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Subfaturamento e subvaloração nas operações de importação
13/05/2021
O subfaturamento ou fraude de valor constitui uma das principais causas de retenção de mercadorias no despacho aduaneiro de importação. Foi em uma discussão relacionada a esse ilícito que o Supremo Tribunal Federal (STF) definiu, no Recurso Extraordinário (RE) nº 1.090.591, que: “É constitucional vincular o despacho aduaneiro ao recolhimento de diferença tributária apurada mediante arbitramento da autoridade fiscal” (Tema nº 1042). O problema é que, não raro, os operadores jurídicos acabam o confundindo com a subvaloração, gerando distorções na definição da base de cálculo do imposto de importação. Por isso, é fundamental compreender a diferença conceitual entre essas duas figuras afins.
Assim, em primeiro lugar, deve-se ter presente que a base de cálculo do imposto de importação[1] corresponde ao valor aduaneiro da mercadoria, que, por sua vez, é determinado mediante aplicação de um dos critérios ou métodos de valoração previstos no Acordo sobre a Implementação do Artigo VII do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (Gatt 1994), também denominado Acordo de Valoração Aduaneira (AVA). Esse ato normativo internacional – adotado por todos os países integrantes da OMC (Organização Mundial do Comércio) – foi incorporado ao direito brasileiro por meio do Decreto Legislativo nº 30/1994, promulgado pelo Decreto nº 1.355/1994.
O AVA estabelece um critério-base e preferencial de valoração – o método do valor da transação – e cinco critérios substitutivos e subsidiários, que são aplicados sucessivamente e em caráter excludente: (i) o método do valor de transação de mercadorias idênticas; (ii) o método do valor de transação de mercadorias similares; (iii) o método do valor dedutivo; (iv) o método do valor computado; e (v) o método da razoabilidade ou do último recurso (“the fall-back method”). Dentre esses, o mais adotado é o método do valor da transação. Nele a base de cálculo do imposto deve corresponder ao preço efetivamente pago ou a pagar pelas mercadorias em uma venda para exportação para o país de importação (Art. 1º[2]), acrescido dos ajustes previstos nos §§ 1º e 2º do art. 8 do AVA e em suas Notas Interpretativas:
“Artigo 8
1.Na determinação do valor aduaneiro, segundo as disposições do Artigo 1, deverão ser acrescentados ao preço efetivamente pago ou a pagar pelas mercadorias importadas:
(a) – os seguintes elementos na medida em que sejam suportados pelo comprador mas não estejam incluídos no preço efetivamente pago ou a pagar pelas mercadorias:
(i) comissões e corretagens, excetuadas as comissões de compra[1];
(ii) o custo de embalagens e recipientes considerados, para fins aduaneiros, como formando um todo com as mercadorias em questão;
(iii) o custo de embalar, compreendendo os gastos com mão-de-obra e com materiais.
(b) – o valor devidamente atribuído dos seguintes bens e serviços, desde que fornecidos direta ou indiretamente pelo comprador, gratuitamente ou a preços reduzidos, para serem utilizados na produção e na venda para exportação das mercadorias importadas e na medida em que tal valor não tiver sido incluído no preço efetivamente pago ou a pagar:
(i) materiais, componentes, partes e elementos semelhantes incorporados às mercadorias importadas;
(ii) ferramentas, matrizes, moldes e elementos semelhantes empregados na produção das mercadorias importadas;
(iii) materiais consumidos na produção das mercadorias importadas;
(iv) projetos da engenharia, pesquisa e desenvolvimento, trabalhos de arte e de design e planos e esboços necessários à produção das mercadorias importadas e realizados fora do país de importação.
(c) royalties e direitos de licença relacionados com as mercadorias objeto de valoração que o comprador deve pagar, direta ou indiretamente, como condição de venda dessas mercadorias, na medida em que tais royalties e direitos de licença não estejam incluídos no preço efetivamente pago ou a pagar;
(d) – o valor de qualquer parcela do resultado de qualquer revenda, cessão ou utilização subsequente das mercadorias importadas que reverta direta ou indiretamente ao vendedor.
2.Ao elaborar sua legislação, cada Membro deverá prever a inclusão ou a exclusão, no valor aduaneiro, no todo ou em parte, dos seguintes elementos:
(a) – o custo de transporte das mercadorias importadas até o porto ou local de importação;
(b) – os gastos relativos ao carregamento descarregamento e manuseio associados ao transporte das mercadorias importadas até o porto ou local de importação; e
(c) – o custo do seguro”.
Dessa forma, o ponto de partida para determinar a base de cálculo é o preço da mercadoria, que vem expresso em um documento privado emitido pelo exportador: a fatura comercial (invoice). No direito brasileiro, o importador não é obrigado a apresentar a fatura no despacho aduaneiro. Cumpre-lhe apenas informar o preço na declaração de importação (DI), conservando-a, em boa guarda e ordem, para eventual fiscalização (Lei nº 10.833/2003, art. 70). O preço declarado, ademais, deve ser aceito pela aduana, ainda que essa o considere reduzido, abaixo de estimativas de custo de produção ou dos parâmetros de mercado (Opinião Consultiva 2.1 do Comitê de Valoração Aduaneira da Organização Mundial das Aduanas – OMA)[3]. O AVA estabelece que “os procedimentos de valoração não devem ser utilizados para combater o dumping” (Introdução Geral). Por isso, não cabe a realização de defesa comercial no controle da base de cálculo do imposto de importação. Tal tarefa, conquanto relevante, está sujeita a regras e a procedimentos distintos, estabelecidos na forma do Acordo Antidumping e do Acordo de Subsídios e Direitos Compensatórios.
A recusa do preço declarado apenas pode ocorrer a partir de parâmetros objetivos, equitativos e neutros previstos no AVA, sendo o primeiro deles a veracidade e a exatidão das afirmações, das declarações e dos documentos apresentados pelo interessado para fins de valoração do produto (AVA, art. 17[4] e do § 6º do Anexo III[5]). Dito de um outro modo, a autoridade aduaneira não pode ter dúvidas acerca da veracidade desses elementos. Do contrário, o método do valor da transação deve ser afastado, o que implica, igualmente, a rejeição do valor declarado pelo importador. A base de cálculo do imposto, assim, deve ser determinada a partir de um dos métodos sucessivos do AVA, normalmente, considerando o valor da transação de mercadorias idênticas ou similares em operações paradigmas. Nesses casos, tem-se o que a doutrina aduaneira convencionou denominar subvaloração, isto é, uma redução da base de cálculo do imposto de importação em razão da aplicação indevida dos métodos de valoração aduaneira previstos no AVA.
É importante ressaltar que, na subvaloração, nem sempre se cogita de manipulação artificial do preço da transação. O que se tem é apenas o afastamento de um dos métodos de valoração pela não subsunção da operação de importação aos seus pressupostos de aplicabilidade. A veracidade e a exatidão é apenas um deles, ao lado de outros quatro: (i) a operação deve constituir uma compra e venda internacional; (ii) ausência de qualquer das cláusulas de limitação do preço, da posse ou do domínio previstas no art. 1.1 (“a”, “b” e “c”) do AVA; (iii) existência de dados objetivos e quantificáveis relativos aos ajustes do art. 8º (Nota Interpretativa ao Art. 8.3); e (iv) não-vinculação entre importador e exportador ou, caso estes constituam partes relacionadas, a aceitabilidade do preço pago ou a pagar na operação, determinada: (a) a partir do exame das circunstâncias da venda (art. 1.2.a); ou (b) da proximidade do preço adotado com um dos valores “critério” ou de “teste” do AVA (art. 1.2.b). Por outro lado, os demais métodos substitutivos do valor da transação também estão sujeitos a pressupostos específicos. A subvaloração, destarte, pode resultar da redução da base de cálculo do imposto de importação em razão da aplicação indevida de qualquer dos métodos de valoração[6].
Feito esse registro, cumpre retornar à hipótese inicial das operações com suspeita de manipulação indevida do preço, que são as mais recorrentes. Nessas situações, o afastamento do método do valor da transação somente tem lugar quando a autoridade aduaneira tem dúvidas acerca da veracidade e da exatidão das afirmações, das declarações e dos documentos apresentados pelo interessado para fins de valoração do produto. Isso pode resultar de diversos fatores, em especial das circunstâncias exemplificativamente enunciadas no § 2º do art. 32 da Instrução Normativa (IN) SRF nº 323/2003:
“Art. 32. […]
§2º As dúvidas da fiscalização aduaneira poderão ser fundamentadas, além de outras hipóteses, na incompatibilidade do preço declarado com:
I – os preços usualmente praticados em importações de mercadorias idênticas ou similares;
II – os valores, para mercadorias idênticas ou similares, indicados em cotações de preços internacionais, publicações especializadas, faturas comerciais pro forma e ofertas de venda;
III – os custos de produção de mercadoria idêntica ou similar.
IV – o preço de revenda da mercadoria importada ou de idêntica ou similar.”
Em segundo lugar, deve-se ter presente que, não sendo o caso de dúvida, mas de falsidade documental comprovada, a consequência jurídica será totalmente distinta. Nesses casos, a própria aplicabilidade do AVA é afastada, devendo a base de cálculo do imposto ser definida de acordo com o que for previsto na legislação de cada país, conforme esclarecido na Opinião Consultiva nº 10.1, do Comitê Técnico de Valoração Aduaneira da OMA:
“Opinião Consultiva 10.1
Tratamento aplicável aos documentos fraudulentos
O Acordo obriga que as administrações aduaneiras levem em conta documentos fraudulentos?
O Comitê Técnico de Valoração Aduaneira emitiu a seguinte opinião:
Segundo o Acordo, as mercadorias importadas devem ser valoradas com base nos elementos de fato reais. Portanto, qualquer documentação que proporcione informações inexatas sobre esses elementos estaria em contradição com as intenções do Acordo. Cabe observar, a este respeito, que o Artigo 17 do Acordo e o parágrafo 6 do Anexo III enfatizam o direito das administrações aduaneiras de comprovar a veracidade ou exatidão de qualquer informação, documento ou declaração apresentados para fins de valoração aduaneira. Consequentemente, não se pode exigir que uma administração leve em conta uma documentação fraudulenta. Ademais, quando uma documentação for comprovada fraudulenta, após a determinação do valor aduaneiro, a invalidação desse valor dependerá da legislação nacional.”
No Brasil, essa matéria encontra-se disciplinada no art. 88 da Medida Provisória nº 2.158-35/2001:
“Art. 88. No caso de fraude, sonegação ou conluio, em que não seja possível a apuração do preço efetivamente praticado na importação, a base de cálculo dos tributos e demais direitos incidentes será determinada mediante arbitramento do preço da mercadoria, em conformidade com um dos seguintes critérios, observada a ordem seqüencial:
I – preço de exportação para o País, de mercadoria idêntica ou similar;
II – preço no mercado internacional, apurado:
a) em cotação de bolsa de mercadoria ou em publicação especializada;
b) de acordo com o método previsto no Artigo 7 do Acordo para Implementação do Artigo VII do GATT/1994, aprovado pelo Decreto Legislativo no 30, de 15 de dezembro de 1994, e promulgado pelo Decreto no 1.355, de 30 de dezembro de 1994, observados os dados disponíveis e o princípio da razoabilidade; ou
c) mediante laudo expedido por entidade ou técnico especializado.
Parágrafo único. Aplica-se a multa administrativa de cem por cento sobre a diferença entre o preço declarado e o preço efetivamente praticado na importação ou entre o preço declarado e o preço arbitrado, sem prejuízo da exigência dos impostos, da multa de ofício prevista no art. 44 da Lei no 9.430, de 1996, e dos acréscimos legais cabíveis.”
Portanto, em regra, a autoridade aduaneira tem duas alternativas[7]: (i) nos casos de dúvida acerca da veracidade e da exatidão das afirmações, das declarações e dos documentos apresentados pelo interessado para fins de valoração, a autoridade aduaneira – após cientificar o importador de seus motivos – deve afastar o método do valor transação, apurando o crédito tributário mediante aplicação de um dos critérios sucessivos previstos no AVA (método do valor de transação de mercadorias idênticas, método do valor de transação de mercadorias similares, método do valor dedutivo, o método do valor computado ou método da razoabilidade ou do último recurso); e (ii) nas hipóteses de certeza da falsidade, entendida como tal aquela que pode ser objetiva e efetivamente provada pela autoridade aduaneira, os métodos do AVA deixam de ser aplicáveis, devendo o crédito tributário ser apurado de acordo com o art. 88 da Medida Provisória nº 2.158-35/2001.
Os casos de falsidade são designados por meio de um nomen iuris específico: subfaturamento, também chamado fraude de valor. Neles a fiscalização constata uma falsidade material ou ideológica da fatura comercial, evidenciando que a parte declarou um preço diverso do efetivamente pago ou a pagar pelo produto importado, visando à redução indevida da base de cálculo do imposto de importação. A hipótese não se confunde com as situações em que a autoridade aduaneira desconsidera o valor declarado a partir de parâmetros objetivos, equitativos e neutros previstos no AVA. Essas, por sua vez, são denominadas subvaloração pela doutrina aduaneira.
Quer saber mais sobre subvaloração e do subfaturamento? Essas questões são analisadas com profundidade nos Capítulos II e V do Curso de Direito Aduaneiro. Fica o convite para a leitura.
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[1] Isso é aplicável ao regime de alíquotas ad valorem, que é a regra no direito brasileiro.
[2] “Artigo 1
- O valor aduaneiro de mercadorias importadas será o valor de transação, isto é, o preço efetivamente pago ou a pagar pelas mercadorias, em uma venda para exportação para o país de importação, ajustado de acordo com as disposições do Artigo 8, desde que:
(a) não haja restrições à cessão ou à utilização das mercadorias pelo comprador, ressalvadas as que:
(i) sejam impostas ou exigidas por lei ou pela administração pública do país de importação;
(ii) limitem a área geográfica na qual as mercadorias podem ser revendidas; ou
(iii) não afetem substancialmente o valor das mercadorias;
(b) a venda ou o preço não estejam sujeitos a alguma condição ou contra-prestação para a qual não se possa determinar um valor em relação às mercadorias objeto de valoração;
(c) nenhuma parcela do resultado de qualquer revenda, cessão ou utilização subsequente das mercadorias pelo comprador beneficie direta ou indiretamente o vendedor, a menos que um ajuste adequado possa ser feito, de conformidade com as disposições do Artigo 8; e
(d) não haja vinculação entre comprador e o vendedor ou, se houve, que o valor da transação seja aceitável para fins aduaneiros, conforme as disposições do parágrafo 2 deste Artigo”.
[3] “2. O Comitê Técnico de Valoração Aduaneira examinou esta questão e concluiu que o simples fato de um preço ser inferior aos preços correntes de mercado para mercadorias idênticas não poderia ser motivo para sua rejeição para os fins do Artigo 1, sem prejuízo, no entanto, do estabelecido no Artigo 17 do Acordo.”
[4] “Artigo 17
Nenhuma disposição deste Acordo poderá ser interpretada como restrição ou questionamento dos direitos que têm as administrações aduaneiras de se assegurarem da veracidade ou exatidão de qualquer afirmação, documento ou declaração apresentados para fins de valoração aduaneira.”
[5] “[…] 6. O Artigo 17 reconhece que, ao aplicar o Acordo, as administrações aduaneiras podem ter necessidades de averiguar a veracidade ou a exatidão de qualquer afirmação, documento ou declaração que lhes for apresentada para fins de valoração aduaneira. As Partes concordam ainda que o Artigo admite igualmente que se proceda a investigações para, por exemplo, verificar se os elementos para a determinação do valor apresentados ou declarados às autoridades aduaneiras alfandegárias são completos e corretos. Os Membros, nos termos de suas leis e procedimentos nacionais, têm o direito de contar com a cooperação plena dos importadores para tais investigações.”
[6] Sobre a matéria, cf.: SEHN, Solon. Curso de direito aduaneiro. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 86 e ss.
[7] Além disso, o arbitramento na forma do art. 88 da Medida Provisória nº 2.158-35/2001 também tem lugar quando o sujeito passivo não observar o dever instrumental do caput do art. 70 da Lei nº 10.833/2003, deixando de conservar – em boa guarda e ordem – qualquer dos documentos de instrução obrigatória da DI (RA, art. 553), inclusive a fatura comercial.