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O princípio da irredutibilidade e o novo critério de cálculo da aposentadoria por incapacidade permanente (invalidez)
Carlos Alberto Pereira de Castro
10/03/2021
Intróito – a Previdência e a (re)distribuição de renda como mecanismo de redução de desigualdades
A Constituição Federal assegura, desde o seu texto original de 5 de outubro de 1988, a irredutibilidade do valor dos benefícios (art. 194, parágrafo único, IV). Define, ainda, o reajustamento dos benefícios para preservar-lhes, em caráter permanente, o valor real, conforme critérios definidos em lei (art. 201, § 4º).
A irredutibilidade e a preservação do valor real dos benefícios (leia-se, de seu poder aquisitivo) são, sem dúvida, garantias constitucionais de caráter permanente, cabendo ao legislador infraconstitucional estabelecer os parâmetros para cumprimento do comando maior, de maneira que os proventos dos beneficiários reflitam o poder aquisitivo original da data do início dos seus benefícios.
Entre as fundadas razões da existência e manutenção da Previdência Social reside o fato de não existir igualdade entre os indivíduos no plano material, mas somente no plano jurídico-legal, de acordo com o princípio de que “todos são iguais perante a lei”.
Assim, cabe à Previdência Social também a incumbência da redução das desigualdades sociais e econômicas, mediante uma política de redistribuição de renda, retirando maiores contribuições das camadas mais favorecidas e, com isso, concedendo benefícios a populações de mais baixa renda – e não o oposto.
Por esta razão, defende-se que a Previdência Social deva ser universal, ou seja, abranger, num só regime, toda a população economicamente ativa, exigindo-se de todos contribuições na mesma proporção e, em contrapartida, pagando-se benefícios e prestando-se serviços de igual magnitude, de acordo com a necessidade de cada um – conforme a noção de seletividade das prestações previdenciárias. Tem-se aí uma das finalidades da Previdência, qual seja, o alcance da justiça social (CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. 24. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 18) .
Na obra de Del Vecchio se encontra a afirmação de que
A justiça exige igualmente que todos os meios de que o Estado pode legitimamente dispor sejam por este devolvidos, mais do que a qualquer outro escopo, à tutela da vida e da integridade física e moral de seus componentes, e principalmente daqueles que não dispõem de meios para os obter ou de outras pessoas a isso particularmente obrigadas (justiça providencial ou assistencial, também denominada social). (DEL VECCHIO, Giorgio. A Justiça. Trad. Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo: Saraiva, 1960, p. 109).
Para este fim, como se proclama em texto de Norberto Bobbio, resulta imperativo que o próprio Estado faça discriminações, no sentido de privilegiar os menos favorecidos, com o que, “desse modo, uma desigualdade torna-se um instrumento de igualdade pelo simples motivo de que corrige uma desigualdade anterior: a nova igualdade é o resultado da equiparação de duas desigualdades” (BOBBIO, Norberto. Igualdade e Liberdade. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996, p. 32).
Sob estas premissas trazemos ao leitor o tema deste estudo.
A aposentadoria por incapacidade permanente no RGPS e seu novo critério de cálculo
Desde a promulgação da Lei 9.876/99 até o advento da EC n. 103/2019, a então denominada aposentadoria por invalidez, inclusive quando decorrente de acidente do trabalho, consistiu numa renda mensal correspondente a 100% do salário de benefício, apurado com base na média aritmética simples dos maiores salários de contribuição correspondentes a 80% do período contributivo decorrido desde a competência julho de 1994 até a data de início do benefício.
No Regulamento da Previdência Social (Decreto 3.048/99), havia a previsão, no art. 36, § 7º, de um critério específico para as situações de conversão do então auxílio-doença (acidentário ou não) em aposentadoria por invalidez:
§ 7º A renda mensal inicial da aposentadoria por invalidez concedida por transformação de auxílio-doença será de cem por cento do salário-de-benefício que serviu de base para o cálculo da renda mensal inicial do auxílio doença, reajustado pelos mesmos índices de correção dos benefícios em geral.
A matéria havia sido sumulada pelo STJ em sua Súmula n. 557: “A renda mensal inicial (RMI) alusiva ao benefício de aposentadoria por invalidez precedido de auxílio-doença será apurada na forma do art. 36, § 7º, do Decreto n. 3.048/1999, observando-se, porém, os critérios previstos no art. 29, § 5º, da Lei n. 8.213/1991, quando intercalados períodos de afastamento e de atividade laboral”.
E o Plenário do STF julgando a matéria com Repercussão Geral no RE n. 583834/SC, Rel. Min. Ayres Britto, DJe 14.02.2012, validou a regra de cálculo utilizada pelo INSS, fixando a seguinte tese: “Em razão do caráter contributivo do regime geral de previdência (CF/1988, art. 201, caput), o art. 29, § 5º, da Lei nº 8.213/1991 não se aplica à transformação de auxílio-doença em aposentadoria por invalidez, mas apenas a aposentadorias por invalidez precedidas de períodos de auxílio-doença intercalados com intervalos de atividade, sendo válido o art. 36, § 7º, do Decreto nº 3.048/1999, mesmo após a Lei nº 9.876/1999” (Tema 88).
Com isso, o segurado que inicialmente havia recebido benefício por incapacidade temporária, de origem acidentária ou não, e que tivesse seu estado de saúde agravado a tal ponto que insuscetível de cura ou reabilitação para retornar ao trabalho, tinha preservado o direito ao benefício em valor não inferior ao que já vinha recebendo a título de auxílio-doença. Tratava-se de regra que sempre identificamos como direcionada aos objetivos da Seguridade Social, notadamente a seletividade, na medida em que o trabalhador incapacitado permanentemente é presumidamente dependente do recebimento do benefício, por não poder auferir outra fonte de renda pelo seu trabalho.
No entanto, a EC n. 103/2019 estabeleceu (em seu art. 26) novos coeficientes de cálculo. Vejamos:
(1) aposentadoria por incapacidade permanente não acidentária: corresponderá a 60% do salário de benefício, com acréscimo de dois pontos percentuais para cada ano de contribuição que exceder o tempo de 20 anos de contribuição, no caso dos homens, e dos 15 anos, no caso das mulheres. Por exemplo:
– segurado homem: 20 anos de tempo de contribuição = 60% do salário de benefício; 30 anos de tempo de contribuição = 80% do salário de benefício; 40 anos de tempo de contribuição = 100% do salário de benefício;
– segurada mulher: 15 anos de tempo de contribuição = 60% do salário de benefício; 30 anos de tempo de contribuição = 90% do salário de benefício; 35 anos de tempo de contribuição = 100% do salário de benefício.
(2) aposentadoria por incapacidade permanente quando decorrer de acidente de trabalho, de doença profissional e de doença do trabalho: corresponderá a 100% do salário de benefício que leva em consideração todos os salários de contribuição (desde julho de 1994, ou desde o início da contribuição, se posterior àquela competência).
Não é difícil notar que essa mudança no cálculo representa uma perda significativa de renda do segurado que se tornar incapaz de forma permanente para o trabalho, salvo na hipótese de a incapacidade ter resultado de acidente do trabalho, em situações assemelhadas ao acidente-típico, em casos de doença profissional e de doença do trabalho.
Isso porque o auxílio por incapacidade temporária (nova nomenclatura do auxílio-doença) continua tendo como renda mensal inicial o equivalente a 91% do salário de benefício (agora, calculada a média sobre todos os salários de contribuição de julho de 1994 em diante), como está indicado no artigo 72 do Regulamento, com a redação conferida pelo Decreto 10.410, de 30 de junho de 2020).
O mesmo Decreto 10.410/2020 tratou de revogar, expressamente, a disposição antes contida no § 7º do art. 36 do Regulamento, anteriormente transcrita, impossibilitando em tese sua invocação em situações ocorridas após 30 de junho de 2020, já que, como preconiza a jurisprudência do STF, não há direito adquirido a regime jurídico. E a Súmula 557 do STJ tende a ser revista, senão até cancelada.
Exemplificando, um segurado homem com menos de 20 anos de contribuição, que vinha recebendo auxílio-doença, na base de 91% da média de seus maiores salários de contribuição equivalentes a 80% do período contributivo (por ter sido o benefício concedido antes da EC 103), caso tenha direito à aposentadoria por incapacidade permanente sem origem em acidente do trabalho ou doença ocupacional (antiga invalidez) reconhecido apenas após 30/06/2020 (data da publicação do Decreto 10.410) terá seu benefício reduzido para 60% da média de todos os salários de contribuição. O mesmo exemplo se aplica a uma segurada do sexo feminino com menos de 15 anos de contribuição.
Em suma, o critério de cálculo da renda mensal inicial para a incapacidade permanente não acidentária se tornou idêntico ao da aposentadoria programada, ou voluntária, em que o segurado homem terá de concluir 40 anos de contribuição e a segurada mulher 35 anos de contribuição para obter 100% da média.
Questões de direito intertemporal
A nosso ver, o critério de cálculo em comento somente pode ser aplicado a aposentadorias por incapacidade permanente não acidentárias de 1/7/2020 em diante, pois até então vigorava o § 7º do artigo 36 do Regulamento da Previdência Social, que impunha a conversão do benefício “B 31” para aposentadoria por invalidez “B 32” com a alteração do percentual de 91% para 100% do salário de benefício, tão-somente.
Da mesma forma, quando a causa da incapacidade (ou concausa) for a atividade laborativa, o benefício de aposentadoria deve ser o “B 92”, e a renda mensal inicial será de 100% da média (ainda que ocorra o cálculo sobre todos os salários de contribuição, a queda pode não ocorrer).
O problema se concentra, portanto, nas situações de concessão da aposentadoria por incapacidade permanente após 1º de julho de 2020 quando a causa não possa ser considerada a atividade laborativa (benefício não-acidentário – B 32).
Nestas, há primeiro que chamar a atenção do leitor para o fato de que algumas situações de incapacidade permanente podem ser antecedentes à alteração das normas de cálculo em comento, atraindo a aplicação da máxima “tempus regit actum”, ou seja, a aplicação das regras anteriores, pois o direito ao benefício se deu ainda à época da vigência destas.
Tal entendimento se justifica porque “a simples implementação de todas as condições para aquisição do direito, ainda que sem o exercício do direito por seu titular ou com posterior perda da qualidade de segurado, passa a conformar-se com a concepção do direito adquirido” (TELES, Graciele Pinheiro. O princípio da irredutibilidade do valor dos benefícios no regime geral de Previdência Social. Dissertação de Mestrado. São Paulo: PUC/SP. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp062851.pdf. Acesso em 9 mar. 2021).
Portanto, nos casos em que o segurado já possuía documentação médica (prontuário, exames) que indicam a invalidez anteriormente à reforma podem haver supedâneo para o requerimento de revisão do benefício ou recurso à JRPS (e ingresso na via judicial) sob a invocação de direito adquirido, na medida em que o INSS deveria ter concedido o benefício mais vantajoso a que o segurado fazia jus quando da perícia – artigo 176-E do Regulamento, incluído pelo Decreto 10.410/2020 – hipótese em que, havendo direito a concessão de benefício diverso do requerido, caberá ao INSS notificar o segurado para que este manifeste expressamente a sua opção pelo benefício (parágrafo único do art. 176-E).
É importante lembrar ao leitor, ainda, que na forma do art. 76 do Regulamento, a Previdência Social deve processar, de ofício, o benefício quando tiver ciência da incapacidade do segurado sem que este o tenha requerido.
Crítica ao modelo: a violação ao princípio da irredutibilidade como argumento central
Restam sem alternativa, dentre as antes elencadas, os segurados cujo direito ao benefício de aposentadoria por incapacidade permanente tenha os requisitos preenchidos somente após 1º de julho de 2020. Disso vamos nos ocupar doravante.
Este tema, como o caro leitor já pode antever, deverá acarretar grandes controvérsias porque, em caso de incapacidade permanente não acidentária, o valor do benefício de aposentadoria pode, e bem possivelmente será, calculado em valor menor que o benefício que o antecedeu, situação que permite a arguição de que há violação da Constituição quanto à determinação contida no art. 194, parágrafo único, inciso IV, de irredutibilidade do valor do benefício, pois não há sentido receber um valor de benefício menor (incapacidade permanente) por uma situação menos grave (que a de uma incapacidade temporária).
Trata-se de tema a ser questionado na via judicial, pois houve discrímen nada razoável na fixação de critérios distintos para o cálculo desse benefício.
Nossa compreensão é de que, no caso da aposentadoria por incapacidade permanente precedida de auxílio por incapacidade temporária e sem o retorno do segurado ao trabalho, a renda do segurado deve ser preservada, com fundamento no princípio da irredutibilidade do valor do benefício. Explica-se.
Como bem observado por Graciele Teles, o princípio da irredutibilidade visa evitar “as reduções às prestações pecuniárias impostas por diversos fatores à expressão quantitativa (valor nominal) e qualitativa (valor real) das mesmas” (TELES, op. cit., p. 79).
Consoante Fábio Berbel, tal princípio é fundado na necessidade de segurança jurídica das consolidações de direito (direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada), por ser “axioma que prega a impossibilidade de reduzir o valor da prestação concedida, posto ser essa o valor mínimo à manutenção digna do contingenciado” (BERBEL, Fábio Lopes Vilela. Teoria Geral da Previdência Social. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 38).
Não é demais frisar, ademais, que “a fixação da renda mensal inicial conta [ou deveria contar] com a repercussão dos ganhos habituais incorporados ao salário do empregado, uma vez que, nos termos do art. 201, § 11 da Constituição Federal, estes ganhos também compõem o salário para efeito da contribuição previdenciária” (TELES, op. cit., p. 103).
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal assentou de há muito que não se tem como defender direito adquirido à forma de cálculo de remuneração, porém desde que seja resguardada a irredutibilidade (v.g., AI 821.296/DF, Relatora Ministra Cármen Lúcia, julg. 15/11/2010).
Defendemos que o mesmo raciocínio possa ser aplicado aos benefícios previdenciários.
Não se pode dizer que a aposentadoria por incapacidade permanente seja um benefício totalmente distinto do benefício por incapacidade temporária. Em verdade, o evento gerador é o mesmo – um acidente ou doença incapacitante – sendo certo que a diferença consiste apenas no grau de gravidade do problema de saúde, se permite ou não o reingresso no mercado de trabalho pelo segurado que está afastado.
Pois bem, embora não se possa defender a manutenção do “regime jurídico” antecedente, não há sentido lógico, dentro de um sistema de proteção previdenciária, que o benefício concedido a uma pessoa incapaz permanentemente (beneficiária de uma antes denominada “aposentadoria por invalidez”) seja, quanto ao critério de cálculo, menor que o de uma pessoa incapaz temporariamente (beneficiária da espécie equivalente ao auxílio-doença). Isso sem contar com a presunção, já citada, de que alguém em situação de invalidez, insuscetível de reabilitação, depende do benefício da aposentadoria para se manter para o resto da vida. Coloca-se em risco a subsistência do indivíduo segurado e de seus dependentes.
Deveria, no mínimo, haver a preservação da renda mensal inicial do auxílio-doença, a fim de que não houvesse tamanha perda do poder aquisitivo da pessoa que tem seu benefício temporário convertido em permanente por incapacidade total.
Ademais, não guarda sentido com um sistema que se alicerça no caráter contributivo e no equilíbrio financeiro e atuarial conceder a pessoas com 15 ou 20 anos de contribuição, a título de renda mensal da aposentadoria involuntária (afinal, invalidez não se confunde com aposentadoria programada), o mesmo irrisório percentual de 60% da média contributiva que é aplicado a alguém que fique inválido com apenas um ou dois anos de contribuição; efetivamente, nota-se um contrassenso com o que se espera de um regime previdenciário, no qual a contrapartida (benefícios) deve ser ao menos relativamente proporcional à quantidade de anos de contribuição.
Concordamos, pois, que
“O direito a previdência social é direito fundamental social e, por conseguinte, não pode ter a sua configuração constitucional descaracterizada pelo legislador ordinário, mediante fixação de índices insuficientes para a manutenção da relação de proporcionalidade entre contribuição e prestação pecuniária” (TELES, op. cit., p. 123).
Com isso, a nosso ver, é evidente a inconstitucionalidade da regra de cálculo da aposentadoria por incapacidade permanente não acidentária contida no artigo 26 da Emenda 103/2019, bem como, por arrastamento, a “regulamentação” da matéria pelo Decreto 10.410/2020, por estar em franca colisão com o disposto no artigo 194, parágrafo único, inciso IV, da Constituição de 1988.
Considerações finais
O tema dos benefícios por incapacidade, especialmente nesse período tormentoso de pleno aumento dos casos de covid-19 e outros males de extrema gravidade, estará em evidência no campo das prestações previdenciárias, e os que militam no Direito Previdenciário devem estar atentos para as injustiças que certamente advirão de sua aplicação.
Esperamos assim ter trazido ao leitor algumas luzes sobre tão tormentoso tema. Certamente os Tribunais pátrios terão que apreciar demandas em grande número acerca das graves injustiças sociais causadas, também nesta temática, pela reforma levada a efeito pela EC 103 e sua regulamentação.
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