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Incorporação de bens ao patrimônio nacional e o estado de guerra

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Incorporação de bens ao patrimônio nacional e o estado de guerra

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REVISTA FORENSE 142

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14/06/2021

Revista Forense – Volume 142
JULHO-AGOSTO DE 1952
Semestral
ISSN 0102-8413

FUNDADA EM 1904
PUBLICAÇÃO NACIONAL DE DOUTRINA, JURISPRUDÊNCIA E LEGISLAÇÃO

FUNDADORES
Mendes Pimentel
Estevão Pinto
Edmundo Lins

DIRETORES
José Manoel de Arruda Alvim Netto – Livre-Docente e Doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Eduardo Arruda Alvim – Doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/FADISP

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CRÔNICA

DOUTRINA

PARECERES

NOTAS E COMENTÁRIOS

BIBLIOGRAFIA

JURISPRUDÊNCIA

  • Jurisprudência Civil e Comercial
  • Jurisprudência Criminal
  • Jurisprudência do Trabalho

LEGISLAÇÃO

– Diante da comoção intestina ou da guerra externa não desaparecem os direitos individuais, não cessa o império da lei para se conceder arbítrio ao poder público; cessam apenas as garantias, isto é, os meios de defesa o as restrições legais com que o indivíduo pode sair ao encontro da autoridade para lhe embargar os passos.

– O estado de emergência ou de guerra, decretado sob o regime de 1937, suspendendo as “garantias” mas não os “direitas”, manteve inalterado o dever de indenizar, mas permitiu que, durante a sua vigência, o poder público ocupasse a propriedade privada sem as formalidades e delongas da indenização “prévia”; a êste efeito único se limita a influência do estado de sítio, ou de guerra, sôbre o direito de propriedade.

– Não havendo usucapião especial em favor da Fazenda Pública, o proprietário pode reivindicar os bens de que ela se apossou, enquanto não decorrer o prazo normal de usucapião.

PARECER

1 Durante a vigência do estado de guerra, declarado no país pelo dec. nº 10.358, de 31 de agôsto de 1942, o Govêrno federal incorporou ao patrimônio da União o acervo de mais de uma empresa, sem observância das normas gerais para desapropriação por utilidade pública. Essas incorporações foram determinadas geralmente por decretos-leis, e as indenizações ou foram ajustadas de comum acôrdo, ou foram deixadas para acertamento posterior.

No caso da incorporação dos bens móveis e imóveis pertencentes à Companhia Viação São Paulo-Mato Grosso e à Emprêsa Transparaná Ltda., o dec.-lei nº 6.118, de 16 de dezembro de 1943, assim dispôs sôbre a indenização devida às sociedades proprietárias:

“Art. 2º Os referidos bens serão imediatamente incorporados ao patrimônio do Serviço de Navegação da Bacia do Prata, criado pelo dec-lei nº 5.252, de 16 de fevereiro de 1943, mediante depósito no Banco do Brasil e à disposição das referidas emprêsas de Cr$ 3.581.219,15, valor da avaliação já feita por aquele Serviço, ficando sub-rogados sôbre êsse depósito os direitos creditórios do Banco Alemão Transatlântico atualmente sob intervenção e em liquidação pelo Govêrno federal”.

A indenização de Cr$ 3.581.219,15 foi fixada unilateralmente pela expropriante, e o seu pagamento se verificou, nos têrmos do artigo transcrito, mediante compensação com créditos do Banco Alemão Transatlântico, não contra as sociedades proprietárias, mas contra Bata Zlin S. A., sociedade então sediada na Tcheco-Eslováquia.

Em 14 de dezembro de 1948, as sociedades proprietárias fizeram distribuir um protesto contra à União, com o objetivo expresso de interromperem prescrição, no qual se declaravam dispostas a reclamar os seus direitos nestes têrmos:

“Como as suplicantes pretendem reaver a importância que de direito lhes pertence e que foi desviada contra a sua vontade para atender a um pagamento indevido, e desejando, portanto, interromper a prescrição que está a ocorrer, vêm manifestar com o presente protesto a sua intenção formal de evitar ocorra a prescrição, para que oportunamente pelos meios competentes pousam fazer valer os seus legítimos direitos”.

Em 12 de junho de 1951, tornando efetivo aquêle intento, as sociedades intentaram contra a União uma ação ordinária, em que pedem alternativamente:

a) que seja anulada a incorporação ao patrimônio nacional de todos os bens das suplicantes, ordenada, sem forma nem figura legal nem de juízo, pelo decreto-lei nº 6.118, de 16 de dezembro de 1943, e em conseqüência devolvidos às suplicantes os mesmos bens, por fôrça da presente reinvindicação, com perdas e danos;

“b) não sendo isso possível, a justa indenização, inclusive perdas e danos pelo valor dos referidos bens, na base do seu verdadeiro preço àquela época, ou sejam Cr$ 9.068.000,60 (doc. sob nº 11), restituindo-se às suplicantes inclusive a quantia já compreendida naquela cifra, de Cr$ 3.581.219,15, que indevidamente foi entregue ao Banco Alemão Transatlântico”.

2. Duas são as questões a examinar em atenção à consulta: 1ª) se a suspensão das garantias constitucionais do direito de propriedade, durante o estado de guerra tornas a incorporação de quaisquer bens ao patrimônio nacional insuscetível de apreciação pelo Poder Judiciário; 2ª) se, em caso de ser admissível tal apreciação, o direito das sociedades proprietárias caiu ou não em prescrição.

À primeira dessas questões, não tenho dúvida em responder negativamente.

O estado de guerra, que a Constituição de 1937 distinguia do estado de emergência, nada mais é que uma forma ou modalidade do estado de sítio, situação excepcional em que se suspendem, por motivo de segurança pública, as norma, com que os particulares podem obstar o exercício imediato da autoridade. Não há, no estado de sítio, uma cessação ou interrupção da ordem jurídica. O Estado não se subtrai ao império da lei, não fica habilitado a fazer tábua rasa, dos direitos individuais. Apenas êstes direitos, que normalmente são munidos de meios eficazes e imediatos de defesa, assegurados pela Constituição – garantias constitucionais – ficam transitòriamente privados dêsses meios, cujo emprêgo poderia ser nocivo à segurança social.

Para bem compreendermos a distinção entre direitos e garantias, sôbre a qual repousa tôda a teoria do estado de sítio, é necessário partirmos da própria oposição entre a esfera dos direitos individuais e a da autoridade, oposição que caracteriza o regime constitucional democrático.

No regime não democrático, seja qual fôr sua qualificação política positiva, é difícil conceber uma oposição entre os direitos do indivíduo e a autoridade do Estado. A autoridade é a melhor, e a bem dizer a única proteção dispensada aos direitos individuais. No regime democrático, pelo contrário, concebe-se que o indivíduo precisa de uma proteção eventual contra a autoridade, e em função dessa eventual necessidade é que se modela a própria organização do Estado, separando os poderes e limitando as suas respectivas competências. A proteção do indivíduo contra o Estado, ou em têrmos mais precisos, a defesa dos direitos individuais contra as violações que lhe possam ser infligidas pela autoridade, é assegurada através de normas definidas como garantias constitucionais. Em alguns casos, tais garantias são remédios judiciários, como o mandado de segurança e o habeas corpus, em outros casos são restrições impostas por lei à atividade dos órgãos do poder público.

3. RUI BARBOSA, no opúsculo “Os atos inconstitucionais do congresso e do Executivo” ( ed. Companhia Impressora,, 1893, páginas 181 e segs.), desenvolveu com mestria a doutrina das garantias constitucionais, e mostrou que o estado de sítio, suspendendo-as, deixa intatos e confiados à proteção do Estado os direitos que elas tutelam. Nisso reside a essência do estado de sítio. Diante da comoção intestina ou da guerra externa, não desaparecem os direitos individuais, não cessa o império da lei para se conceder arbítrio ao poder público; cessam apenas as garantias, isto é, os meios de defesa e as restrições legais com que o indivíduo pode sair ao encontro da autoridade para lhe embargar os passos. Esta tem livres os seus movimentos, como requer a emergência; mas se usar dessa liberdade para ferir direitos individuais, responde a posteriori pelas conseqüências de seus atos.

Trazendo à colação a autoridade de ALCORTA (“Las Garantías Constitucionales”, ed. Buenos Aires, 1881), escreve RUI BARBOSA:

“Uma coisa, são garantias constitucionais, outra coisa os direitos, de que essas garantias traduzem, em parte, a condição de segurança, política, ou judicial. Os direitos são aspectos, manifestações da personalidade humana em sua existência subjetiva, ou nas suas situações de relação com a sociedade, ou os indivíduos, que a compõem. As garantias constitucionais stricto sensu são as solenidades tutelares, de que a lei circunda alguns desses direitos contra os abusos do poder.

“O notável publicista argentino, que consagrou uma obra ex professo às garantias constitucionais, frisa nìtidamente a distinção entre estas e os direitos que elas se destinam a salvaguardar contra certos perigos. Quando nossa Constituição se refere a direitos individuais, diz êle, nestes se compreendem todos os que constituem manifestações do indivíduo em si mesmo, nas relações com os demais indivíduos e nas modificações, que conservam, modificam, ou criam os bens; e, quando alude a garantias constitucionais, entendem-se as que protegem e amparam o exercício desses direitos“. A discriminação é intuitiva.

“Noutro lugar torna ao assunto o eminente escritor: “Existem limitações aos direitos individuais; mas, para evitar os abusos que, à sombra delas e por seu efeito, poderiam cometer-se, há também garantias, na mesma carta constitucional, que põem ao alcance de todos os prejudicados os meios de conseguir que o direito seja respeitado, e desapareça o abuso” (ob. cit., págs. 182 a 184).

E mais adiante:

“A confusão que irrefletidamente se faz muitas vêzes entre direitos e garantias, desvia-se sensìvelmente do rigor científico, que deve presidir a interpretação dos textos, e adultera o sentido natural das palavras. Direito “é a faculdade reconhecida, natural, ou legal, de praticar, ou não praticar certos atos”. Garantia ou segurança de um direito é o requisito de legalidade, que o defende contra a ameaça de certas classes de atentados, de ocorrência mais ou menos fácil” (ibidem).

4. O direito de propriedade era assegurado na Constituição de 1937 nestes têrmos:

“Art. 122. A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no país o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos têrmos seguintes:

…………………………………………………

14 – o direito de propriedade,. salvo a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia”.

Nesse preceito estão contidos o direito e sua garantia. O direito individual de propriedade impõe a qualquer dos poderes a necessidade de indenização para que a desapropriação por utilidade pública se possa verificar. A indenização, como veremos adiante, é o equivalente em dinheiro da coisa desapropriada, de modo que nem o proprietário sofre diminuição em seu patrimônio, nem o expropriante faz, por seu turno, um enriquecimento sem causa. O direito à indenização ficaria exposto a violações que muitas vêzes valeriam por um confisco, se o texto constitucional não acompanhasse o reconhecimento do direito da outorga da garantia. Consiste esta na anterioridade da indenização. A indenização deve ser prévia, isto é, deve entrar no patrimônio do expropriado antes que dêle saia o bem reclamado pelo expropriante, de modo que não, se constitua em detrimento do primeiro uma solução de continuidade.

O estado de emergência ou de guerra, suspendendo as garantias, mas não os direitos, manteve inalterado o dever de indenizar, mas permitiu que durante sua vigência, o poder público ocupasse a propriedade privada sem as formalidades e delongas dá indenização prévia. A êste efeito único se limita a influência do estado de sítio ou de guerra, sôbre o direito de propriedade.

Não é outro o pensar do distinto jurisconsulto M. SEABRA FAGUNDES, no seu livro “O Contrôle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário” (2ª ed., pág. 427):

“Quando, porém, o estado de sítio resulte de guerra, externa ou de comoção intestina grave, com o caráter de guerra civil, o ato que o declare poderá suspender garantias constitucionais, inclusive as atinentes à propriedade, ficando esta à mercê de apropriação pelo Estado, sumária e sem prévio pagamento. Mas, se prescinde de prévia indenização, não se exclui o direito à compensação justa e em dinheiro, nem se permite o expropriar no interêsse privado. O estado de sítio suspende garantias constitucionais e não direitos, o que vale dizer que susta, provisoriamente, o exercício dêstes (que nas garantias encontram as suas condições de efetividade), exercício que se restara quando devolvida o país à normalidade jurídica. E, no inciso da Constituição sôbre o direito de propriedade, só o resguardo contra o expròpriamento sem indenização prévio, é que constitui garantia, no sentido próprio de forma processual ou política; destinada a proteger, em seu exercício, o direito material. A indenização em si, como equivalente da coisa expropriada, não é garantia (direito subjetivo público formol) e sim direito substancial, intocável pelo estado de sítio”.

No mesmo sentido, RUI BARBOSA, “Comentários à Constituição Federal Brasileira”, coligidos por HOMERO PIRES (ed. 1934, volume VI, pág. 283):

“A indenização posterior não é uma negação do direito de propriedade; é o seu reconhecimento. Mesmos nos casos de guerra declarada, os governos são obrigados a indenizar a propriedade depredada, quando a destruição constitui parte das medidas preparatórias das operações militares.

“A devastação da propriedade, em plena guerra, em plena campanha, não estabelece a responsabilidade do Govêrno; se, porém, foi realizado como um dos atos preparatórios de defesa ou de ataque em estado de guerra, está sujeita à regra geral que protege o direito de propriedade.

“Portanto Sr. presidente, com maioria de razão, a respeito do estado de sitio, que é muito menos do que é o estado de guerra, não se pode reconhecer ao Govêrno o direito de violar a propriedade, ou, pelo menos, de suprimi-la, de confiscá-la, de cassar o uso da propriedade.

“Sob o império, sob a urgência da necessidade imediata, o uso desta propriedade particular se poderá talvez legitimar: é uma opinião que aventuro sem mais estudo; mas o seu reconhecimento ficará sempre subentendido, e a indenização posterior constitui o reconhecimento do direito.

“Não há, portanto, a suspensão do direito constitucional, há a suspensão das garantias constitucionais, isto é, dos meios protetores, das formas de processo, de certas garantias da vida regular dos países livres.

“Suspende-se a certos respeitos a ação processual da justiça; facilitam-se ao Poder Executivo os meios de executar as medidas de necessidade indispensável; mas a personalidade individual mantém-se, e também seus elementos substanciais e fundamentais, que são: a consciência, a propriedade e a vida”.

5: Se o dec.-lei nº 6.118, de 16 de dezembro de 1943, apenas contivesse a norma de incorporação dos bens móveis ou imóveis das sociedades proprietárias, deixando para momento ulterior a fixação, por acôrdo ou sentença, da indenização, não se lhe poderia, à vista do exposto, fazer a censura de inconstitucionalidade. O estado de guerra, expressamente invocado nos consideranda, em que o decreto-lei se fundamenta, justificaria a infração da regra de anterioridade. O que êle, porém, não justifica é a fixação unilateral pelo expropriante de uma soma arbitrária, a título de indenização. Se as sociedades proprietárias aceitassem essa soma ou se o Poder Judiciário viesse a verificar que ela, de fato, exprimia não só o valor dos bens móveis e imóveis incorporação, mas a composição do dano decorrente da forma por que sé processou a incorporação, poderia ela ser aceita como indenização. Não havendo, porém, acôrdo nem sentença, as sociedades proprietárias têm ação para reclamar a coisa que lhes foi arrebatada, ou a justa indenização do seu valor.

Não há discussão na doutrina sôbre a natureza e a extensão da indenização devida nas desapropriações. O princípio que domina a matéria é o da responsabilidade do Estado pelos atos legítimos de seus representantes, e o fim da indenização é, quanto ao expropriado, repor no seu patrimônio, em dinheiro, o equivalente do que é retirado pela desapropriação e, quanto ao expropriaste, evitar que êle faça um enriquecimento sem causa, pagando menos do que percebeu.

“L´obbligo dell´indennità”, escreve ERFILIO MEOLI, em seu “Il Diritto di Proprietá” (ed. Cromo, pág. 63), “dá luogo ad una conversione. È questo un caso di responsabilità degli enti amministrativi per atti legittimi”.

E ARTURO LENTINI, em “Le Espropriazioni per Causa di Pubblica Utilità” (ed. Soc. Editrice Libraria, 1936, pág. 141):

“Il concetto di indennità rachiude in sè quello di emenda del danno, e il danno significa una diminusione di patrimonio, cioè, o la perdita di una parte materiale del patrimonio stesso, o la perdita di un aspettativa giuridicamente stabilita. Se il proprietario espropriato per utilità, pubblica patisce un danno, ha ragione di essere risarcito, ed ha diritto per conseguenza che il suo patrimonio sia posto nella stessa condizione in cui era prima dell´espropriazione”.

O sentido de enriquecimento ilícito do Fisco, que teria tôda desapropriação com indenização inferior ao valor efetivo da coisa, foi entre nós bem fixado no acórdão do Supremo Tribunal Federal de 30-9-49, no recurso extraordinário nº 12.402, entre partes Prefeitura do Distrito Federal versus V. Ordem Terceira do Carmo (in “Diário da Justiça” de 18-9-51, pág. 2.822):

“Atribuir-se ao Fisco vantagem patrimonial, sem que êle prestasse ao proprietário o ressarcimento, seria a admissão do confisco, não tolerado em nosso Direito.

“O preceito do art. 27, parág. único, do dec.-lei nº 3.365, tem assim, dependente sua aplicação do princípio que veda ao Fisco obter, pela expropriação, vantagem que não resulte de equivalente quantia em dinheiro paga ao expropriado” (voto do ministro HAHNEMANN GUIMARÃES).

6. Se o estado de guerra permitia ao Govêrno federal imitir-se na posse dos bens desapropriados antes de paga indenização cabal, nem por isso com essa imissão se consumaria a transferência da propriedade.

Não há desapropriação perfeita e acabada enquanto não ingressa no patrimônio do expropriado a soma representativa da indenização. Até que a indenização esteja paga, não parcialmente, mas totalmente, a coisa permanece no domínio do expropriado, ainda que o expropriante dela se tenha apossado.

A primeira e mais decisiva prova de que a transferência do domínio é posterior à indenização está no fato de que, nas desapropriações regulares, a coisa cuja desapropriação foi decretada pude ser objeto de atos de disposição por parte do proprietário até o recebimento da indenização. Se a propriedade se transferisse em momento anterior, já o expropriado não poderia alienar o que cessara de lhe pertencer.

A conclusão não se altera quando o expropriante se imite na posse da coisa antes de indenizar o expropriado. O patrimônio dêste não pode sofrer diminuição de substância, e assim sendo, enquanto não lhe fôr vertida a indenização, permanece íntegro o seu direito de propriedade.

“L´accettazione dell´indennità”, escreve LENTINI, “non porta come conseguenza il passaggio di proprietà dell´immobile dall´espropriato nell´espropriante. Perchè tale passaggio avvenga, l´indennità dev´essere effetivamente pagata o depositata” (ob. cit., pág. 164).

No mesmo sentido SARRATINI, “Commento alle leggi sulla espropriazione per pubblica utilità e sul risarcimento”, ed. 1891, pág. 11; P. CARUGNO, “L´espropriazione per pubblica utilità”, ed. 1938, págs. 131 e 133; em sentido contrário os monografistas franceses e alemães, cujas legislações fazem decorrer o efeito traslativo expressamente do decreto de desapropriação: G. BAUDRY, “L´expropriation pour cause d´utilité publique”, ed. 1937, §§ 97, 122 e 148: SCHLECHER, “Die Rechtswirkungen der Enteignung”, ed. 1893, pág. 32.

No caso da consulta não houve indenização justa, aceita pelas partes ou fixada judicialmente, e assim sendo, embora os bens desapropriados tenham sido transferidos para a posse de uma autarquia federal, o direito de propriedade das duas sociedades não sofreu solução de continuidade. E isso porque, nas desapropriações, o direito de propriedade sofre apenas mudança de objeto, transitando de determinado bem para uma importância equivalente, sem que os patrimônios do expropriado e do expropriante sofram qualquer diminuição ou aumento de valor.

Essa exata compreensão dos efeitos do decreto-lei de incorporação é indispensável para justificação do cabimento da ação reivindicatória. O expropriado que perdeu, por fôrca de ato legislativo em estado de guerra, a posse de seus bens, mas que, não tendo recebido indenização justa, conserva a propriedade, tem ação para reaver a posse perdida ou obter a composição do desfalque patrimonial que lhe é impôsto. Se os bens lhe houvessem sido arrebatados por ato legislativo ou administrativo, em período de normalidade e de plenitude constitucional, caberia ação rara reaver a posse, e o Estado não se beneficiaria da alternativa de poder conservá-la mediante o pagamento de uma indenização, já que esta não teria sido prévia, como impunha a Constituição. Tendo, porém, ocorrido a incorporação quando, se achavam suspensas, por fôrça do estado de guerra, as garantias constitucionais, o Estado pode convalidar os efeitos do seu ato mediante o pagamento da indenização que fôr aceita pelo expropriado ou fixada pelo tribunal.

7. Se o dec.-lei nº 6.118 não pôs têrmo ao direito das duas sociedades proprietárias sôbre os bens que compunham seus respectivos acervos; se, por conseguinte, estas podem deduzir em juízo o próprio direito de propriedade mediante uma de suas ações tuitivas; é óbvio que não se pode cogitar de prescrição qüinqüenal, mas da prescrição ordinária específica das ações reais.

Constitui questão pacífica na jurisprudência e na doutrina que a prescrição de cinco anos, da qual se beneficia a Fazenda Pública, não se estende à reivindicação e às ações tuitivas do domínio em geral. O direito de propriedade, garantido pela Constituição, não se perde senão quando outra pessoa, por meio hábil de aquisição, toma o lugar do proprietário. Não havendo em lei usucapião especial em favor do Fisco, o proprietário poderá reivindicar sua coisa contra, a pessoa de direito público, cone a detenha, enquanto não decorrer o prazo ordinário ou extraordinário ao fim do qual esta alcançará o domínio.

Essa doutrina é bem resumida por A. L. DA CÂMARA LEAL, no livro “Da Prescrição e da Decadência” (ed. Saraiva, 1939, página 365):

“A prescrição qüinqüenal a favor do Estado, como preceito geral que é, deixa de ter aplicação, quando há um preceito especial que a impede, em virtude de princípios baseados nas garantias individuais asseguradas pela Constituição. Nessas condições está a prescrição das ações reivindicatórias contra o Estado, devendo prevalecer a ordinária, ou extraordinária, sôbre a excepcional de cinco anos, porque ela representa uma garantia, constitucional ao direito de propriedade.

“Portanto, a ação reivindicatória contra o Estado prescreverá em 30 anos se a posse dêste não se fundar em justo título e boa-fé; e em 20 anos, entre ausentes, e em 10, entre presentes, se a posse do Estado se fundar em justo título e boa-fé”.

É pacífica, nesse sentido, a jurisprudência. O Supremo Tribunal Federal, em acórdão de 28-8-1943, reconhece:

“Não se incluem na prescrição qüinqüenal a favor da Fazenda Pública as ações reais e especialmente a reivindicatória. Para tanto seria preciso que a prescrição aquisitiva se operasse em favor do Estado na prazo de cinco anos” (voto do ministro FILADELFO AZEVEDO, in “REVISTA FORENSE”, vol. 99, pág. 338).

O mesmo Supremo Tribunal Federal, em acórdão de 19-1-1938:

“A prescrição de 5 anos a favor da Fazenda Pública só se aplica às ações pessoais, e não às ações reais” (ementa). O dispositivo do art. 178, § 10, n° VI, compreende, sem dúvida, todos os direitos obrigacionais; não impede, porém, a aplicação dos dispositivos especiais concernentes ao usucapião” (voto do ministro EDUARDO ESPÍNOLA, in “Rev. dos Tribunais”, volume 116, pág. 792).

E o mesmo Tribunal, em acórdão de 23-1-1942:

“Não abrange as ações reais a prescrição qüinqüenal estabelecida em favor de pessoas de direito público. Enquanto subsiste o direito de propriedade, perdura a ação de reivindicação que a assegura” (voto do ministro OROZIMBO NONATO, in “REVISTA FORENSE”, vol. 91, pág. 401).

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em acórdão de 15-3-1943:

“A prescrição qüinqüenal a favor da Fazenda Pública não atinge as ações reais”, in “REVISTA FORENSE”, vol. 95, pág. 108; no mesmo sentido, o mesmo Tribunal, ibidem, vol. 105, pág. 523; vol. 91, pág. 170; vol. 78, pág. 73, “Rev. dos Tribunais”, fascículo 448, pág. 220; ibidem, vol. 101, página 212.

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em acórdão de 1-6-1944:

“Não está compreendida na prescrição qüinqüenal a ação reivindicatória. O dispositivo que a estabelece em favor da entidade pública se refere à prescrição extintiva, a que não estão sujeitas as ações de domínio, por fôrça do princípio segundo o qual as ações reais subsistem enquanto subsista o direito a elas inerente” (in “REVISTA FORENSE”, vol. 102, pág. 100).

Assim sendo, e não cabendo dúvida sôbre o caráter real, reipersecutório, da ação que as sociedades expropriadas movem contra, a União, respondo também negativamente à segunda questão suscitada na consulta: não correu prescrição contra as sociedades em causa, está vivo seu direito de ação contra a União para recuperação dos bens, a menos que a União prefira pagar o seu justo valor.

Aliás, ainda que a ação não fôsse real, mas pessoal e sujeita, portanto, à prescrição de cinco anos, o protesto interruptivo teria, sido eficaz para, elidir a prescrição. É certo que no protesto não feri articulada tôda a reclamação, posteriormente vertida na inicial. Mas as sociedades declararam sua intenção de fazerem valer oportunamente pelos meios competentes… os seus legítimos direitos.

Não é o protesto interruptivo, é a litiscontestação, que fixa os limites qualitativos e quantitativos da demanda (art. 181 do Cód. de Proc. Civil). O protesto produz efeitos conservativos da relação de direito, sem que o notificante fique circunscrito pelos seus têrmos, e impedido de modificar, no pedido inicial ulterior, o quantum e mesmo a natureza da reclamação.

8. Resta a examinar a compensação determinada pelo dec.-lei nº 6.118 entre a indenização parcial concedida ás sociedades expropriadas e os créditos do Banco Alemão Transatlântico contra Bata Zlin S.A.

Requisito essencial da validade da compensação é a identidade subjetiva dos credores e devedores recíprocos, cujos créditos se anulam até concorrente quantia.

“Se duas pessoas”, reza o art. 1.009 do Cód. Civil, forem ao mesmo tempo credor e devedor uma da outra, as duas obrigações extinguem-se até onde se compensarem”.

Além dêsse requisito, a compensação tem outros, definirias em leis, tais como a liquidez e exigibilidade das dívidas, a certeza e fungibilidade de seu objeto, etc. Qualquer dêsses requisitos poderia, dentro de certos limites, ser modificado por ler especial, menos o primeiro – da identidade subjetiva dos credores e devedores recíprocos – sob pena de cair, a lei que o modificasse, sob a imediata censura de inconstitucionalidade.

De fato, o que legitima a compensação, e dela faz um modo de extinção de obrigações equivalente ao pagamento, é que através dela cada um dos credores obtém a mesma satisfação patrimonial, que resultaria de se desobrigarem ambos separadamente de seus compromissos. O patrimônio de cada um sofre, por uma operação única, a dedução do seu débito e o incremento do seu crédito, alcançando o mesmo saldo real.

Se, porém, a compensação se faz entre o débito para com uma pessoa e o crédito para com pessoa diferente, há alguém que vê o seu patrimônio diminuído de um crédito, sem extinção de um débito correspondente, e que sofre, portanto, verdadeiro confisco.

“I crediti compensabili devono essere reciproci”, escreve TORQUATO CUTURI em seu “Trattato delle Conpensazioni” (ed. S. E. L., 1909, pág. 214), “cioè le stesse persone devono essere, in modo principale, in debito e in credito l´una verso l´altra. Non basta, dunque che siano obbliqate fra loro, ma lo devono essere in una determinata maniera, la quale escluda qualunque credito che si possa addurre nota in persona procria”.

É certo que há casos, como o do mandatário ou o do credor no devedor solidário, em quer a reciprocidade só pode ser afirmada ou negada depois de um exorne acurado da estrutura das relações jurídicas em confrontação, mas em hipótese alguma dará lugar a dúvidas o caso de duas pessoas que entretenham, regular ou irregularmente, relações de sociedade, e que sejam separadamente credora e devedora de um terceiro. As personalidades distintas da sociedade e do sócio fazem com que não se possa, em caso algum, compensar a dívida de um com o crédito do outro.

Eis o que a respeito escreve o mesmo CUTURI:

“Se la società costituisce un ente collettivo avente personalità giuridica, come avviene per le società commerciali e per quel e civili che assumono la forma di società per azioni, essento nettamente ditinte le persone dei soci da quella sociale, non vi può essere argomento a dubitare se vi sia, o no, reciprocità tra il credito della società verso il terzo e il credito di lui verso il socio. Nè serio mi sembra il discutere per quelle in nome collettivo e per quelle in accomandita, sempre pei soci illimitatamente responsabili, perchè obbligati in solido anche oltre il conferimento sociale (arts. 106, 114, 115 cod. di comm.). Basta infatti osservare che è in tal modo tenuto per le obbligazioni sociali, solo in via sussidiaria, quando cioè, sia riuscita inutile l´escussione della società debitrice diretta e principale” (ob. cit., pág. 244).

No mesmo sentido GALLUPPI, “La teoria della compensazione”, ed. 1879, pág. 82; LYON-CAEN et RENAULT, “Dictionnaire de droit commercial”, VI, nº 159.

Se o Govêrno brasileiro supunha, o que a consulta não esclarece, que Bata Min S.A. fôsse sócia de qualquer das sociedades brasileiras expropriadas, ou de ambas, nem por isso podia compensar o crédito do Banco Alemão Transatlântico (sob contrôle federal) contra aquela sociedade tcheca, com o débito da Fazenda Nacional às referidas sociedades brasileiras. Seria isso violar o direito de propriedade das duas sociedades, cujos créditos não podem ficar extintos em virtude ele um pagamento feito a terceiro.

Pagando a Bata, Zlin S.A., ou cancelando sua dívida para com o Banco Alemão, Transatlântico, o que é a mesma coisa, a União federal não fez jus à quitação, mesmo parcial, da Companhia Viação São Paulo-Mato Groso e da Emprêsa Transparaná Limitada.

Quem paga mal deve pagar de novo. Nos termos do art. 934 do Cód. Civil, não subsiste o pagamento feito pela União nos termos do dec.-lei nº 6.118, senão na medida em que ela possa provar que o pagamento a Bata Zlin S.A. efetivamente reverteu em benefício das duas sociedades brasileiras. Estas fazem jus ao recebimento da indenização integral pela desapropriação sofrida, sem que a União possa deduzir, da soma, devida, aquilo que indevidamente pagou a terceiro por força da compensação indevida, a que se refere o dec.-lei nº 6.118.

É o meu parecer, S. M. J.

Rio de Janeiro, 30 de abril de 1952

Sobre o autor

F. C. de San Tiago Dantas, Prof. da Faculdade Nacional de Direito.

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