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DIREITOS HUMANOS E FUNDAMENTAIS
Um dia que dura décadas: Brasil não pune violações a direitos humanos
10/11/2020
por Valerio Mazzuoli, Melina Fachin e Inês Virgínia P. Soares
Uma fábrica de fogos de artifício explodiu na cidade de Santo Antônio de Jesus, no Recôncavo Baiano, em 11 de dezembro de 1998, ceifando a vida de 64 mulheres, dentre elas 20 crianças, e ferindo seis trabalhadoras, todas em situação de vulnerabilidade econômica e social e, na sua amplíssima maioria, negras. As operações da fábrica eram irregulares e, por mais de duas décadas, nenhuma responsabilização — seja cível, trabalhista ou criminal — lhe pesou aos ombros ou ao de seus dirigentes.
O Brasil foi denunciado, em razão da falta de diligência para com o caso, perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos e a sentença internacional condenatória foi publicada no mês passado, deixando claro, mais uma vez, que o nosso país faltou com o dever de responder de modo eficaz contra o cometimento de crimes em seu território, descumprindo obrigações positivas em matéria criminal previstas pelas normas internacionais de direitos humanos em vigor, em especial na Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969 [1].
Essa foi a nona condenação do Brasil no sistema interamericano de direitos humanos. Novamente, como em outros sete dos oito casos anteriores (exceto o da comunidade indígena Xucuru), houve responsabilização internacional do Estado por persecução penal ineficaz ou ineficiente, bem assim por não ter o país seguido os parâmetros interamericanos sobre a matéria. O Brasil falhou, novamente, com o dever de assegurar a devida diligência em processos criminais, no sentido de que a investigação deve ser realizada por todos os meios legais disponíveis, buscando determinar a verdade e a responsabilização dos responsáveis intelectuais e materiais pelos fatos [2].
No caso da explosão na cidade do Recôncavo Baiano, a situação de extrema vulnerabilidade e pobreza obrigava as vítimas a se submeter a trabalho extremamente perigoso, na fábrica de fogos. Além do mais, a remuneração recebida era absolutamente desproporcional à periculosidade e à insalubridade do trabalho. Cada trabalhadora, por exemplo, recebia R$ 0,50 para cada mil traques (pequenos artefatos explosivos) confeccionados. Tais atividades, somadas à exploração do trabalho infantil e à falta de fiscalização do Estado, foram responsáveis pela tragédia que retirou a vida daquelas trabalhadoras.
A falta de punição por parte do Estado durante mais de 20 anos foi o fator da imediata responsabilização internacional, pois o dever de punir os responsáveis pelo cometimento de crimes é um reconhecido standard de direitos humanos, que, ademais, reafirma a centralidade das vítimas no sistema interamericano. Não se trata de punitivismo internacional, sequer de ingerência arbitrária de organismos internacionais no Direito interno. Os que pensam contrariamente desconhecem a jurisprudência das cortes regionais de direitos humanos (europeia e interamericana) e têm dos mecanismos regionais de monitoramento apenas uma notícia anedótica, de oitiva, que faz tábula rasa da realidade dos Estados e, sobretudo, das vítimas e de seus familiares, por desconhecerem — na prática e teoricamente — o sistema e sua finalidade histórica.
Como se sabe, os sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos não são dicotômicos, mas complementares uns dos outros em prol do victim centred approach. Essa aglutinação de forças se faz indispensável em face do cenário complexo e plural crescente que os processos de reconhecimento e concretização dos direitos humanos demandam. Nesse sentido, relembre-se a “tríade formada pela vitimização, o sofrimento humano e a reabilitação das vítimas”, mencionada por Cançado Trindade, atualmente juiz da Corte Internacional de Justiça (Haia) e ocupante de um assento na Corte Interamericana de Direitos Humanos por dois mandatos, de 1994 a 2008. Nas suas palavras, as vítimas não são figuras neutras e, sim, “titulares dos direitos violados” ou “sujeitos de direito vitimados por um conflito humano” [3].
Por isso, quando se fala em “vítimas” do Estado brasileiro, se está a referir propriamente às vítimas de crimes, é dizer, aquelas contra as quais ilícitos penais foram perpetrados — quer por agentes do Estado ou por particulares — e que não obtiveram do sistema interno de Justiça uma devida e justa reparação, em tempo hábil e segundo os padrões internacionais relativos à matéria, bem assim os familiares daqueles contra os quais foram praticados crimes.
No cenário local, portanto, a punição criminal dos agentes que deram causa ao crime está diretamente vinculada à reparação e à reabilitação das vítimas. A reparação coletiva da comunidade do interior baiano encontra o desafio de lidar com a discriminação estrutural, aquela inerente à ordem social, a suas estruturas e a seus mecanismos jurídicos, institucionalizada e que resulta em práticas expõem os mais frágeis a maiores riscos e perigos.
É importante lembrar que a primeira vez em que a Corte Interamericana expressamente determinou a responsabilidade internacional contra um Estado por perpetuar uma situação estrutural histórica de exclusão foi exatamente na condenação do Brasil no “caso trabalhadores da Fazenda Brasil Verde”, em 2016. Na sentença relativa ao caso, a corte entendeu que toda pessoa “que se encontre em uma situação de vulnerabilidade é titular de uma proteção especial, em razão dos deveres especiais cujo cumprimento por parte do Estado é necessário para satisfazer as obrigações gerais de respeito e garantia dos direitos humanos”, razão pela qual “não basta que os Estados se abstenham de violar os direitos, mas é imperativa a adoção de medidas positivas, determináveis em função das particulares necessidades de proteção do sujeito de direito, seja por sua condição pessoal ou pela situação específica em que se encontre, como a extrema pobreza ou a marginalização” [4].
No caso da fábrica de fogos do Recôncavo Baiano, novamente as vítimas foram vulneradas pela desigualdade da realidade brasileira, marcada por pobreza, desigualdades regionais e restrição de acesso ao emprego. Além dos fatores raciais e de gênero, que caracterizam o sofrimento das vítimas, a tragédia da explosão alterou o futuro de dezenas de famílias. O Estado brasileiro, a seu turno, quando deveria punir os responsáveis por tais arbitrariedades, não o fez, certo de que essa falta de punição — em razão de inação do Estado ou de inconvencionalidades na persecução penal — não passou incólume ao exame realizado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Considerando, ademais, os processos de racialização e feminização das desigualdades, há a necessidade de identificar e visibilizar tais vulnerabilidades com políticas voltadas ao pleno exercício do direito à inclusão social. Se o padrão de violação de direitos tem um efeito desproporcionalmente lesivo às mulheres e às negras e negros, adotar políticas de gênero “neutras” alimenta a desigualdade e a exclusão.
A “perda de chances” da comunidade atingida pela explosão da fábrica de fogos já seria grave em um contexto de reparação concomitante às mortes, mas foi potencializada pela ausência de respostas e punições adequadas do Brasil por mais de duas décadas. Tal, per se, já seria causa de responsabilidade internacional do Estado brasileiro, notadamente por ter contribuído, a um só tempo, com a impunidade baseada em relações de poder — econômica, neste caso e no da “Fazenda Brasil Verde”, e política, nos crimes da ditadura militar — e com o irreparável dano ao “projeto de vida” das vítimas e seus familiares [5].
Nesse enfoque, é possível observar que a Corte Interamericana tem identificado quatro postulados violados nas condenações do Brasil no que diz respeito ao direito das vítimas: o direito de acesso à Justiça, à garantia judicial e a um julgamento; o direito à proteção judicial, também interpretado como o direito a um remédio efetivo; o direito à reparação do dano; e o direito à verdade. A violação a esses direitos se liga à ideia de ausência ou deficiência de punição por parte do Estado.
Entre tantos pontos importantes dessa nona condenação brasileira pela Corte Interamericana, ressalta-se a vinculação do dever de punição à projeção de um futuro mais justo. Nesse sentido, o julgamento criminal é uma afirmação dos direitos das vítimas e do poder da Justiça, porque o processamento dos responsáveis retém o crime e o mantém dentre aquilo que não se pode esquecer nem pode se repetir.
Portanto, aceitar as regras do Estado de Direito não é apenas se colocar em oposição à ilegalidade e à exploração da vulnerabilidade dos moradores da cidade baiana de Santo Antônio de Jesus — e de tantas outras cidades que abrigam comunidades vulneráveis, mas também fazer algo a mais, pois o grande temor e prejuízo para a comunidade seria que o crime caísse no esquecimento, que a passagem do tempo, tal como um solvente natural, libertasse os responsáveis e perpetuasse a situação de injustiça, com a manutenção daquelas desigualdades econômicas. Nessa perspectiva, o julgamento é um espaço que resiste e rechaça o temor e o prejuízo coletivos. Julgamentos contra perpetradores são, portanto, um aceno à “não repetição”, bem como um sopro de esperança: determinam como a comunidade afetada se tornará a partir da resposta punitiva àquele fato criminoso.
Punir as graves violações a direitos humanos, especialmente as cometidas em cenário de discriminação estrutural, é um standard interamericano de direitos humanos e um aceno para um futuro com chances iguais. Em razão disso, deve ser observado pelo Brasil. Afinal, não é justo que um dia — como aquele 11 de dezembro de 1998 — dure mais de 20 anos.
Fonte: Conjur
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Valerio de Oliveira Mazzuoli é pós-doutor pela Universidade de Lisboa, doutor summa cum laude em Direito Internacional pela UFRGS, mestre em Direito pela UNESP, professor-associado da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT e membro consultor da Comissão Especial de Direito Internacional do Conselho Federal da OAB.
Melina Girardi Fachin é mestre e doutora em direito pela Pontifícia Universidade Católica da São Paulo – PUC-SP, com estágio de pós-doutorado no Instituto de Direitos Humanos da Universidade de Coimbra (2019-2020), professora da Universidade Federal do Paraná e membra da Comissão Direitos Humanos do Conselho Federal da OAB.
Inês Virgínia Prado Soares é mestre e doutora em direito pela Pontifícia Universidade Católica da São Paulo – PUC-SP, com estágio de pós-doutorado no Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo – NEV-USP (2009-2010) e desembargadora do Tribunal Regional Federal da 3ª Região.
[1] Para um comentário completo da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, v. PIOVESAN, Flávia, FACHIN, Melina Girardi & MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
[2] Corte IDH, Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e Seus Familiares vs. Brasil, sentença de 15 de julho de 2020, Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas, Série C, nº 407, § 220.
[3] CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Desafios e conquistas do direito internacional dos direitos humanos no início do século XXI. Curso de Direito Internacional da Comissão Jurídica Interamericana da OEA. Rio de Janeiro: CJI, 2006, p. 435-463.
[4] Corte IDH, Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil, sentença de 20 de outubro de 2016, Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas, Série C, nº 318, § 337.
[5] Sobre o direito ao “projeto de vida” na jurisprudência da Corte IDH, v. os casos Loayza Tamayo vs. Paru, sentença de 27 de novembro de 1998, Reparações e Custas, Série C, nº 42, § 144 e ss; e Cantoral Venavides vs. Peru, sentença de 3 de dezembro de 2001, Reparações e Custas, Série C, nº 88, §§ 60-63.