizada pelos outros modos indicados pela Resolução[7]. Inclusive, havendo dúvidas se ocorreu efetivamente a citação, é preferível que outras formas sejam concomitantemente utilizadas.
A citação ou a intimação será considerada cumprida se houver preenchidos os requisitos citados acima, devendo ser certificado formalmente o ato no processo e o eventual prazo terá início no dia útil subsequente à certificação.
O dever de boa-fé e cooperação
O art. 5.º, caput, do novo CPEP[8] trouxe para o âmbito dos processos éticos os deveres jurídicos estabelecidos pelos arts. 5.º e 6.º do Código de Processo Civil[9].
O novo Código, portanto, adotou os mesmos deveres processuais que o sistema judicial tem por base, que é o da boa-fé e o da cooperação entre as partes. Muito embora possam soar termos jurídicos incertos, a doutrina tem consolidado diversos deveres jurídicos decorrentes de tais parâmetros[10].
Além disso, é importante ressaltar que o novo CPEP diz “aquele que de qualquer forma participa do processo”, ou seja, não apenas quem acusa ou quem é acusado, mas também quem investiga, quem conduz e quem condena. Assim, a cooperação das partes que realizam funções institucionais forma uma comunidade de trabalho, com a participação e responsabilização dos resultados tanto quanto as partes. Em relação ao sistema CRM/CFM, o dever de cooperação implica em: a) dever de esclarecimento; b) dever de prevenção; c) dever de consulta; d) dever de auxílio.[11]
O dever de esclarecimento estabelece que Conselheiros e CRM/CFM devem fundamentar de forma clara e transparente as suas decisões, de modo que, se não tiver condições para tanto, deve diligenciar e requerer informações suficientes para que possa decidir adequada e transparentemente, indicando os seus fundamentos. O dever de fundamentar é, igualmente, um dever que é devido em respeito à Constituição Federal, que assim determina que qualquer órgão na estrutura da administração pública (inclusive a indireta, que é o caso do CFM), deve fundamentar todas as suas decisões.
O dever de prevenção está ligado à preocupação de que todos os elementos fundamentais do processo estejam adequadamente formulados, de movo a prevenir injustiças por lacunas, imprecisões, ou mesmo incertezas quanto ao fato apurado e a conduta atribuída a quem é investigado.
Já o dever de auxílio é aquele em que o CFM/CRM deve auxiliar as partes a superar qualquer dificuldade que possa surgir para realizar sua participação processual e no exercício de seus direitos, especialmente o de contraditório, bem como a realizar seus ônus processuais[12].
O dever de consulta implica que os Conselheiros devem assegurar que os fundamentos da decisão sejam adequadamente debatidos pelas partes para evitar a decisão surpresa. Ou seja, não adianta as partes discutirem o tópico A, apresentando os argumentos A’ e A’’, e a decisão apresentar o fundamento A’’’, que não teve oportunidade de manifestação das partes anteriormente, ou ainda apresentar um fundamento B, reenquadrando o tópico debatido. Aliás, é necessário que os Conselheiros advirtam as partes sobre a possibilidade de haver questões que possam ser decididas de ofício ou ainda outras que não foram debatidas e que possam interferir na decisão do caso posto[13]. Se os Conselheiros se recusam a participar do debate, tirando uma discussão que não condiz com os debates conduzidos pelas partes, ele estará promovendo uma decisão surpresa[14], que vai completamente contra o sistema processual adotado.
Com isso, é preciso ser bem explícito de que só se pode levar em conta os fatos e as provas em que se conferiu às partes a possibilidade de debaterem e se posicionarem a respeito[15]. Por conta disso, chamamos atenção à próxima mudança do novo código.
A utilização de provas da sindicância no Processo Ético
O novo CPEP autorizou a utilização das provas produzidas na Sindicância como parte do PEP para fins probatórios, nos termos do parágrafo único do art. 53.
Apesar de considerarmos um acréscimo importante, que traz mais robustez ao PEP, salientamos que tudo o que foi produzido durante a Sindicância somente poderá integrar se for dado oportunidade de quem é acusado a se manifestar sobre tais provas no Processo Administrativo, podendo se defender do arcabouço probatório oriundo da sindicância, inclusive para desconstituí-la porque feita com viés cognitivo insuperável ao devido contraditório.
Trata-se de, novamente, medida que preza pelo contraditório do acusado.
Linguagem neutra
As línguas evoluem de forma natural e suas transformações demonstram as mudanças na percepção de mundo, uma vez que é preciso novos arranjos para descrever novos cenários, conceitos e ideias, conforme ensina Daniela Santos[16].
No mundo jurídico, transformações da linguagem tem ocorrido pouco a pouco, não apenas informalmente pela consciência do grupo social que atua com Direito, como também oficialmente, como é o caso do TSE que apresentou um “Guia de Linguagem Inclusiva para Flexão de Gênero”[17], e atende à Resolução 376/2021 do Conselho Nacional de Justiça, que dispõe sobre o emprego obrigatório da flexão de gênero para nomear profissão ou demais designações na comunicação social e institucional do Poder Judiciário[18].
Também o novo CPEP atentou-se ao desenvolvimento das instituições e suas linguagens, e apresentou a nova resolução com linguagem inclusiva. Se, antes, o CPEP falava em “o presidente”, “o corregedor”, providenciou que agora seja mencionado o cargo sem referência ao gênero: “a presidência”[19] e “a corregedoria”[20].
Esta mudança demonstra o reconhecimento institucional da participação feminina, inclusive ocupando os respectivos cargos citados, e merece o reconhecimento e aprovação para que a inclusão permaneça sendo estimulada.
Entrada em vigor e regras de direito intertemporal
As regras contidas no CPEP devem ser aplicadas imediatamente, a partir de sua entrada em vigência. Esta disposição espelha o sistema de isolamento dos atos processuais, pelo qual se preservam os atos processuais já realizados, somente aplicando a lei processual nova àqueles atos processuais vindouros.
O Código novo deve respeitar todos os efeitos jurídicos produzidos sob a égide da regra anterior, mas se aplica imediatamente às situações por ele reguladas, a partir da sua entrada em vigor. No que tange aos recursos, é preciso particularizar-se a regra. Duas são as situações para a regra nova, quais sejam: a que rege a admissibilidade do recurso, aplicando-se a vigente à época da prolação da decisão; e a que rege o procedimento, aplicando-se a lei vigente à época da interposição do recurso.
Sobre os autores
Henderson Fürst
Doutor em Direito pela PUC-SP. Doutor e Mestre em Bioética pelo CUSC. Professor de Direito Constitucional da PUC-Campinas. Professor de Bioética do Hospital Israelita Albert Einstein. Presidente da Comissão Especial de Bioética e Biodireito da OAB-SP. Advogado.
Ricardo Yamin Fernandes
Doutorando em Direito pela PUC-SP. Mestre em Direito pela PUC-SP. Professor assistente de processo civil na PUC-SP. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Membro da Associação Brasileira de Direito Processual. Advogado e Gerente Jurídico.
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[1] Art. 19, § 5.º: § 5º A sessão plenária poderá ser realizada em ambiente eletrônico, por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens de forma síncrona.
[2] Art. 22 (…)
- 1º A audiência de conciliação poderá ser realizada em ambiente eletrônico, por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens de forma síncrona.
- 2º Na audiência realizada por videoconferência as oitivas das partes serão reduzidas a termo e lidas pelo conselheiro presidente do ato. Havendo concordância, será por ele assinado e em seguida inserido nos autos.
(…)
[3] Art. 25 (…)
- 1º A audiência para firmar TAC poderá ser realizada em ambiente eletrônico, por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens de forma síncrona.
- 2º Na audiência realizada por videoconferência as cláusulas do TAC poderão ser reduzidas a termo e lidas pelo conselheiro presidente do ato. Havendo a concordância do compromissário será assinado pelo Presidente do ato e em seguida inserido nos autos.
(…)
[4] Art. 29 (…)
- 4º A sessão Plenária poderá ser realizada em ambiente eletrônico, por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens de forma síncrona.
[5] Art. 37. A citação inicial, na forma do art. 35, poderá ser feita em qualquer lugar em que se encontre o denunciado e será realizada:
I ? pelos Correios, com Aviso de Recebimento, ou outro meio de comprovação oficial de recebimento fornecido pelos Correios;
II ? por servidor ou conselheiro do CRM devidamente habilitado ou pelos Correios, via Aviso de Recebimento por Mãos Próprias (ARMP);
III ? por Carta Precatória, quando frustradas as hipóteses previstas nos incisos I e II deste artigo;
IV ? por edital, quando frustradas as hipóteses anteriores.
(…)
[6] Art. 41 (…)
- 1º A citação e intimação serão feitas preferencialmente por aplicativos de mensagens ou correspondência eletrônica, desde que sejam adotadas medidas para atestar a autenticidade do número telefônico ou do endereço eletrônico, bem como a identidade do destinatário do ato processual, com os dados da ficha cadastral do CRM/CFM ou da denúncia apresentada.
- 2º As comunicações de atos processuais por aplicativos de mensagens serão enviadas a partir do aparelho celular do Conselho Regional ou Conselho Federal exclusivo para essa finalidade.
- 3º A citação ou a intimação será considerada cumprida se houver confirmação de recebimento da mensagem ou correspondência eletrônica, por meio de resposta do intimando, no prazo de 3 (três) dias de seu envio, devendo ser certificado formalmente o ato no processo e o eventual prazo terá início no dia útil subsequente à certificação.
- 4º Se não houver a entrega e leitura e/ou confirmação do recebimento da mensagem ou correspondência eletrônica pela parte no prazo de 3 (três) dias, o CRM/CFM providenciará a citação ou intimação conforme previsto no artigo 41, incisos e parágrafos e artigo 45 desse Código.
(…)
[7] Art. 41. (…)
I – por aplicativos de mensagens ou por correspondência eletrônica;
II ? pelos Correios ou outra empresa equivalente, com comprovação de recebimento.
III ? por servidor do CRM, quando possível, com comprovação de recebimento ou certidão de recusa,
IV ? por Carta Precatória;
V ? por edital, quando frustradas as hipóteses anteriores.
(…)
[8]Art. 5º Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé e cooperar para que seja proferida decisão de mérito justa.
[9] Art. 5º Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé.
Art. 6º Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.
[10] Veja, por exemplo, QUEIROZ, Welder. Princípio do contraditório e a vedação da decisão surpresa. Rio de Janeiro: Forense, 2018.
[11] SOUSA, Miguel Teixeira de. Estudos sobre o novo processo civil. 2 ed. Lisboa: Lex, 1997, p. 62-67
[12] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Juiz e partes de um processo fundado no princípio da cooperação. Revista Dialética de Direito Processual, São Paulo, Dialética, n. 102, p. 69-70, set. 2011.
[13] NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal: Processo civil, penal e administrativo. 9 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 228.
[14] PRÜTTING, Hanns; FALCO, Sandra De. Código Processal Civil Alemán (ZPO): Traducción con un estudio introductrio al proceso civil alemán contemporáneo. Traducción [para o Espanhol] de Juan Carlos Ortiz Pradillo e Álvaro J. Pérez Ragone. Montevideo: Konrad-Adenauer-Stiftung, 2005, p. 52-53
[15] JAUERNIG, Othmar. Direito processual civil. Coimbra: Almedina, 2002, p. 411. Tradução de F. Silveira Ramos da 25a edição, totalmente refundida, da obra criada por Friedrich Lent: Zivilprozessrecht: ein Studienbuch/von Othmar Jauernig-25., vollig neubearb. Aufl. Des von Friedrich Lent begr. Werkes. Munchen: Beck, 1998, p. 168.
[16] SANTOS, Daniela. Todos os dias a língua muda – reflexões sobre uma linguagem inclusiva. Disponível em: https://blog.grupogen.com.br/juridico/2021/08/13/reflexoes-sobre-uma-linguagem-inclusiva/#_ftnref7
[17] Disponível em: https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/arquivos/tse-guia-de-linguagem-inclusiva/rybena_pdf?file=https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/arquivos/tse-guia-de-linguagem-inclusiva/at_download/file
[18] Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/original1229362021030560422430ecd5f.pdf
[19] Vide art. 9.º do novo CPEP.
[20] Vide art. 16, caput, do novo CPEP.