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A correção dos equívocos dos vetos na Lei da Pandemia nas relações privadas

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RJET

VETOS

Guilherme Calmon Nogueira da Gama
Guilherme Calmon Nogueira da Gama

21/08/2020

Com certo atraso, mas não a destempo, o Congresso Nacional apreciou e rejeitou, no último dia 20 de agosto, alguns dos vetos impostos pelo Poder Executivo sobre dispositivos da Lei nº 14.010/2020 – RJET, que vem sendo chamado pela doutrina de Lei da Pandemia. Como dito, embora com uma demora prejudicial, tendo em vista que os dispositivos vetados, por estarem inseridos em uma lei transitória e emergencial, editada com o propósito de estabilizar as relações sociais durante o traumático período da pandemia, serem essenciais para o atingimento desta finalidade, nunca é tarde para corrigir os rumos e restaurar o ambiente criado pela novel legislação.

Assim, a derrubada dos vetos restaura – ou cria – um regime especial necessário à solução dos inúmeros conflitos que eclodem, a todo tempo, em decorrência da pandemia do novo Coronavírus. Embora já tenhamos nos manifestado, em diversas outras sedes, sobre o regime jurídico emergencial e transitório das relações jurídicas de direito privado durante a crise epidêmica, impõe-nos tecer alguns comentários acerca dos dispositivos cujos vetos foram rejeitados pelas Casas Legislativas.

Nada obstante, antes de apreciar a derrubada, em si, dos vetos, e as suas repercussões, a análise de uma importante, particular e verdadeiramente tormentosa questão se impõe, que é a do Direito Intertemporal, notadamente em relação aos dispositivos antes vetados, e que agora têm plena vigência e eficácia com a rejeição aos vetos.

Como cediço, uma vez sancionada, promulgada e publicada a lei, tem-se a sua vigência, e não sendo previsto prazo de vacatio legis, é ela plenamente eficaz, produzindo, então, todos os seus efeitos. Ocorre, contudo, que em relação aos dispositivos vetados, estes não ingressam no ordenamento jurídico, não existindo enquanto norma jurídica, posto não terem sido objeto de sanção e promulgação pelo Presidente da República.

Diante disso, e levando-se em consideração que o RJET foi publicado em 12 de junho de 2020, e os dispositivos vetados só tiveram os vetos derrubados no dia 20 de agosto de 2020 (portanto, mais de 02 meses depois), como deverão ser enfrentadas as questões e lides nascidas durante este interregno, em que havia um vácuo legislativo? Esta é, sem sombra de dúvidas, uma questão a merecer especial atenção, e que para respondê-la se faz necessário saber os efeitos que o veto e a sua rejeição produzem.

Como dito anteriormente, a lei só passa a existir no mundo jurídico após a conversão do projeto, o que se dá com a sanção e a promulgação. Com efeito, o veto incide sobre o projeto de lei, de modo que os dispositivos vetados, enquanto não houver a derrubada daquele, não integram o ordenamento jurídico.

Sem prejuízo, e consoante prestigiosa doutrina, o veto não significa uma rejeição definitiva do projeto e, consequentemente, a sua morte e sepultamento. O veto, no ordenamento jurídico brasileiro, tem efeito suspensivo, uma vez que superável. O Poder Executivo, ao vetar um dispositivo, sujeita-o a reexame pelo Poder Legislativo, alongando, assim, o processo legislativo, levando à necessária reapreciação do projeto pelo Congresso à luz das razões políticas ou jurídicas que levaram ao veto presidencial .

Com efeito, e em verdade, os dispositivos vetados ficam com sua eficácia suspensa. Pairam sobre eles, então, uma condição suspensiva, que é a possibilidade da rejeição ao veto. Como consequência, não sendo mantido o veto pelo Congresso, tem-se o implemento da condição, de modo que a norma passa a produzir efeitos com a ratificação do texto projetado pelas Casas Legislativas e posterior promulgação presidencial, nos termos do § 5º do art. 66 da Constituição Federal.

Nesse momento surge uma situação que gera, inúmeras vezes, insegurança jurídica. A possibilidade de veto parcial – isto é, sobre parte da lei –, com a entrada imediata em vigor dos dispositivos não vetados, e a posterior superação do veto, acarreta algumas situações no mínimo constrangedoras, para não dizer esdrúxulas.

Isso porque, sancionada, promulgada e publicada a lei, tem ela força obrigatória sobre todos os seus destinatários, indistintamente, aplicando-se às relações jurídicas, as quais serão regidas, portanto, por um novo regime jurídico, ressalvando-se, à toda evidência, o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Isso, contudo, não ocorrerá com os dispositivos vetados, os quais permanecem aguardando a apreciação legislativa.

Uma vez afastado o veto pelo Congresso, com a posterior promulgação presidencial, aqueles dispositivos outrora inexistentes passam a existir e ter eficácia, inclusive retroativa, como se tivessem sido promulgados juntamente com a lei, uma vez que a rejeição ao veto não importa na criação de uma nova lei composta apenas pelas disposições anteriormente vetadas.

Tal conclusão, no caso da Lei nº 14.010/2020, fica ainda mais evidente. Em se tratando de uma lei temporária, seus dispositivos contêm previsão acerca do seu prazo de vigência, os quais estão atrelados, pela própria redação do texto, à entrada em vigor da lei, como é o caso do art. 4º, ou em momento anterior, como se vê dos arts. 6º e 9º do RJET, os quais fazem referência ao dia 20 de março de 2020, data da publicação do Decreto Executivo nº 06/2020, que decretou o estado de calamidade em decorrência da pandemia.

Portanto, embora os dispositivos tenham sido vetados, terão eles eficácia retroativa à data da entrada em vigor da própria Lei nº 14.010/2020, ou do momento do reconhecimento do estado de calamidade pública decorrente da crise epidêmica ocasionada pelo Coronavírus.

Feitas, pois, tais observações, essenciais à correta aplicação do regime jurídico estabelecido pela Lei nº 14.010/2020, imperioso é o exame dos dispositivos vetados e que agora têm pleno vigor.

O primeiro dos dispositivos vetados é o art. 4º do RJET, que prevê a possibilidade de realização de reuniões e assembleias presenciais de sócios e associados de pessoas jurídicas, devendo-se observar as determinações sanitárias das autoridades locais.

Como se sabe, as pessoas jurídicas de direito privado são entes ficcionais, cujo funcionamento e, consequentemente, subsistência depende da atuação pessoal e concreta de seus sócios e associados pessoas naturais. Por essa razão, é imprescindível a possibilidade de realização de reuniões e assembleias para a tomada de decisões no âmbito dessas pessoas jurídicas.

O referido dispositivo fora vetado, sob o duvidoso fundamento do interesse público, sob o argumento de que Medida Provisória anteriormente editada já regulamentava a matéria. Tal fundamento, com a devida vênia, se revelava equivocado, na medida em que, embora haja, de fato, uma Medida Provisória tratando de assembleias virtuais no âmbito das sociedades, a existência em nada se incompatibilizava com o disposto no art. 4º do RJET. Senão vejamos.

A Medida Provisória nº 931/2020, editada em 30 de março de 2020, e hoje convertida na Lei nº 14.030/2020, dispõe sobre a realização de assembleias virtuais no âmbito das sociedades, bem como sobre a prorrogação do prazo para realização de assembleias ordinárias pelo período de 7 (sete) meses. Por ela, então, faculta-se às sociedades a realização de deliberações pelo meio virtual, podendo postergar o prazo de realização das assembleias ordinárias sem o risco de sanções.

No entanto, o referido regulamento, como dito anteriormente, em nada se incompatibiliza com a norma do art. 4º do RJET. Primeiro porque a referida MP, e agora a lei fruto de sua conversão, se limita a uma espécie em particular de pessoas jurídicas, a saber, as sociedades, enquanto a Lei nº 14.010/2020 tem um alcance muito mais amplo, pois trata da possibilidade de realização de reuniões e assembleias físicas no âmbito das associações, fundações e sociedades. Segundo que muitas das pessoas naturais integrantes dos quadros associativos dessas pessoas jurídicas não têm acesso e meios adequados à internet e às ferramentas eletrônicas e virtuais necessárias à deliberação.

Desse modo, se não lhes for permitida a realização de reuniões ou assembleias físicas e presenciais (observando, à toda evidência, as restrições e normas sanitárias), o próprio funcionamento e subsistência dessas pessoas jurídicas poderá ser inviabilizado, tendo em vista que a tomada de decisões, na maioria dos casos, imprescinde da deliberação dos sócios e associados. E terceiro que, tanto a Medida Provisória nº 931/2020, quanto a Lei nº 14.030/2020, objeto da sua conversão, admitem a prorrogação de assembleias ordinárias, mas ignoram a imperiosa necessidade de, em inúmeros casos, ter-se que realizar reuniões e assembleias extraordinárias.

Por essa razão, o veto presidencial é que se consubstanciava em um atentado ao interesse público, na medida em que poderia levar à morte um “sem número” de pessoas jurídicas que não tinham condições e estrutura de realizar assembleias ou reuniões virtuais, bem como precisavam deliberar sobre outros assuntos que não aqueles adstritos às assembleias ordinárias.

O segundo dispositivo objeto de rejeição ao veto é o art. 6º do RJET. Conforme o texto, “As consequências decorrentes da pandemia do coronavírus (Covid-19) nas execuções dos contratos, incluídas as previstas no art. 393 do Código Civil, não terão efeitos jurídicos retroativos”. A referida regra traz em seu bojo uma obviamente latente: os efeitos da pandemia não podem ser invocados para eximir de responsabilidade o devedor que descumpriu com sua obrigação antes da própria crise epidêmica.

Ora, dúvidas não há de que o descumprimento de uma obrigação antes da pandemia não pode justificar uma isenção de responsabilidade pelo caso fortuito ou força maior em decorrência dos efeitos do Coronavírus. Para que o devedor se exima das consequências jurídicas impostas pelo art. 393 do Código Civil, quando do inadimplemento culposo de uma obrigação, e tendo como motivo a crise sanitária, é preciso que esta seja contemporânea e motivadora do descumprimento. Apenas quando os efeitos da pandemia atingirem diretamente uma obrigação, impedindo que esta seja cumprida, é que o devedor poderá invocar o caso fortuito ou força maior para se liberar dos consectários da mora e do inadimplemento, nos termos do parágrafo único do art. 393 do Código Civil. Caso contrário, não lhe será lícito o fazer.

Vê-se, portanto, que não havia inconstitucionalidade, e tampouco ofensa ao interesse público – como previsto no veto presidencial –, que maculasse a regra do art. 6º do RJET. Em verdade, o veto ao dispositivo é que se revelou prejudicial, pois podia dar a falsa impressão, por uma interpretação a contrario sensu, de que (i) a pandemia do coronavírus não poderia se caracterizar como um evento fortuito ou de força maior a eximir o devedor das responsabilidades pelo inadimplemento motivado diretamente pela crise epidêmica, ou (ii) que talvez fosse possível invocar retroativamente os efeitos jurídicos da pandemia para inadimplementos ocorridos anteriormente a ela.

Ambas as conclusões seriam, a bem da verdade, absurdas, mas o veto dava margem a essas interpretações. Por esse motivo, salutar foi a sua rejeição pelo Congresso, restabelecendo a regra projetada e trazendo maior estabilidade e segurança jurídica.

Também vetada, mas agora acolhida pelo afastamento do veto, foi a regra do art. 7º da Lei nº 14.010/2020. Segundo o mencionado dispositivo, “Não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos dos arts. 317, 478, 479 e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou a substituição do padrão monetário”.

A referida norma tem como propósito sedimentar a jurisprudência consolidada nos Tribunais no sentido de que, no Brasil, dada a natural e costumeira instabilidade econômica, o aumento da inflação, a variação cambial e a desvalorização ou substituição da moeda não se caracterizam como fatos imprevisíveis para fins de aplicação, aos contratos, das teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva.

Sobre a referida jurisprudência, crê-se que ela é adequada à realidade brasileira, na medida em que as sucessivas e frequentes crises econômicas trazem, por certo, uma previsibilidade de mudanças na inflação, no câmbio e na moeda, impactando as relações contratuais.

No entanto, a referida jurisprudência só tem aplicação e eficácia, a nosso sentir, em um ambiente de “normalidade” econômica brasileira, e não diante de variações abruptas e de grande impacto causadas por uma crise epidêmica mundial e sem precedentes, como é o caso atual. Embora no Brasil se possa esperar, diante da realidade nacional, a ocorrência desses fatos, em nenhum lugar do mundo se poderia imaginar que sobreviria uma pandemia de proporções catastróficas, que mudaria a realidade econômica em todo o globo. Desse modo, não se pode negar que eventual aumento da inflação, variação cambial ou desvalorização ou substituição da moeda causados pela presente pandemia são eventos imprevisíveis.

Mas, ainda que assim não se entenda, é plenamente possível se aplicar à hipótese a jurisprudência também consolidada de aplicação da teoria da imprevisão e da onerosidade excessiva quando da ocorrência de efeitos imprevisíveis sobre fatos previsíveis. Veja-se, por exemplo, o caso da variação cambial. É crível que no Brasil venha a ocorrer repentinas modificações na taxa de câmbio. Trata-se, infelizmente, de uma realidade nacional. Entretanto, ninguém consegue imaginar ou mesmo prever que essa variação seja, em um espaço de duas semanas ou mesmo 01 (um) mês, de 30% (trinta por cento) ou 40% (quarenta por cento), como aconteceu com o dólar quando do surgimento da pandemia.

Neste caso se tem, inequivocamente, um efeito imprevisível de um fato “previsível” (embora creiamos que nesta hipótese o próprio evento é imprevisível), a autorizar a aplicação da teoria da imprevisão ou da onerosidade excessiva. Por essa razão, a superação do veto, na hipótese do art. 7º da Lei nº 14.010/2020, pode trazer consequências graves e danosas a milhares de pessoas, sendo, a nosso sentir, de duvidosa conveniência, e até mesmo de respeito ao interesse público, a manutenção do referido dispositivo.

Ainda no art. 7º do RJET, a derrubada do veto levou à promulgação dos seus §§ 1º e 2º, o qual trazem regras importantes para a tutela de regimes especiais. Segundo o § 1º, a inaplicabilidade da teoria da imprevisão prevista no caput não incide sobre as relações contratuais de consumo e de locação de imóveis urbanos, os quais têm regras próprias sobre a revisão do contrato.

No tocante às relações de consumo, duas razões justificam a exclusão prevista no § 1º do art. 7º. Primeiro, a vulnerabilidade e a hipossuficiência do consumidor frente ao fornecedor impõem uma proteção especial sobre a parte mais fraca da relação, cuja eventual limitação ou impossibilidade de revisão dos contratos deve sempre ser vista cum grano salis. Segundo que a teoria da quebra da base econômica do contrato, expressamente prevista no art. 6º, V, do Código de Defesa do Consumidor, não exige a imprevisibilidade do evento para que se permita a revisão contratual para restabelecimento do seu equilíbrio econômico-financeiro. Basta, nas relações de consumo, que o fato seja superveniente e torne excessivamente onerosa a prestação.

Quanto às relações locatícias, estas também se caracterizam, em muitos casos, pela vulnerabilidade do locatário, o que justifica uma especial proteção deste e, portanto, a possibilidade de revisão do contrato no caso de desequilíbrio. Nada obstante, mesmo fora desses casos, os contratos de locação devem observar circunstâncias especiais, notadamente no âmbito do mercado imobiliário. Os aluguéis devem, necessariamente, refletir a realidade do mercado, de modo que sobrevindo um evento que desequilibre esta base econômica e social, impõe-se a revisão do contrato para restabelecer a sua normalidade.

Em relação ao § 2º do art. 7º da Lei nº 14.010/2020, este não é, propriamente, uma regra transitória. Segundo o dispositivo em comento, as normas especiais e protetivas de direito do consumidor não se aplicam às relações contratuais subordinadas ao Código Civil, inclusive àquelas entre empresários. A referida regra, como é possível perceber, nenhuma relação tem com um regime jurídico emergencial a subsistir durante a pandemia, sendo desnecessária a sua previsão.

É evidente que as relações civis-paritárias e empresariais gozam de maior autonomia e liberdade das partes, e dado o seu caráter negocial e mercadológico, estão sujeitas às intempéries do mercado. Particularmente em relação às obrigações empresariais, estas são dotadas, em sua essência, de uma carga de risco e imprevisibilidade. Por essa razão, a suportabilidade desses riscos é maior, sendo menor a ingerência estatal sobre esses negócios.

Por essa razão, inclusive, é que a Lei nº 13.874/2020, nomeada de Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, alterou a redação do art. 421 do Código Civil, e incluiu ao texto da lei civil o art. 421-A, para prever que a limitação e a excepcionalidade da revisão contratual.

Assim, vê-se que a regra do § 2º do art. 7º do RJET era absolutamente desnecessária, pois nada diz acerca de um regime jurídico emergencial e transitório, na medida em que traz uma disposição que é inerente e permanente nas relações civis-paritárias e empresariais.

Por fim, dispositivo cujo veto também foi rejeitado é o art. 9º da Lei nº 14.010/2020. O mencionado dispositivo traz a polêmica questão da proibição de concessão de liminares em ações de despejo de imóvel urbano residencial. A norma projetada, e hoje promulgada, enfrentou fortes reações do mercado imobiliário, especialmente por parte dos locadores, que questionavam a sua validade. Atendendo aos interesses destes, o Poder Executivo impôs sobre o art. 9º do RJET o seu veto, o qual tinha como justificativa a necessidade de observância dos direitos do locador, na medida em que muitos deles dependem da renda dos aluguéis para sobreviver.

Ocorre, contudo, que embora sejam justificáveis as razões do veto, e a sua preocupação, a referida disposição estava, e ainda está, em perfeita consonância com a realidade social e do mercado, de modo que o veto se mostrava, ao contrário das suas razões, insustentável.

A primeira observação a ser feita é que a norma prevista não impede o despejo do locatário inadimplente. Ela proíbe, tão somente, a sua concessão liminar, em sede de cognição sumária, razão pela qual não se estava retirando nenhum direito do locador sobre o imóvel de sua propriedade. Portanto, não há, com a presente disposição legal, supressão de direitos do locador ou violação aos direitos deste.

Ultrapassada essa questão, a verdade é que a regra do art. 9º da Lei nº 14.010/2020 tem um caráter humanitário, e diante da realidade do mercado imobiliário, não traz nenhum prejuízo para o locador. Veja-se. Durante o período da pandemia, e mesmo diante do inadimplemento do locatário, revela-se desumano o desalijo. Impor ao locatário, que não tem condições de pagar o aluguel, a obrigação de sair do imóvel, muitas vezes com sua família, acarretará uma excessiva exposição de sua vida e saúde, pois terá que manter contato com inúmeras pessoas e contratar diversos serviços para realizar sua mudança.

Além disso, se ele não tinha condições de pagar o aluguel do imóvel em que estava, certamente não terá meios de arcar com a própria mudança, e até mesmo de pagar o aluguel de um outro imóvel. Observe-se que também é muito comum se exigir, como garantia do contrato, um depósito caução de três meses de aluguel. Ora, se o locatário não estava pagando o aluguel anterior, certamente não terá recursos para dar em depósito a garantia e, consequentemente, não conseguirá celebrar um novo contrato de locação.

Como consequência do que se disse, este locatário despejado, durante este período de grave crise, poderá ficar sem um teto para morar, o que, por certo, afronta inequivocamente um dos pilares do Estado Democrático de Direito, que é a dignidade da pessoa humana.

O mesmo se diga de um contrato de locação de imóvel para fins empresariais – comerciais e industriais. O despejo liminar, neste momento de grave dificuldade econômica e de recessão, inviabilizará toda e qualquer forma de manutenção e recuperação da empresa, levando à inequívoca violação ao princípio da preservação da empresa, insculpido no art. 47 da Lei nº 11.101/2005, que se funda na função social da empresa, entabulado no art. 170 da Constituição Federal, e que tem como fundamento o eminente caráter social das atividade econômicas e empresariais, fonte de circulação de riquezas, geração de empregos e de arrecadação de tributos.

Essas razões, por si só, já justificariam o não veto ao art. 9º da Lei nº 14.010/2020. Sem prejuízo, a questão que não quer calar, e que justificou o veto presidencial, é o interesse do locador. Em verdade, e diante da realidade do mercado, o despejo do locatário inadimplente não trará nenhum benefício ao locador. Isso porque, mesmo com a desocupação, dificilmente o proprietário logrará encontrar outro ocupante adimplente para o seu imóvel. A crise imobiliária já assolava o mercado, e agora se agravou ainda mais. Uma simples caminhada por bairros eminentemente comerciais comprova o cenário aterrorizante, com inúmeros negócios fechados, e não mais por conta de determinações impostas pelo Poder Público, mas pela insolvência.

Disso se infere que nenhuma inconstitucionalidade, ou mesmo interesse público, justificava o veto presidencial, o qual revelava, em verdade, um certo desconhecimento do mercado imobiliário e da situação hoje presente na maior parte do país.

De todas essas linhas é possível perceber que os vetos presidenciais à Lei nº 14.010/2020, se mostraram equivocados. Salvo raras exceções, como o explicitado art. 7º do RJET, andou mal o Poder Executivo em vetar dispositivos que, em verdade, atendiam o propósito de uma lei transitória e emergencial, que é o de estabilizar as relações, preservando a segurança jurídica. Por certo, muitos desses dispositivos podem levar a discordâncias dogmáticas, mas isso, por si só, não autoriza um veto. Este não pode se fundar em desavenças acerca de teses jurídicas. Ao Poder Legislativo incumbe, por distribuição constitucional de funções e poderes, fazer a escolha acerca do melhor regime jurídico a ser aplicável, só sendo admissível o veto por razões de inconstitucionalidade (veto jurídico) ou por razões de interesse público (veto político), o que não era o caso.

Conclui-se, pois, pela correção da atuação do Parlamento brasileiro quanto à derrubada dos vetos aos arts. 4º, 6º, 7º e 9º, da Lei nº 14.010/20, ainda que com a ressalva sobre a correta interpretação que deverá ser feita em relação ao caput do art. 7º, como defendido nesse texto. Oxalá possamos sair da pandemia sem muitos problemas nas relações jurídicas privadas, e o Congresso Nacional vem contribuindo decisivamente para tal desiderato, como se percebe na derrubada dos vetos presidenciais.

Crédito da imagem: Najara Araujo/Câmara dos Deputados

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