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A Covid-19 mostrou a verdadeira natureza dos depósitos judiciais
Hugo de Brito Machado Segundo
08/09/2020
No final dos anos 1990, a Lei 9.703/98 modificou a maneira como se fazem os depósitos judiciais, no plano federal, no que tange às questões que discutem a cobrança de tributos. Até então feitos na Caixa Econômica Federal, em conta comum que apenas permanecia à disposição do juízo, passaram, com o advento da referida lei, a ser creditados à Conta Única do Tesouro Nacional.
O depósito deixou de permanecer à disposição de um terceiro, o juízo, passando a ser desde logo entregue a uma das partes, a título “provisório”. O pagamento se transforma em um “pagamento definitivo”, caso o contribuinte sucumba em sua demanda. Na hipótese contrária, de êxito do contribuinte, o valor é devolvido sem a necessidade de precatório. Os possíveis vícios inerentes a essa modificação, contudo, não chegaram a ser mais energicamente questionados por contribuintes, por conta da remuneração dos depósitos pela Selic, à época bastante elevada (artigo 1.º, § 3.º, I, da Lei 9.703/98). O assunto, assim, restou adormecido.
Merece destaque o fato de que, em qualquer das hipóteses inicialmente indicadas, o contribuinte possui, em tese, alternativas ao depósito. Isso não se modificou com a Lei 9.703/98. Muitas vezes, a escolha entre realizar o depósito, ou pleitear uma tutela, ou garantia a execução com bens, ou com uma fiança, depende das circunstâncias. O depósito tem a vantagem de dispensar qualquer deliberação ou autorização, e, sobretudo, de retirar do sujeito passivo a preocupação com os juros incidentes sobre a dívida, que passam a correr por conta da entidade que mantiver o depósito consigo. Contribuintes em situação de maior dificuldade, contudo, podem preferir pleitear uma tutela provisória, ou, no caso de execução, garanti-la de outra forma, para assim preservar alguma disponibilidade em seu caixa, necessária ao normal andamento de suas atividades.
Foram justamente as circunstâncias inerentes a este cenário que se alteraram, com o advento da Covid-19 e das medidas destinadas ao seu enfrentamento. Nesse contexto, contribuintes que realizaram depósitos judiciais em um período de maior liquidez e conforto financeiro, e que durante a pandemia enfrentaram graves dificuldades de caixa, resolveram pleitear a substituição da garantia apresentada. Sabe-se que, em uma execução, os bens penhorados podem ser substituídos por outros, desde que haja anuência do exequente. Mas a anuência sequer é necessária, caso a substituição seja por dinheiro. E a legislação equipara outras formas de garantia, para esse efeito, ao dinheiro. É o caso da fiança bancária e do seguro garantia, a teor, por exemplo, dos artigos 835, § 2.º, e 848, parágrafo único, do CPC.
Munidos de cartas de fiança, ou de seguros garantia, em valor equivalente ao do débito, acrescido de 30%, contribuintes pleitearam a substituição, alegando a completa mudança no cenário diante do qual realizaram o depósito, a necessidade dos recursos para a sobrevivência da empresa e dos que dela dependem, e a expressa previsão em lei. Ao chegarem ao Superior Tribunal de Justiça, porém, os pedidos formulados nos termos explicados acima foram indeferidos.
Vários fundamentos foram utilizados para embasar os indeferimentos, mas não é o caso de examiná-los todos aqui. O propósito deste texto não é aprofundar essa questão, referente à garantia do juízo no processo tributário, ou mesmo criticar o indeferimento dos pedidos de substituição em si. A ideia é verificar o quanto a tentativa de substituição da garantia serviu para escancarar a verdadeira natureza dos depósitos, o que pode permitir algumas conclusões ou desdobramentos.
Realmente, quando se usa, por exemplo, como fundamento, a circunstância de que a atividade da requerente teria sido considerada essencial e não teria sido embaraçada pela pandemia, isso não guarda qualquer relação com a natureza do depósito aqui discutida. Entretanto, chamam a atenção os seguintes fundamentos, que também apareceram em decisões denegatórias de tais requerimentos:
Quanto ao mais, registre-se que a conjuntura excepcional trazida pela pandemia do Coronavírus (Covid-19) não legitima que sejam adotadas medidas que prestigiem o interesse individual da empresa, seus sócios, trabalhadores, clientes e fornecedores por sobre o interesse coletivo de toda a sociedade (interesse público). Decerto, fossem liberados todos os depósitos judiciais efetivados em garantia de ações tributárias por todo o Brasil, o Poder Público restaria privado de importantes recursos que já estão sendo utilizados em diversas políticas públicas de combate à pandemia e seus efeitos de toda ordem (política, social, econômica, de saúde, educacional, científica etc.). Isto porque os depósitos já efetuados ingressam automaticamente na Conta Única do Tesouro Nacional, sendo de livre disponibilidade do ente político (obedecendo a vinculação constitucional de receitas tributárias), e a sua devolução se dá mediante débito nessa mesma conta (artigo 1º, §§2º e 4º, da Lei nº 9.703/98). Nunca é demais lembrar que a arrecadação em depósitos judiciais no âmbito da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional é expressiva correspondendo, em 2019, a mais de R$ 7 bilhões de um total de aproximadamente R$ 24,7 bilhões arrecadados. Ou seja, corresponde a mais de 28% do volume arrecadado.
Projetando-se essa mesma participação para a arrecadação de procuradorias estaduais e municipais por todo o Brasil (pois as decisões do STJ são paradigmáticas e influenciam o comportamento do Poder Judiciário como um todo), seria inimaginável retirar do Poder Público a disponibilidade de tamanha quantia em um momento tão critico como o presente. Tal conduta evidenciaria violação ao artigo 20, da Lindb: “Artigo 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão” (Decreto-Lei nº 4.657/42).” (PET no REsp 1.706.203–SP)
Dois pontos merecem destaque na fundamentação acima. O primeiro é a alusão ao interesse público, que estaria sendo contrastado com o “mero” interesse individual de um grupo tão grande de pessoas, a incluir a “empresa, seus sócios, trabalhadores, clientes e fornecedores”. E, o segundo, o reconhecimento de que se trata de receita pública, utilizada pelo Poder Público e nessa condição impossível de ser momentaneamente restituída aos proprietários das quantias depositadas. Sim, até o trânsito em julgado de uma sentença de improcedência, em tese, os depósitos continuam pertencendo ao depositante, lógica que parece ter sido subvertida pela Lei 9.703/98, subversão que só agora vem mais claramente à superfície.
Mas as decisões que negam a liberação dos depósitos, mediante substituição da garantia, não apenas confirmam que a Lei 9.703/98 realmente extinguiu a figura do depósito, criando um pagamento seguido da possibilidade de restituição direta, independentemente de precatório. Elas revelam ainda a disparidade com que as questões tributárias são enfrentadas pelo Judiciário, relativamente àquelas que tem partes diversas do próprio Poder Público. Isso porque, apreciando questões não tributárias, o mesmo Superior Tribunal de Justiça não vê qualquer problema na substituição pretendida, tendo decidido, por exemplo, que:
O seguro garantia judicial oferece forte proteção às duas partes do processo, sendo instrumento sólido e hábil a garantir a satisfação de eventual crédito controvertido, tanto que foi equipado ao dinheiro para fins de penhora. De fato, no cumprimento de sentença, a fiança bancária e o seguro garantia judicial são as opções mais eficientes sob o prisma da análise econômica do direito, visto que reduzem os efeitos prejudiciais da penhora ao desonerar os ativos de sociedades empresárias submetidas ao processo de execução, além de assegurar, com eficiência equiparada ao dinheiro, que o exequente receberá a soma pretendida quando obter êxito ao final da demanda. Considerando-se que o legislador equiparou expressamente a fiança bancária e o seguro garantia judicial ao dinheiro, isto é, que não existe diferença para fins de garantia do juízo, não há margem para que o exequente discuta a sua aceitação, ressalvados os casos de insuficiência ou inadequação da garantia. Nesse contexto, por serem automaticamente conversíveis em dinheiro ao final do feito executivo, a fiança bancária e o seguro garantia judicial acarretam a harmonização entre o princípio da máxima eficácia da execução para o credor e o princípio da menor onerosidade para o executado, a aprimorar consideravelmente as bases do sistema de penhora judicial e a ordem de gradação legal de bens penhoráveis, conferindo maior proporcionalidade aos meios de satisfação do crédito ao exequente (Pet no REsp 1.787.457-SC).
Como se percebe, fundamentos diversos dos usados quando se trata da Fazenda Pública, sendo certo que a lei processual foi vista como a impor, e não a vedar, a substituição pretendida. A diferença, neste caso, é que no processo em que a substituição foi aceita as partes eram Tim Celular S/A e Aline Weiss Silveira. Nitidamente, o fato de ser a Fazenda Pública, e de ela se ter apropriado do depósito, contribuiu para que as mesmas normas processuais fossem compreendidas de modo completamente diverso.
Quanto ao “interesse público” que poderia estar subjacente a essa distinta forma de compreender a lei processual, lembre-se que ele foi contrastado, pela decisão que negou a substituição, com o “mero interesse individual” da empresa contribuinte, de seus empregados, sócios e fornecedores. Um número de pessoas que pode ser bastante grande, o que por si só já colocaria em dúvida o uso da expressão “interesse individual”. A expressão “interesse público”, ao que parece, foi usada como mantra eufemístico para a mera razão de Estado, pois além de o principal interesse público ser o respeito à lei, é do interesse de todos, por igual, a manutenção da economia e da saúde das empresas. Tanto que o Poder Público não apenas incrementou gastos com saúde no combate à pandemia e aos seus efeitos; ele também adotou políticas de auxílio, prorrogação de prazo para cumprimento de obrigações acessórias etc.
Quanto ao argumento de que “se todos fizerem o mesmo, os efeitos serão catastróficos”, inclusive com invocação da Lindb, ele, com todo o respeito, é o que menos procede neste cenário. Além de não ser admissível seu uso genérico e não fundamentado, a teor do artigo 489, § 1.º, II, do CPC, esse argumento em verdade depõe contra a validade da Lei 9.703/98: de fato, se todas as ações forem julgadas em tempo recorde, e tiverem seus pedidos julgados procedentes, seguindo-se uma redução da litigiosidade e do ingresso de novas ações, não se terá o mesmo resultado “nefasto”? Será isso então justificativa para o Judiciário cozinhar os processos, e julgar-lhes improcedentes os pedidos, para não ter de devolver os recursos depositados?
A principal lição que a transformação havida nos depósitos judiciais revela, contudo, é de longo prazo, voltada a uma possível reforma no sistema processual tributário brasileiro, notadamente no que tange à restituição do indébito. Trata-se da sistemática de precatórios.
Com a Lei 9.703/98, confirma-se uma ideia que já pode ser suscitada a partir das requisições de pequeno valor — RPV: a de que os pagamentos feitos pelo Poder Público, em razão de condenações judiciais, não precisariam ser incluídos no orçamento apenas depois de encerrado o cumprimento de sentença, para satisfação, no melhor dos cenários, somente a partir do exercício subsequente. A Constituição poderia ser modificada para que o processo fosse sensivelmente abreviado, aproximando o cumprimento de sentenças no Brasil dos exemplos existentes em outras partes do mundo.
Atualmente, com exceção dos precatórios, todas as despesas constantes de um orçamento público são previsões. Faz-se uma estimativa de quanto será gasto com cada item, alocando-se recursos para tanto, permitindo-se assim o pagamento mais célere. Também as condenações judiciais, todas elas, poderiam entrar nesse rol. Os depósitos judiciais, com o advento da Lei 9.703/98 e deste reconhecimento covidiano dos verdadeiros efeitos da transformação por ela operada, complementam essa amostra, por representarem exemplo de verdadeiro pagamento seguido da possibilidade de restituição sem precatório.
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