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O risco dos Juízes Criativos
Gladston Mamede
23/04/2021
Embora a Lei 11.101/05 preveja que somente empresas podem pedir recuperação judicial, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina reconheceu a legitimidade de um clube de futebol, isto é, de uma associação desportiva, para pedir.
Não é um precedente isolado de decisão contra a lei: já deferiram o processo em favor de cooperativas, fundações educacionais e sabe Deus o que mais. Mas não há lei que o permita. A cada momento, um tribunal estica a lei para onde o legislador não a levou. Quem será, entre os órgãos da República, que irá colocar um limite nesta história? Quem dirá até onde essa extensão irá? Quem mais pode? Igrejas? Partidos Políticos? Pessoas Naturais? Como é possível ter alguma certeza, alguma segurança, quando cada um estica conceitos jurídicos ao seu alvedrio? Sem parâmetros, só há dúvidas: o Judiciário se torna um porteiro arbitrário a dizer: você entra, você não.
É um bom momento para se falar sobre teoria jurídica: o momento da incerteza. Sei que há muito foi superada a ideia de que o Direito comportaria uma ciência como as naturais e exatas. Afinal, juristas não trabalham com o real físico e suas afirmações não comportam aferição experimental. Vou além, como demonstrei há muito (Semiologia do Direito, Editora Atlas, 2012), não dá para contestar que o Direito é um fenômeno de poder. Contudo, scientia é conhecimento e, nesse sentido, há – ou deveria haver (espera-se que haja) – uma ciência do Direito. Uma teoria que cumprisse a função essencial de dar referência às pessoas físicas e jurídicas sobre como devem pautar suas vidas e comportamentos, permitindo que tomem decisões e calculem os respectivos efeitos.
Tudo isso vai por água a baixo quando um tribunal saca um coelho da cartola e espandonga toda e qualquer referência. Lê-se o acórdão e sobram interjeições do tipo uau! nó! ich! uh! eita! ou, retornando aos tempos do Pasquim: putzgrilla! Estávamos assistindo a um salutar movimento de evolução qualitativa da advocacia. Vários profissionais estavam conseguindo trocar os litígios pela assessoria e consultoria. Não era advocacia de briga, de fórum e tribunal, de arbitragem, mas exercício do conhecimento jurídico como meio de construir soluções seguras e otimizadas. Isso é coisa de primeiro mundo: socorrer-se de um advogado para que tudo saia certo e não por que algo deu errado.
Entrementes, surgem essas decisões estapafúrdias que simplesmente espandongam com toda e qualquer referência, por menor que seja. Como se pode realizar uma análise jurídica assim? Só se for para indicar dúvidas e reiterar a sabedoria popular: de cabeça de juiz e de bumbum de neném, nunca se sabe o que sairá. Não! Não pode ser assim! Quero dizer, com o neném é quase inevitável. Mas não com as manifestações judiciárias. Agora, imaginem o reflexo de tais decisões nos departamentos de análise de risco de instituições financeiras, de fundos de investimento etc. “A lei diz assim, mas… mas… nunca se sabe, entende?” A expressão já se tornou de uso corriqueiro e precisa ser reiterada: insegurança jurídica.
Insisto: estamos sem referência. A empregada do vizinho está devendo a Deus e todo mundo. Pode pedir recuperação judicial? E a escola de samba? E o escritório de advocacia? E o dentista, o médico, o coach, o camelô, o centro espírita? Se o clube de futebol pode, o clube de bocha também? O clube de damas? De xadrez? Já não é mais possível ter certezas e, portanto, para que são necessários professores, salvo os de retórica e argumentação? De uma sentença ou acórdão, qualquer coisa pode sair? Então, estimulam-se os advogados criativos, vale dizer, aqueles que tem uma tese para tudo, mesmo quando não há base alguma. “La base – e la garantia – soy yo!” E olha que a lista de chicaneiros notórios é vasta, embora vá eu me abster de enumeração exemplificativa. As cabras batem no peito para dizer ética e legalidade, mas a fama os precede. E pontofinalizo (o verbo existe, viu?) o parágrafo e começo outro.
Paradoxalmente, em seus concursos, os tribunais formulam questões que exigem resposta assertiva, reta, direta, inconteste, quando os próprios desembargadores e ministros proliferam surpresas jurídicas. No fim das contas, um jurista austríaco já morto, Hans Kelsen, mostra-se certo: no Direito, não importa o que se diz, mas quem diz: ermächtigung: a atribuição de competência e poder para dizer o que a norma diz. Sim, voltamos ao poder. Do jeito em que as coisas estão, não será mais necessário haver doutrina, nem teses, nem dissertações, nem professores. Bastará a autoridade salomônica: me dá cá o menino que vou cortá-lo ao meio. Espada, por favor! E salve-se quem puder, se é que alguém poderá.
Solução? Para mim, a resposta está nas instituições, no respeito às instituições. Sim, sou um institucionalista. Para mim, o “agir comunicativo” deve se construir em espaço institucional. Noutras palavras, sou essencialmente republicano. O problema de decisões como a que critico é o fato de traduzirem uma situação de crise institucional forte. O Judiciário não confia e não aceita o que faz o Legislativo, que não confia e não aceita o que faz o Judiciário, que não confia e não aceita o que faz o Executivo que não confia e não aceita o que faz o Judiciário, assim como não confia e não aceita o que faz o Legislativo que não confia e não aceita o que faz o Executivo. Então, passa ser muito mais uma questão de poder (e forçar o próprio poder, tentar esticá-lo, ampliá-lo) do que respeito às estruturas de um Estado Democrático de Direito.
Detalhe: sou favorável à ampliação da recuperação judicial, alcançando aziendas contábeis não-empresariais. Aliás, melhor seria abandonar as amarras do binômio empresarial/simples e dar o passo mais ousado: um Direito Negocial que alcance aziendas diversas: cooperativas, clubes de futebol (que são associações), fundações de saúde e educacionais e o que mais se quiser. Se bobear, igrejas, centros espíritas, terreiros de umbanda e candomblé, escolas de samba. Mas que o faça o legislador para que todos saibam o que está valendo.
Por fim, não me tomem por desses que acham que interpretar e aplicar é apenas ler a letra rasa da lei. Não sou desses. Apenas acho que a criatividade judiciária precisa ter limites institucionais a bem de um Estado Democrático de Direito. Só isso. Hoje, mais do que nunca, caminhamos por terrenos de dúvida e insegurança absolutas.
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