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Zeno Veloso e suas contribuições para o Direito brasileiro: Regime de bens
Flávio Tartuce
05/04/2021
No último dia 18 de março de 2021, infelizmente, o Brasil perdeu um dos seus maiores juristas, o professor Zeno Veloso. Além de todas as homenagens já prestadas em outros canais, não poderia deixar de analisar algumas de suas contribuições para o nosso Direito de Família e das Sucessões.
Zeno sempre esteve presente nas minhas colunas, a exemplo do que ocorreu no meu último texto publicado, de fevereiro, sobre a comunicação do FGTS no regime da comunhão parcial de bens, que dialoga com um artigo seu, publicado no jornal O Liberal, de Belém do Pará. A propósito, seus belos trabalhos ali veiculados sempre foram primorosos, de grande objetividade, técnica impecável e contando as suas encantadoras histórias. Aliás, como escrevi recentemente, era ele o “jurista que contava histórias”, como propriamente se definia, por onde passava.
Seguindo no tema do regime de bens, analisarei neste breve texto três de suas grandes contribuições, sem prejuízo de outros artigos que ainda escreverei, para firmar e relembrar o seu legado para o Direito Privado brasileiro, que nunca será esquecido.
O primeiro assunto é relativo à aplicação da súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual, “no regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”. Um dos debates que surgiram a respeito do enunciado jurisprudencial, logo nos anos iniciais do Código Civil de 2002, disse respeito à sua persistência ou não no nosso sistema, tendo o doutrinador firmado o entendimento, ao lado da doutrina majoritária, de sua contínua aplicação, como fundamento da vedação do enriquecimento sem causa de um dos consortes frente ao outro (VELOSO, Zeno. Direito hereditário do cônjuge e do companheiro. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 55).
Além dessa posição, o mestre Veloso, sem dúvidas, foi um dos professores e autores que melhor difundiram os debates relativos à prevalência ou não da súmula 377, como bem destacado pela Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça quando do julgamento dos Embargos no Recurso Especial n. 1.623.858/MG, que pacificou a necessidade de prova do esforço comum para sua incidência (Rel. Ministro LÁZARO GUIMARÃES – DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 5ª REGIÃO -, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 23/05/2018, DJe 30/05/2018).
Como segunda temática, em artigo escrito no ano de 2016, Zeno Veloso despertou outro debate sobre a Súmula 377 do STF, relacionado à possibilidade ou não do seu afastamento por pacto antenupcial celebrado por cônjuges que sofrem a imposição do regime da separação obrigatória, na hipótese descrita no art. 1.641, inc. II, do Código Civil, qual seja ao maior de setenta anos. Em memorável texto publicado no Jornal O Liberal, o mestre trouxe tal indagação relatando outra de suas “histórias”, com sua peculiar leveza de pena, sempre disposto a resolver os numerosos conflitos que lhe eram levados a consulta em sua atividade profissional e acadêmica:
“Há cerca de um ano João Carlos e Matilde estão namorando. Ele é divorciado, ela é viúva. João fez 71 anos de idade e Matilde tem 60 anos. Resolveram casar-se e procuraram um cartório de registro civil para promover o processo de habilitação. Queriam que o regime de bens do casamento fosse o da separação convencional, pelo qual cada cônjuge é proprietário dos bens que estão no seu nome, tantos dos que já tenha adquirido antes como dos que vier a adquirir, a qualquer título, na constância da sociedade conjugal, não havendo, assim sendo, comunicação de bens com o outro cônjuge. Mas o funcionário do cartório explicou que, dado o fato de João Carlos ter mais de 70 anos, o regime do casamento tinha de ser o obrigatório, da separação de bens, conforme o art. 1.641, inciso II, do Código Civil. (…). Mas João Carlos é investidor, atua no mercado imobiliário, adquire bens imóveis, frequentemente, para revendê-los. E Matilde é corretora, de vez em quando compra um bem com a mesma finalidade. Seria um desastre econômico, para ambos, que os bens que fossem adquiridos por cada um depois de seu casamento se comunicassem, isto é, fossem de ambos os cônjuges, por força da Súmula 377/STF. No final das contas, o regime da separação obrigatória, temperado pela referida Súmula, funciona, na prática, como o regime da comunhão parcial de bens. Foi, então, que me procuraram, pedindo meu parecer” (VELOSO, Zeno. Casal quer afastar a Súmula 377. Disponível aqui. Acesso em: 24 mar. 2021).
Após tal exposição, Zeno Veloso demonstra sua opinião, sustentando que seria, sim, possível o afastamento da aplicação da súmula, por não ser o seu conteúdo de ordem pública, mas sim de matéria afeita à disponibilidade de direitos. E lançou uma questão de consulta, que foi por mim respondida, ao lado de outros professores: “afinal, podem ou não os nubentes, atingidos pelo art. 1.641, inciso II, do Código Civil, afastar, por escritura pública, a incidência da súmula 377?”.
No meu caso, a consulta foi respondida na coluna do Migalhas, de maio de 2016, sob o título “Da possibilidade de afastamento da súmula 377 do STF por pacto antenupcial”. Respondi, portanto, positivamente à sua indagação, totalmente filiado ao entendimento do Mestre.
Citando Mário Luiz Delgado, pontuei, com base no art. 1.639 do Código Civil, que é lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver; havendo restrição de relevo a essa regra quanto às disposições absolutas de lei, consideradas regras cogentes ou de ordem pública, conforme consta do art. 1.655 da mesma codificação. Todavia, não há qualquer problema em afastar a súmula 377 pela vontade das partes, pois não existe em seu conteúdo regra cogente, mas dispositiva. Ademais, tal afastamento somente ampliaria os efeitos do regime da separação obrigatória, passando esse a ser uma verdadeira separação absoluta, em que nada se comunica, aspecto observado por José Fernando Simão.
Em suma, respondi ao mestre Zeno Veloso que sim, podem os nubentes, atingidos pelo art. 1.641, inciso II, do Código Civil, afastar, por escritura pública, a incidência da súmula 377. Sempre acreditei que tal afastamento constitui um correto exercício da autonomia privada, admitido pelo nosso Direito, que conduz a um eficaz mecanismo de planejamento familiar, perfeitamente exercitável por força de ato público, no caso de um pacto antenupcial. Exatamente no mesmo sentido, na VIII Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal em abril de 2018, aprovou-se o Enunciado n. 634, prevendo que “é lícito aos que se enquadrem no rol de pessoas sujeitas ao regime da separação obrigatória de bens (art. 1.641 do Código Civil) estipular, por pacto antenupcial ou contrato de convivência, o regime da separação de bens, a fim de assegurar os efeitos de tal regime e afastar a incidência da Súmula 377 do STF”. Tal enunciado doutrinário, surgido dois anos depois, sem dúvida alguma, foi incentivado pelo texto do doutrinador.
A propósito, também motivada por este debate inaugurado pelo Mestre Zeno, a Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça de Pernambuco acabou por editar provimento admitindo o afastamento da súmula 377 do STF por pacto antenupcial celebrado por cônjuges com idade superior a setenta anos (Provimento 08/2016). Vejamos os seus termos, que destacaram todas as posições doutrinárias ora expostas:
“CONSIDERANDO que é possível, por convenção dos nubentes e em escritura pública, o afastamento da aplicação da Súmula 377 do STF, ‘por não ser o seu conteúdo de ordem pública, mas, sim, de matéria afeita à disponibilidade de direitos’ (ZENO VELOSO); CONSIDERANDO que, enquanto a imposição do regime de separação obrigatória de bens, para os nubentes maiores de setenta anos, é norma de ordem pública (artigo 1.641, II, do Código Civil), não podendo ser afastada por pacto antenupcial que contravenha a disposição de lei (artigo 1.655 do Código Civil); poderão eles, todavia, por convenção, ampliar os efeitos do referido regime de separação obrigatória, ‘passando esse a ser uma verdadeira separação absoluta, onde nada se comunica’ (JOSÉ FERNANDO SIMÃO); CONSIDERANDO que podem os nubentes, atingidos pelo artigo 1.641, inciso II, do Código Civil, afastar por escritura pública a incidência da Súmula 377 do STF, estipulando nesse ponto e na forma do que dispõe o artigo 1.639, caput, do Código Civil, quanto aos seus bens futuros o que melhor lhes aprouver (MÁRIO LUIZ DELGADO); CONSIDERANDO que o afastamento da Súmula 377 do STF, ‘constitui um correto exercício de autonomia privada, admitido pelo nosso Direito, que conduz a um eficaz mecanismo de planejamento familiar, perfeitamente exercitável por força de ato público, no caso de um pacto antenupcial (artigo 1.653 do Código Civil)’; conforme a melhor doutrina pontificada por FLÁVIO TARTUCE)”.
Como conteúdo do provimento, passou-se a estabelecer que, “no regime de separação legal ou obrigatória de bens, na hipótese do artigo 1.641, inciso II, do Código Civil, deverá o oficial do registro civil cientificar os nubentes da possibilidade de afastamento da incidência da súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, por meio de pacto antenupcial. Parágrafo único. O oficial do registro esclarecerá sobre os exatos limites dos efeitos do regime de separação obrigatória de bens, onde comunicam-se os bens adquiridos onerosamente na constância do casamento”.
Sucessivamente, no mês de dezembro de 2017 e igualmente influenciada pela discussão iniciada por Zeno Veloso, surgiu decisão da Corregedoria-Geral de Justiça do Tribunal Paulista com o mesmo entendimento, assim ementada: “nas hipóteses em que se impõe o regime de separação obrigatória de bens (art. 1.641 do CC), é dado aos nubentes, por pacto antenupcial, prever a incomunicabilidade absoluta dos aquestos, afastando a incidência da súmula 377 do Excelso Pretório, desde que mantidas todas as demais regras do regime de separação obrigatória. Situação que não se confunde com a pactuação para alteração do regime de separação obrigatória, para o de separação convencional de bens, que se mostra inadmissível”. Sua contribuição, portanto, é inegável, merecendo relevo a sua constante vontade de debater os assuntos com outros colegas civilistas, especialmente os mais jovens, que sempre incentivou, até os seus últimos momentos.
Como último tema que gostaria de destacar, Zeno Veloso foi um dos primeiros a defender, antes mesmo da vigência do Código Civil de 2002, a possibilidade de estipulação de um regime de bens além do rol previsto na Lei Geral Privada. Vejamos as suas palavras, em destaque:
“A convenção pré-matrimonial é um negócio jurídico. Um negócio jurídico integrante do direito patrimonial de família. Pela convenção ou contrato antenupcial, os nubentes formalizam a sua escolha e determinam qual o regime de bens que vai vigorar depois da celebração de seu casamento. O Código edita preceitos sobre quatro regimes: o da comunhão universal, o da comunhão parcial, o da separação absoluta e o dotal (arts. 262 a 311). A liberdade dos nubentes não se limita à eleição de um desses regimes. Os interessados não estão obrigados a seguir os modelos legais, os regimes-tipos regulados no Código Civil, podendo ir além, modificando-os, combinando-os, e, até, estabelecendo um regime peculiar, um regramento atípico, imaginado e criado por eles próprios. Na França, na Bélgica e em Portugal, por exemplo, a situação é semelhante à nossa, havendo ampla liberdade para a escolha do regime de bens, inclusive com a possibilidade de introdução de modificações nos tipos previstos pelo legislador. Na Alemanha, na Itália e na Suíça, ao contrário, vigora o princípio da tipicidade e os nubentes só podem eleger um dos regimes estabelecidos na lei” (VELOSO, Zeno. Regimes matrimoniais de bens. Disponível aqui. Acesso em: 24 mar. 2021).
Posteriormente, já na vigência do Código Civil de 2002, quando da realização da IV Jornada de Direito Civil, em 2006, aprovou-se o Enunciado n. 331 prevendo que “o estatuto patrimonial do casal pode ser definido por escolha de regime de bens distinto daqueles tipificados no Código Civil (art. 1.639 e parágrafo único do art. 1.640), e, para efeito de fiel observância do disposto no art. 1.528 do Código Civil, cumpre certificação a respeito, nos autos do processo de habilitação matrimonial”. Tal posição, na minha interpretação, passou a ser majoritária na doutrina brasileira. A título de exemplo, sempre defendi a possibilidade de o casal estabelecer que, quanto aos bens móveis, incide o regime da separação convencional e absoluta de bens; em relação aos imóveis adquiridos, o regime da comunhão parcial.
Como se percebe deste texto, Zeno Veloso deixou marcas indeléveis e permanentes a respeito do tema do regime de bens para o Direito Privado brasileiro, sempre dialogando com seus colegas doutrinadores e com a jurisprudência nacional, modificando entendimentos.
Como tenho dito, foi ele um grande jurista, de precisão teórica impressionante, que explicava conceitos completos com simples frases ou por meio das histórias que contava. Perdemos o nosso “contador de histórias”, mas os seus escritos ficarão para a posteridade. O seu legado persiste e nós, seus amigos e eternos alunos, seguiremos a sua missão de levar adiante a boa Justiça, que tanto defendia.
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