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Art. 316, parágrafo único, CPP e sua “devida compreensão”
Douglas Fischer
01/12/2020
No cenário jurídico nacional, todos talvez tenham voltado pelo menos os ouvidos à discussão travada no STF nos dias 14 e 15 de outubro passado acerca do art. 316, parágrafo único, CPP, cuja redação é a seguinte:
Art. 316. O juiz poderá, de ofício ou a pedido das partes, revogar a prisão preventiva se, no correr do processo, verificar a falta de motivo para que subsista, bem como de novo decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem. (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)
Parágrafo único. Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
Toda discussão se deu por conta de uma decisão monocrática de ministro do STF que entendeu aplicável essa regra como verdadeiro prazo matemático, libertando da prisão determinada pessoa envolvida em casos gravíssimos, malgrado duas condenações penais com confirmações em segundo grau. Não trataremos do caso concreto, não é nossa intenção.
Diante da decisão da Corte Suprema, não foram poucas as vozes que bradaram – quando não ironicamente – que o STF estaria “legislando“ no caso e que tudo era fruto de um “punitivismo“ existente em terras brasileiras.
Assim não vemos.
É preciso mais argumentação dialética e menos histerias (perdão da ênfase). Aliás, esse discurso vazio (desculpem novamente a incisividade) é bastante recorrente quando vemos que as interpretações que alguns gostariam que fossem dadas não são acolhidas.
Destacamos que, nesse caso, o STF deu a interpretação que já tínhamos deixado expresso nos nossos Comentários ao CPP e sua Jurisprudência (12ª ed, 2020), embora de maneira não tão detalhada como faremos agora, pois jamais imaginávamos que a situação pudesse chegar onde (e como) chegou.
Então vamos explicar algumas coisas de forma detalhada, notadamente para quem “queira pensar” e não tenha “pré-julgamentos“ para debates, bem assim não esteja previamente “contaminado“ com ideias jurídicas influenciadas por “pré-concepções“, quando não ideológicas.
Com efeito, e na linha do que sempre defendemos, “a prisão preventiva, como deve ocorrer com toda medida acautelatória, há que se submeter à cláusula rebus sic stantibus,tão cara ao direito privado, na perspectiva da teoria da imprevisão. A decisão judicial deve se manter no tempo apenas quando presentes as mesmas condições que a determinaram. Havendo modificação daquelas (condições), deve-se reapreciar a necessidade da medida“ (Comentários ao CPP, 2020, item 316).
Na obra retromencionada, explicamos a possibilidade (em nossa compreensão) de o juiz ainda poder determinar algumas medidas cautelares pessoais ainda que sem prévia representação ou requerimento do Ministério Público. Deixemos claro aqui: cremos que o juiz não pode decretar mais as medidas (notadamente a prisão preventiva) de forma autônoma. Mas no caso de conversão de flagrante, a lei ainda lhe garante essa possibilidade (sim, sabemos de decisão da 2ª Turma do STF em sentido contrário, o tema ainda está longe de ser pacificado, mas não trataremos disso aqui, senão apenas deixamos registrado).
Dissemos ainda nos nossos Comentários ao CPP juntamente com Eugênio Pacelli que, “se antes havia obrigação de o juiz fundamentar a manutenção da prisão cautelar quando da prolação da sentença condenatória (art. 387, § 1º, CPP) e também quando da decisão de pronúncia (art. 413, § 3º, CPP), agora se criou mais uma hipótese de reavaliação dos pressupostos da preventiva: conforme o parágrafo único do art. 316 do CPP, uma vez ordenada a prisão preventiva, o próprio órgão emissor da prisão deverá, a cada 90 dias, avaliar, fundamentadamente, se é necessária a manutenção da prisão, sob pena de ela se tornar ilegal. Compreendemos que essa fundamentação não precisa ser exaustiva e detalhada com base em novos fatos, mas é essencial serem declinados, pelo menos, os fundamentos que justifiquem a continuidade da medida cautelar imposta“.
Inclusive em precedente publicado 16.10.2020, o STJ reafirmou exatamente essas premissas que já declinamos desde a edição da novel legislação:
“O princípio da provisoriedade, regente das medidas cautelares, preleciona que a prisão preventiva decretada fundamentadamente será revogada ou substituída por medidas menos gravosas se o motivo que a ensejou ou a necessidade que a legitimou perecerem. Por essa razão, o art. 316, parágrafo único, do Código de Processo Penal positiva a necessidade de reavaliação motivada da custódia ante tempus do acusado a cada 90 dias. Antes mesmo das alterações trazidas pela Lei n. 13.964/2019, o Código de Processo Penal já previa, em seus arts. 387, § 1º, e 413, § 3º, o reexame da necessidade da prisão cautelar do acusado na prolação da sentença ou, nos casos de crime doloso contra a vida, da decisão de pronúncia” (Recurso em Habeas Corpus nº 129.484/DF, STJ, 6ª Turma, unânime, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 6.10.2020, publicado no DJ em 16.10.2020).
Prossigamos, agora com mais acréscimos para tentar explicar o que, para nós, era (quase) intuitivo.
Essa regra do parágrafo único não estava originariamente no PL 882/2019, que foi a base e originou a Lei nº 13.964/2019. Ele foi inserido por emenda parlamentar, não havendo maiores justificativas expressas do legislador acerca das razões de sua inclusão (lembrei de certo modo frase atribuída por alguns a Otto von Bismarck-Schönhausen, embora a tese de que a criação seria de John Godfrey Saxe. Mas não entraremos nessa diatribe).
No anteprojeto do Novo Código de Processo Penal (PLS 156), do qual inclusive Eugênio Pacelli foi o relator, havia detalhamentos sobre prazos para duração das prisões preventivas, escalonados para os vários graus de jurisdição (vide arts. 558 e seguintes). Disso não trataremos aqui, mas apenas realçamos que, ao contrário do que lá previsto, a regra em comento trata exclusivamente de uma obrigação existente para o juiz que decretar a medida, normalmente o juiz de primeiro grau. Não há aquele escalonamento de prazos para os diversos graus de jurisdição.
Diante dessa premissa, enfatizamos que, uma vez exaurida a prestação jurisdicional pelo juiz de primeiro grau, descabe falar em “novas revisões” subsequentes. Aliás, é intuitivo que assim seja, pois não teria sentido algum exigir do juiz que exauriu sua jurisdição continuar “revendo” a necessidade da prisão (a seguir melhor explicaremos).
Com efeito, até a entrada em vigor desse dispositivo, já existia a obrigatoriedade de o juiz, acaso proferir sentença condenatória e o réu esteja sob efeito de alguma medida cautelar (ainda mais a prisão preventiva, a mais gravosa de todas), deveria ele, novamente, fundamentar a necessidade da continuidade dessa medida.
É o que consta expressamente do § 1º do art. 387 do CPP (conforme a redação da Lei nº 12.736/2012): “ O juiz decidirá, fundamentadamente, sobre a manutenção ou, se for o caso, a imposição de prisão preventiva ou de outra medida cautelar, sem prejuízo do conhecimento de apelação que vier a ser interposta”.
Importante vez que, à luz das regras originárias do Código de Processo Penal (1941), somente se podia decretar a prisão preventiva até o final da instrução criminal. Vamos frisar: até o final dainstruçãocriminal.
E por que isso?
É que o CPP partia (no passado de sua edição) de uma lógica bastante inversa da necessária interpretação conforme à Constituição que se faz em tempos atuais: na época, a superveniência de condenação já implicava automaticamente o recolhimento à prisão (para cumprimento de pena), situação essa que somente foi parcialmente modificada em 1973, com a alteração produzida no já revogado art. 594, CPP (pela Lei nº 11.719/08), de modo a permitir o recurso em liberdade para os primários e de bons antecedentes.
Em tempos atuais, temos novas perspectivas. E ainda bem que as temos, pois nunca defendemos (ou defenderemos) violação do devido processo legal em desfavor de réus processados. O que não conseguimos ver é que existam regras procedimentais para a proteção exclusiva de investigados/processados, como pretendem alguns.
Assim, há se realçar que, por ocasião da sentença condenatória (se for absolutória, não há como impor prisão alguma!), deve o juiz fundamentar a necessidade de manutenção de eventual prisão já realizada (previsão bem antes da própria Lei nº 13.964/2020). Poderá ele, do mesmo modo, julgando presentes razões para a prisão preventiva (art. 312, CPP), decretá-la, fundamentadamente, mas não mais de forma autônoma (que fique claro).
Esse comando ao juiz na prolação da sentença é para compatibilizá-lo com o disposto no art. 5º, LXI, no sentido de que “ninguém será preso e nem mantido preso senão por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente”, ressalvadas as hipóteses de flagrante delito e de crimes ou transgressões militares previstas em lei.
Noutras palavras, e ao que interessa aqui, para a manutençãoda prisão entendeu o legislador que o juiz deveria novamente fundamentar, na sentença, a necessidade das medidas impostas. Essa fundamentação não necessita ser exauriente (tal como para a decretação anterior), mas há se exigir, de todo modo, a explicitação quanto à permanência, no tempo, das circunstâncias fáticas e jurídicas que autorizem a continuidade da medida cautelar imposta até então.
Feita essa contextualização fundamental, podemos ver que, malgrado inexistentes maiores explicações do legislador, a finalidade do dispositivo inserido no parágrafo único do art. 316 do CPP foi exigir do julgador que novamente fundamentasse (igualmente de forma mais sintética) a necessidade de manutenção da prisão cautelar se, no interregno existente entre sua decretação e a sentença, tiverem decorridos mais de 90 dias.
Fácil ver que a ordem tem a finalidade única de evitar, em primeiro grau (ou no juízo de competência penal originária), a manutenção de uma prisão cautelar que extrapole o prazo indicado para a prolação da sentença (pressupondo que seja condenatória, pois, como dito, em caso de absolutória deverá imediatamente o preso ser posto em liberdade).
Outro aspecto relevante é sobre o prazo nonagesimal, talvez o que gere maiores incompreensões.
Há quem defenda uma leitura isolada e quase literal do dispositivo (sabemos todos que é, smj, o pior dos “métodos“), sustentando que, dessa regra, decorreria a conclusão automática e inevitável de que, ultrapassado o prazo matemático de 90 dias, a prisão se tornaria ilegal.
Assim não pensamos. E longe de „pechas“ que defender outra posição é “legislar“ ou “violar direitos fundamentais“ (dos investigados/processados).
Rememoramos o que dissemos noutra obra de nossa autoria (Delinquência Econômica e Estado Social e Democrático de Direito, Verbo Jurídico, 2006, p. 27 e seguintes): “na aplicação do direito, portanto, não há como o intérprete ficar afastado do mundo e dos fatos que o circundam. Não há como desenvolver um pensamento abstrato, distante da realidade. A hermenêutica está ancorada na faticidade e na historicidade.[…] Efetivamente, no exercício de seu papel de aperfeiçoador-elaborador do direito, deve o intérprete acorrer a juízos de valor, que se encontram no centro dos problemas criados pela interpretação e aplicação do direito. Precisa examinar os fenômenos multidimensionais, ao invés de isolar cada uma de suas dimensões, respeitando as diferenças, ao mesmo tempo em que reconhece a unicidade sistêmica”.
Como lembra Eros Grau (Ensaio sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 31 e 93), a norma é produzida não apenas a partir dos elementos do texto normativo (mundo do dever-ser), mas também levando em conta determinada situação histórica, em face dos elementos concretos do caso ao qual está sendo aplicado: a partir da realidade (mundo do ser), cujo ponto de partida deve ser a Constituição – com sua ínsita vocação prospectiva e transformadora, tendo como norteador o sistema por ela delineado.
Como bem pontua também Juarez Freitas (A Interpretação Sistemática do Direito. 4 ed. rev. e amp.São Paulo: Malheiros, 2004, p.75 e 77), “interpretar uma norma é interpretar o sistema inteiro, pois qualquer exegese comete, direta ou obliquamente, uma aplicação da totalidade do Direito, para além de sua dimensão textual”. Em outras palavras (suas ainda), “ainda quando se esteja examinando, em aparência, uma norma isolada, esta só poderá ser bem compreendida na relação mútua com as demais”.
Feitas essas considerações, prossigamos no intento proposto.
Não concordamos com a ideia de interpretação isolada e literal do dispositivo.
Primeiro, porque o prazo não pode ser analisado matematicamente e isolado do contexto de interpretação de todas as demais regras processuais que preveem prazos desse jaez. Noutras palavras, passados os noventa dias (prazo presumido pelo legislador), a prisão antes decretada não se tornará automaticamente em privação ilegal de liberdade. Não é uma questão de contagem de prazos de forma matemática e cartesiana.
Aliás, é isso que se colhe de precedente do STJ publicadodia 15.10.2020:
” […] 5. A alteração promovida pela Lei n° 13.964/2019 ao art. 316 do Código Penal estabeleceu que o magistrado revisará, a cada 90 dias, a necessidade da manutenção da prisão, mediante decisão fundamentada, sob pena de tornar a prisão ilegal. Não se trata, entretanto, de termo peremptório, isto é, eventual atraso na execução deste ato não implica automático reconhecimento da ilegalidade da prisão, tampouco a imediata colocação do custodiado cautelar em liberdade. 6. “Nos termos do parágrafo único do art. 316 do CPP, a revisão, de ofício, da necessidade de manutenção da prisão cautelar, a cada 90 dias, cabe tão somente ao órgão emissor da decisão (ou seja, ao julgador que a decretou inicialmente) […] Portanto, a norma contida no parágrafo único do art. 316 do Código de Processo Penal não se aplica aos Tribunais de Justiça e Federais, quando em atuação como órgão revisor.” […] (Agravo Regimental nos Embargos Declaratórios no Habeas Corpus nº 605.590/MT, STJ, 5ª Turma, unânime, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 6.10.2020, publicado no DJ em 15.10.2020).
Segundo, das regras existentes não podem ser extraídas normas conducentes uma conclusão quase cartesiana desvinculada do sistema. Do contrário, teríamos uma presunção automática de ilegalidade pelo simples transcurso de um dia para além do prazo de 90 dias. Não nos parece nem racional, muito menos algo que seja sistematicamente defensável.
Desse modo, compreendemos que, em caso de eventual omissão do julgador nesse ato revisional (sobre a necessidade ou não da continuidade da prisão preventiva), deverá existir uma provocação do preso sobre seu direito previsto na regra. Se, subsequentemente a isso, houver uma clara omissão a esse pleito ou ausência de suficiente fundamentação nesse ato de manutenção, é que se poderá falar em ilegalidade da manutenção da prisão.
Aliás, essas foram talvez as principais razões pelas quais, em 15.10.2020, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que a inobservância desse prazo previsto no parágrafo único do art. 316 do CPP não implica automática revogação da prisão, devendo sempre o juiz competente ser instado a reavaliar a legalidade e a atualidade de seus fundamentos (Medida Cautelar na Suspensão de Liminar nº 1.395-SP, Plenário, 9×1 votos), conclusões que já tínhamos externado (embora de forma mais concisa) quando das primeiras anotações ao art. 316, parágrafo único, CPP, quando entrou em vigor conforme a redação conferida pela Lei nº 13.964/2019.
Não queremos que você concorde com nossa posição, mas que COMPREENDA as razões jurídicas, históricas e sistemáticas das coisas para, só então, exarar suas conclusões.
As nossas são essas.
A discordância é plenamente permitida. Não queremos “impor” nada. Apenas permitir que outros “pensem”, que compreendam e não se deixem levar por “dogmas”.
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