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O contrato de geração de filhos e os novos paradigmas da família contemporânea

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Rodrigo da Cunha Pereira

Rodrigo da Cunha Pereira

15/12/2020

No último dia 21, fez um ano a morte do apresentador de TV Gugu Liberato, e o caso continua despertando interesse, curiosidade e polêmica. Há pessoas que “emprestam” sua vida privada, ainda que às custas de revelar intimidades, para suscitar questões de interesse público. O caso trouxe à tona novos paradigmas para o conceito de família, e obviamente os seus aspectos patrimoniais. Deixando de lado a intimidade, inclusive sexual, das partes envolvidas, pois isso só a eles diz respeito, a discussão interessa a todos, principalmente ao mundo jurídico, pois revela que família pode estar muito além das definições jurídicas.

O Direito já absorveu que família é da ordem da cultura, e não da natureza. Por isso suas representações sociais hoje podem sofrer variações inimagináveis. Quem imaginaria há 40 anos que a união estável (então denominada de concubinato) entraria no rol das famílias “legítimas”. Até dez anos atrás o mundo jurídico não admitia que pessoas do mesmo sexo poderiam constituir uma família? Da mesma forma ganharam legitimidade, com a CR/1988, as famílias monoparentais. São apenas exemplos de que novas estruturas parentais e conjugais estão em curso, por mais que gostemos ou não, queiramos ou não. E é por isso que a mais importante fonte do Direito são os costumes. A vida vai acontecendo, o desejo vai tecendo novas tramas, em busca da felicidade, e o Direito deve ir se moldando a esta realidade.

Para se entender o Direito da Famílias hoje é preciso vê-lo sob duas perspectivas: família parental e família conjugal, que estão cada vez mais independentes uma da outra. Basta lembrar que há pessoas que querem casar e não ter filhos, e outras que querem ter filhos e não querem casar, e nem mesmo ter relação sexual. Uma pode existir sem a outra, ou estarem juntas.

A evolução do conceito de família parental é mais simples, pois aí, na maioria das vezes, não tem um conteúdo moral. Por exemplo, ninguém dúvida que as famílias anaparentais (irmãos que vivem juntos sem descendentes/ascendentes) é uma realidade constitucional, embora não esteja prevista expressamente. Por outro lado, as vozes contrárias ao reconhecimento da família conjugal homoafetiva era de que ela não estava prevista na Constituição, esquecendo-se de que o rol do artigo 226/CR não é números clausus. Se o fosse, não poderíamos reconhecer como famílias aquelas que se constituem pela adoção, as anaparentais, as ectogenéticas etc. Desde 1988 não há mais filhos e famílias ilegítimas. Todos são legítimos e legítimas. E foi assim que fomos construindo o conceito de famílias socioafetivas, multiparentais e coparentais.

Famílias coparentais são aquelas cujos pais se encontram apenas para ter filhos, de forma planejada, para criá-los em sistema de cooperação mútua, sem relacionamento conjugal ou mesmo sexual entre eles (Cf. “Dicionário de Direitos de Família e Sucessões — Ilustrado”, Ed. Saraiva, P. 213, de minha autoria). Isso já é uma realidade brasileira. Pessoas fazem contratos de geração de filhos e, portanto, formam apenas uma família parental. O número desses contratos no Brasil tem aumentado, proporcionado pelos sites de relacionamento. Na coparentalidade pressupõe-se uma boa relação entre o pai e a mãe, que pode evoluir para uma grande amizade, em prol da criação dos filhos comuns.

As famílias conjugais, isto é, aquelas constituídas pelo casamento e união estável, têm uma evolução mais lenta, pois o seu núcleo central tem um conteúdo moral, na maioria das vezes contaminada por uma moral sexual e religiosa. O STF deve julgar ainda neste ano dois processos (RExs 883168/SC e 1045273/SE) em que se decidirá se se deve atribuir direitos à família que se constituiu simultaneamente à outra. Em outras palavras, ele irá julgar se se pode dizer se essas famílias existem ou deverão continuar na invisibilidade jurídica.

Para saber se duas pessoas formam uma família conjugal é preciso verificar se ali há conjugalidade, que é um núcleo de vivência afetivo-sexual com uma certa durabilidade na vida cotidiana (cf. Dicionário, P. 202). Não é necessário viverem sob o mesmo teto, embora viver sob o mesmo teto seja um elemento a mais na caracterização de uma união estável, assim como a relação de dependência econômica. Mas há casais que formam uma família e mantêm suas economias separadas e não há relação de dependência financeira entre eles. Em geral, nessas relações de namoro, ou mesmo “amizades coloridas”, há um limiar muito tênue em que se tem características de uma e de outra relação.

O ponto-chave e definidor da conjugalidade está na relação com a sexualidade. Freud resignificou a sexualidade para que ela fosse entendida na ordem do desejo. Assim, pode haver sexualidade sem o ato sexual. E nem toda relação sexual permanente constitui conjugalidade. Há família conjugal que já não pratica mais o ato sexual, seja por impotência, frigidez ou mesmo por não gostarem mais de sexo, ou por serem assexuais, e nem por isso deixa de ser uma família conjugal. Mesmo assim a sexualidade pode estar presente ali naquele casal, que pode ter uma relação aberta, ter ciúmes ou não. A sexualidade pode ser entendida como a energia libidinal circulante entre o casal, mesmo que “não façam sexo”.

A discussão jurídica, que se transformará em longos e desgastantes processos judiciais, no caso do apresentador de TV, cinge-se em compreender se aquele núcleo familiar foi estabelecido para além de uma família parental, ou seja, se havia ali também uma família conjugal. E isso mudaria toda a relação patrimonial. Somente os detalhes do caso poderão ajudar nesta definição. Mas isso só interessa à intimidade daquele núcleo familiar. Entretanto, à “ciência” jurídica interessa saber que a definição da família contemporânea passa necessariamente, para sua compreensão mais profunda, pela perspectiva e distinção da família conjugal e família parental. Elas podem estar juntas ou não.

FONTE: CONJUR

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