GENJURÍDICO
A interpretação econômico-jurídica da Constituição

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CONSTITUCIONAL

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ESTUDOS E COMENTÁRIOS

REVISTA FORENSE

Revista Forense – Volume 431 – Lacunas da Lei: a interpretação da lei à luz dos princípios constitucionais e de Direito, Maria Clara de Jesus Maniçoba Balduino e Wisllene Mª Nayane Pereira da Silva

BOBBIO

DIREITO CONSTITUCIONAL

INTERPRETAÇÃO DA LEI

LACUNAS DA LEI

ORDENAMENTO JURÍDICO

PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

REVISTA FORENSE

REVISTA FORENSE 431

TEORIA DO ORDENAMENTO JURÍDICO

Revista Forense

Revista Forense

12/08/2020

Revista Forense – Volume 431 – ANO 116
JANEIRO– JUNHO DE 2020
Semestral
ISSN 0102-8413

FUNDADA EM 1904
PUBLICAÇÃO NACIONAL DE DOUTRINA, JURISPRUDÊNCIA E LEGISLAÇÃO

FUNDADORES
Mendes Pimentel
Estevão Pinto
Edmundo Lins

DIRETORES
José Manoel de Arruda Alvim Netto – Livre-Docente e Doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Eduardo Arruda Alvim – Doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/FADISP

Abreviaturas e siglas usadas
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DOUTRINAS

A) DIREITO ADMINISTRATIVO

  • EXTINÇÃO DO ATO ADMINISTRATIVO: REVOGAÇÃO DO ATO REVOGADOR – ANA CRISTINA FECURI
  • A CADUCIDADE NAS CONCESSÕES RODOVIÁRIAS FEDERAIS: NATUREZA JURÍDICA, EFEITOS E PERSPECTIVA REGULATÓRIA – DIOGO UEHBE LIMA
  • DA INDENIZAÇÃO POR LUCROS CESSANTES EM DECORRÊNCIA DE RESCISÃO UNILATERAL DO CONTRATO ADMINISTRATIVO PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA – EDUARDO LEVIN
  • A REVOGAÇÃO DO ATO ADMINISTRATIVO À LUZ DA TEORIA DA PONDERAÇÃO – MARIA FLAVIA RONCEL DE OLIVEIRA
  • VINCULAÇÃO PRINCIPIOLÓGICA NA APLICAÇÃO DE SANÇÕES EM LICITAÇÕES E CONTRATOS ADMINISTRATIVOS: IMPRESCINDIBILIDADE DE TIPIFICAÇÃO DA CONDUTA IRREGULAR E A RESPECTIVA PENALIDADE – VLADIMIR DA ROCHA FRANÇA E VINÍCIUS AUGUSTO CIPRIANO M. DE SOUZA

B) DIREITO CIVIL

  • REVISÃO E RESOLUÇÃO CONTRATUAL E A PANDEMIA DA COVID-19 – JOSÉ AMÉRICO ZAMPAR E JULIANA CAROLINA FRUTUOSO BIZARRIA
  • É POSSÍVEL A INDENIZAÇÃO DE NATUREZA EXTRAPATRIMONIAL POR ABANDONO AFETIVO – MARCELO CHIAVASSA

C) DIREITO CONSTITUCIONAL

  • OS DEVERES FUNDAMENTAIS E A SUA PREVISÃO CONSTITUCIONAL – ISRAEL MARIA DOS SANTOS SEGUNDO
  • LACUNAS DA LEI: A INTERPRETAÇÃO DA LEI À LUZ DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E DE DIREITO – MARIA CLARA DE JESUS MANIÇOBA BALDUINO E WISLLENE Mª NAYANE PEREIRA DA SILVA
  • A IDENTIDADE DE GÊNERO COM UM ELEMENTO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO – PATRÍCIA PRIETO MOREIRA

D) DIREITO EMPRESARIAL

  • O PARADOXO DA “PRIVATIZAÇÃO TEMPORÁRIA” E OS DIREITOS DOS PREFERENCIALISTAS SEM DIREITO A VOTO NAS SOCIEDADES DE ECONOMIA MISTA ABERTAS NA FALTA DE PAGAMENTO DE DIVIDENDOS FIXOS OU MÍNIMOS  – BRUNO FREIXO NAGEM

E) DIREITO PENAL

  • A RECEPÇÃO CONSTITUCIONAL DAS DIRETRIZES MINIMALISTAS DO DIREITO PENAL: O CAMINHO DAS CIÊNCIAS PENAIS DO PONTO DE PARTIDA ONTOLÓGICO À CONSTRUÇÃO DE VALORES CONCRETOS – ALLAN ROVANI E EDSON VIEIRA DA SILVA
  • SEGURANÇA PÚBLICA COMO MISSÃO DO ESTADO – WILDE MAXSSUZIANE DA SILVA SOUZA E WALTER NUNES DA SILVA JÚNIOR

F) DIREITO PROCESSUAL CIVIL

  • RATIO DECIDENDI: O ELEMENTO VINCULANTE DO PRECEDENTE – CRISTINA MENEZES DA SILVA
  • NOÇÕES DO PROCESSO CIVIL ROMANO E A UTILIZAÇÃO DA AEQUITAS COMO FONTE DO DIREITO. UM FOCO NO PROCESSO FORMULÁRIO – MARCIO BELLOCCHI
  • COISAS JULGADAS ANTAGÔNICAS E COISAS JULGADAS CONTRADITÓRIAS: DUAS HIPÓTESES DISTINTAS DE CONFLITOS – MICHELLE RIS MOHRER

G) DIREITO TRIBUTÁRIO

  • A PRESCRIÇÃO PARA O REDIRECIONAMENTO DA EXECUÇÃO FISCAL: AS TESES FIXADAS PELO COLENDO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – SILVIO WANDERLEY DO NASCIMENTO LIMA

H) DIREITO PREVIDENCIÁRIO

  • REFORMA PREVIDENCIÁRIA BRASILEIRA: EIXOS CENTRAIS DA EMENDA CONSTITUCIONAL 103/2019 – MARCO AURÉLIO SERAU JÚNIOR

I) CADERNO DE DIREITO E INOVAÇÃO TECNOLÓGICA

  • O BLOCKCHAIN COMO INSTRUMENTO DE VALIDAÇÃO DE LEGITIMIDADE EXTRAORDINÁRIA DE ASSOCIAÇÕES – JOÃO MARCOS DE ALMEIDA SENNA
  • ESTUDO COMPARATIVO ENTRE A TRAJETÓRIA ECONÔMICA DA COREIA DO SUL E DO BRASIL, À LUZ DAS POLÍTICAS DE INOVAÇÃO – MIGUEL HENRIQUES DUARTE VIEIRA E THIAGO HENRIQUE TRENTINI PENNA
  • REGIMES DE RESPONSABILIDADE CIVIL NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR (“CDC”) E NA LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS (“LGPD”)  – LUCAS PINTO SIMÃO E PRISCILLA MARTINS DE FREITAS ALMEIDA COSTA

Resumo: Os efeitos causados na seara jurídica em decorrência de “Lacunas da Lei” não são temas tão recentes, mas que até os dias hodiernos causam bastante repercussão na inferência prática na atuação concreta do aplicador do direito. Trata-se de tema complexo que lida com aspecto delicado do direito e da teoria da argumentação jurídica, haja vista que a identificação de “lacunas” ou omissões no ordenamento jurídico não pode e não deve ser ignorada, diante do princípio da inafastabilidade da jurisdição, o qual determina que o caso concreto não deixa de ser apreciado. Em contrapartida, a atividade hermenêutica na aplicação do direito pelo julgador pode ser perigosa a partir do momento em que este se distancia da análise do caso a partir dos princípios constitucionais, culminando em uma discricionariedade exacerbada na concretização de suas decisões. Por esse motivo, é necessário compreender essas lacunas e como elas podem vir a ser elididas dentro de uma análise dos princípios constitucionais e de direito. O estudo utiliza como procedimentos metodológicos a pesquisa exploratória e bibliográfica, com consulta a meio impresso e eletrônico. A pesquisa é do tipo qualitativa, a qual visa analisar o aspecto subjetivo do tema, buscando investigá-lo sob um olhar mais crítico. Conclui-se que a tarefa do aplicador do direito consiste em de fato fornecer resposta às lides que se conjecturem mesmo em um estado de omissão no ordenamento jurídico; no entanto, atentando-se aos ditames constitucionais que lhe fornecerão parâmetros para abalizamento da interpretação do caso.

Palavras-Chave: Lacunas da lei. Interpretação da lei. Princípios Constitucionais.

Abstract: The effects caused by the legal tide as a result of “Gaps in the Law” do not deal with the most recent topic, but which until today have caused a lot of repercussions in the practical interference in the concrete performance of the right investor. It is a complex issue that deals with a delicate aspect of law and the theory of legal argumentation, given that the identification of “gaps” or omissions in the legal system cannot and should not be ignored, before the principle of non-impossibility of jurisdiction, or which determines which specific case is not to be heard. On the other hand, a hermeneutical activity of applying the res judicata, can be dangerous from the moment that it distances the analysis of the case from constitutional principles, culminating in an exacerbated discrepancy in the concretization of its decisions. For this reason, it is necessary to understand these gaps and how they can be resolved within an analysis of constitutional and legal principles. The study uses exploratory and bibliographic research as methodological procedures, with consultation to the printed and electronic media. A research is of the qualitative type, a qualified visa to analyze the subjective aspect of the theme, seeking research under a more critical aspect. Conclude if a task of the enforcer of the law consists in providing the answers to the questions that apply even in a state of omission in the legal system, however, paying attention to the constitutional names that use the method of authorizing the interpretation of the case.

Keywords: Gaps of the law. Interpretation of the law. Constitutional principles.

Sumário: 1. Introdução; 2. A evolução do pensamento jurisfilosófico sobre a existência de “lacunas” no ordenamento jurídico; 3. Colmatando as lacunas à luz dos princípios constitucionais e de Direito; 4. Concretização da norma a partir da interpretação; 5. Analisando lacunas em casos concretos a partir da teoria da norma jurídica de Bobbio; 6. Conclusão; 7. Referências.

1 INTRODUÇÃO

O conhecimento acerca das “lacunas” no âmbito do ordenamento jurídico se constitui como um tópico de bastante relevo na esfera do mundo jurídico, bem como uma importante ferramenta para a compreensão e melhor interpretação de casos concretos que exijam um maior cuidado de teor analítico.

É necessária a compreensão do tema tendo em vista a celeuma que “as lacunas da lei” provocam hodiernamente ao aplicador do direito em sua atividade judicante, permitindo, por vezes, uma atuação eivada de vícios e excessos permeados por discricionariedade exacerbada que culmine em “soluções” inadequadas ou não razoáveis ao caso concreto.

Na era positivista, o Estado Legislativo continha um apego à literalidade das leis, baseado em uma ideia de “segurança jurídica”, o que significava, de certo modo, um avanço em relação ao “Ancièn Régime”. Para o pensamento positivista, não existiriam lacunas no ordenamento, havia uma ideia de completude da ordem jurídica, na qual, em tese, a lei regularia todo e qualquer caso ou circunstância que carecesse de solução legal.

Essa ideia de completude estava ligada ainda a duas premissas importantes: o “espaço jurídico vazio”, que dizia respeito a parte da vida social que recaía sobre a esfera do juridicamente irrelevante; logo, não haveria que se falar em lacuna do direito, e a segunda premissa é a da “norma geral exclusiva”, que, em suma, traduz a concepção de que as ações humanas não regulamentadas são implicitamente admitidas e aceitas pela ordem jurídica[1].

Houve, no entanto, um declínio do paradigma positivista, trazendo o reconhecimento da incompletude do ordenamento jurídico, quando se percebeu que a vida humana apresenta imbróglios infindos, os quais não conseguem ser absolutamente regulados em documentos legais. Nesse caso, a tarefa do hermeneuta é perquirir a integração do direito, colmatando as lacunas da ordem jurídica mediante a busca por outras fontes do direito, tais como os princípios gerais de direito e as disposições constitucionais.

Nesse ínterim, o objetivo do presente trabalho é entender a existência das lacunas a partir de sua compreensão dentro do ordenamento jurídico como um todo, comparando-a à ideia de “completude do sistema”. A partir daí, verificada sua existência, buscar-se-á como objetivos específicos, vislumbrar a colmatação dessas lacunas a partir da interpretação do caso à luz dos princípios constitucionais e de direito. Por fim, a partir de uma análise jurisprudencial, serão apresentados casos específicos de “lacunas da lei” e como estas se classificam dentro da nomenclatura de Norberto Bobbio, buscando-se ainda a melhor possibilidade de sua colmatação.

2 A EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO JURISFILOSÓFICO SOBRE A EXISTÊNCIA DE “LACUNAS” NO ORDENAMENTO JURÍDICO

Para melhor compreensão das lacunas do direito, é necessária sua compreensão dentro da esfera do ordenamento como um todo. Norberto Bobbio[2] ressalta o aspecto de completude que originalmente se atribui ao ordenamento jurídico, isto é, a capacidade de poder sempre encontrar nesse ordenamento todas as respostas capazes de fornecer guarida solucionaria qualquer caso concreto que porventura surja, atentando também para a questão da unidade e coerência. A completude, segundo Bobbio,[3] é um aspecto essencial em ordenamentos, em que o juiz não pode se eximir de julgar nenhum dos casos que se apresentem a ele, bem como precisa se basear numa norma pertencente ao ordenamento para julgar o caso em questão.

Kelsen, principal expoente do período positivista, acreditava na “plenitude hermética do direito”, de forma que a celeuma das lacunas no direito estaria resoluto pela norma geral de que “tudo que não está juridicamente proibido, está permitido”. Dessa forma, o sistema teria uma resposta para todas as situações contextuais da vida humana, de modo que qualquer lacuna seria apenas “aparente”, em face de um sistema que representa uma unidade acabada e perfeita.

Quando o Direito é aplicado por um órgão jurídico, este necessita fixar o sentido das normas que vai aplicar, tem de interpretar estas normas. A interpretação é, portanto, uma operação mental que acompanha o processo da aplicação do direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior. Na hipótese em que geralmente se pensa quando se fala de interpretação, na hipótese da interpretação da lei, deve responder-se à questão de saber qual o conteúdo que se há de dar à norma individual de uma sentença judicial ou de uma resolução administrativa, norma essa a deduzir da norma geral da lei na sua aplicação a um caso concreto[4].

Ao aplicar uma norma, portanto, na concepção de Kelsen, seria necessária a fixação anterior do sentido dessas normas. Cabe ressaltar que a interpretação das normas, em sua concepção de uma teoria “pura”, encontram sempre um pressuposto de validade em uma norma superior, sendo a maior delas a norma hipotética fundamental, ou a Grundnorm, razão pela qual resvala a ideia da completude do ordenamento, tendo em vista que este constituiria um sistema fechado e sincrônico.

O período positivista guardava ainda muito apego à literalidade das leis, reflexo do que pregava Montesquieu em sua obra O espírito das leis, em que “os juízes da nação, como dissemos, são apenas a boca que pronuncia as palavras da lei, seres inanimados, que não podem moderar nem a força nem o rigor”[5].

Ao ver dos tradicionalistas, a ideia de “juízes criando regras casualmente” geraria o caos, quebraria o princípio da legalidade, pois daria espaço para o arbítrio e a “anarquia”, de forma que a completude não se trata de um simples aspecto, mas uma condição necessária para se manter a justiça, algo que os doutrinadores atuais chamariam de “segurança jurídica”.[6]

No entanto, e quando o caso exige uma reparação imediata? Ou mesmo quando a autoridade competente, no caso o Poder Legislativo, não cumpre seu papel em tempo hábil? A Constituição Federal elenca em seu art. 5º, inciso XXXV, o princípio da inafastabilidade da jurisdição, de onde vem exposto que: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Dessa forma, o juiz não poderá deixar de apreciar o caso concreto diante de uma lacuna normativa, colmatando as elipses a partir de uma interpretação integrante dos princípios constitucionais.

Nossa Carta Magna traz uma espécie de instrumento jurídico que permite acionar o legislativo quando verificada omissão na lei – é a chamada ação direta de inconstitucionalidade por omissão, exposta no art. 103, § 2º, a qual aduz que declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, o Poder Público será cientificado para que adote as providências necessárias.

A completude do sistema constitui-se como um aspecto bastante abstruso, haja vista a enorme dificuldade de se criar um ordenamento que possa abranger todos os casos possíveis e imagináveis que se apresentem. Com esse pensamento, surgiram aqueles que defendiam a escola do “direito livre”, como Ehrlich, que criticavam a questão do “dogma da completude do sistema”, acreditando que no direito constituído há sim lacunas e que para inteirá-las é preciso confiar no poder criativo do juiz para resolver os “infinitos” casos que se apresentam por razão das relações sociais que transcendem o ordenamento[7].

Pensamento parecido tinha Karl Larenz, importante professor, jurista e filósofo do direito alemão que lecionou até 1960 na Universidade de Munique, que prelecionava que “toda lei contém inevitavelmente lacunas, razão pela qual se reconheceu de há muito a competência dos tribunais para colmatar as lacunas da lei”[8].

Uma das principais causas do crescente interesse na argumentação legal é mudança na compreensão dos papéis atribuídos ao legislador e juiz. No século XIX, a opinião predominante sobre o papel dos advogados repousava na doutrina de Montesquieu sobre a separação de Poderes. A função do legislativo consistia na formulação de leis claras e precisas, enquanto os tribunais deveriam aplicar as regras em seu sentido literal nos casos concretos. No século XX, como prevaleceu a opinião de que é impossível conceber todos os casos futuros ou prever mudanças nas relações sociais e atitudes morais, a teoria da separação estrita dos Poderes Legislativo e Judicial foi revolucionada. A tarefa do legislador canalizou-se na formulação de uma norma geral, na qual, em hard cases, os juízes deverão escolher e justificar essa escolha[9].

A ideia de completude, conforme explica Bobbio, encontra-se ligada a duas premissas importantes, a “norma geral exclusiva” e o “espaço jurídico vazio”. A “norma geral exclusiva” consistia em pensamento que criticava a concepção da escola de direito livre, em que, mesmo que não houvesse regulamentação por parte da norma específica, se poderia aplicar a geral:

Todos os comportamentos não compreendidos na norma particular são regulados por uma norma geral exclusiva, isto é, pela regra que exclui (por isso é exclusiva) todos os comportamentos (por isso é geral) que não sejam aqueles previstos pela norma particular. Poder-se-ia dizer, também, que as normas nunca nascem sozinhas, mas aos pares: cada norma particular, que poderemos chamar de inclusiva, está acompanhada, como se fosse por sua própria sombra, pela norma geral exclusiva[10].

Nessa concepção, em suma, defendiam-se que as ações humanas não reguladas tratavam-se implicitamente de ações permitidas e aceitas pela ordem jurídica.

Além da norma geral exclusiva, há a inclusiva, em que, em caso de “lacunas”, se deve recorrer a normas que regulam casos semelhantes. O que Bobbio salienta é a existência de uma lacuna no momento em que não existe um critério definido para a escolha de quais regras devem ser aplicadas, a exclusiva ou a inclusiva.

[…] as soluções jurídicas possíveis são duas e falta um critério para aplicar ao caso concreto uma em vez da outra, reencontramos aqui a lacuna que a teoria havia acreditado poder eliminar: lacuna não a respeito do caso singular, mas a respeito do critério com base no qual o caso deve ser resolvido[11].

Por isso, para Bobbio[12], um ordenamento, apesar da norma geral exclusiva, ainda sim pode ser incompleto. Dessa forma, devemos estar atentos para a constante contemporaneização do sistema que envolve o ordenamento jurídico, haja vista as novas necessidades que as relações sociais ensejam no âmbito das normas, pois vivemos em constante transformação, em constante movimento, e o ordenamento jurídico deve levar em conta as mudanças da sociedade.

3 COLMATANDO AS LACUNAS À LUZ DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E DE DIREITO

Conforme destacado, o aplicador da lei não poderá deixar de apreciar o caso que lhe é apresentado, em alegação à falha ou à omissão da lei. E como deverá ele, portanto, apreciar a lide?

Conforme preleciona Souza, a lacuna legislativa é uma “fatalidade” , que pode ocorrer pela deficiência na técnica legislativa, na omissão da formulação de normas paradigmáticas para os casos concretos. Essa omissão, no entanto, pode ocorrer propositalmente na intenção de não regular a matéria, por imprevisibilidade das lides que possam vir a surgir. Entretanto, qualquer que seja a razão de sua existência, verificada a lacuna no ordenamento, é necessário que seja suprida para que se possa resolver o caso concreto[13].

O autor aponta que as Constituições atuais e democráticas, surgem exatamente como norma suprema nos ordenamentos jurídicos internos capazes de conformar todo o sistema normativo conforme seus princípios e orientações, amparada pela legitimidade outorgada pelo prestígio popular, “elas são dotadas de normatividade e determinam ao legislador a obrigação de regular determinadas matérias por lei”[14].

Do mesmo modo que o aplicador da lei em sua atividade judicante tem a obrigação de julgar qualquer caso pelo princípio da inafastabilidade da jurisdição, o legislador deve prover ao aplicador do direito e à sociedade em geral as leis que regulem matérias determinadas pela Constituição.

Como modelo de direito, o constitucionalismo garantista se caracteriza por uma positivação dos princípios e uma espécie de vínculo determinante para as Constituições rígidas e os quais devem ser garantidos pelo controle jurisdicional de constitucionalidade:

[…] de limites impostos para a garantia do princípio da igualdade e dos direitos de liberdade, cujas violações por comissão dão lugar a antinomias, isto é, a leis inválidas que devem ser anuladas através a jurisdição constitucional; de vínculos impostos, essencialmente, para garantia dos direitos sociais, cujos descumprimentos por omissão resultam em lacunas que exigem o preenchimento mediante a intervenção legislativa[15].

Alguns doutrinadores apontam ainda que quando o juiz aplica o direito ele também cria o direito, de modo que essa discricionariedade deve ser observada de forma cautelosa, não se desgarrando dos limites e parâmetros constitucionais,

Nesse sentido, Josep Aguiló Regla expõe que:

Naturalmente, há técnicas utilizáveis para preencher as lacunas (as ausências de regulação), mas todas entram no âmbito da discricionariedade de quem tem de resolver o caso – isto é, o aplicador. Porém, a discricionariedade é concebida fundamentalmente como liberdade do aplicador, ou seja, como se a ele fosse “permitido” escolher quaisquer opiniões possíveis. Nesse sentido, as decisões discricionárias estão mais próximas à criação (são mais uma questão de vontade e de preferências) do que à aplicação de normas (conhecimento e subsunção). Isso é assim porque entre as normas de um sistema jurídico só há – como já se disse – relações de tipo lógico[16].

Tercio Ferraz também ao tratar sobre a Função Social da Dogmática Jurídica fala sobre “o alargamento do campo da positividade do direito”, apontando que o conceito de lacuna alarga o campo da positividade, tendo em vista que se trata de “uma construção da dogmática jurídica imanente ao direito positivado, que tanto assegura a eventuais critérios transcendentes uma coloração positivante, quanto dá força à argumentação do intérprete”[17].

Ele aponta, contudo, que a ação discricionária do intérprete não deve ser permanente e que a lacuna só será efetivamente elidida mediante seu preenchimento pelo poder competente, isto é, o preenchimento não suprime a lacuna em si, que continua a subsistir e a ser passível de constatação até que um dispositivo legitimado de fato a elida[18].

Importante destacar crítica doutrinaria feita pelo renomado jurista Paulo Bonavides acerca dos princípios juspositivistas[19], que ocorre quando os princípios entram nos Códigos, porém, como fontes normativas subsidiárias, funcionando como uma espécie de escape, válvula de segurança, isto é, servindo para preencher lacunas deixadas pela lei. Bonavides aponta que o juspositivismo atribui caráter programático supralegal aos princípios, de forma que inclina o pensamento da aplicação desses princípios sob um viés de carência de normatividade, haja vista que os princípios são aqui tratados como fontes normativas subsidiárias, estabelecendo, assim, sua irrelevância jurídica.

Totalmente ultrapassado esse entendimento, hoje é assentado que os princípios surgem como um amálgama do ordenamento jurídico, permitindo interpretar a norma posta ou preencher a omissão legal, por meio de uma interpretação à luz da essência integradora do princípio. Nesse ponto, Marcelo Neves indica duas formas de integração pelos princípios: a heterointegração e a autointegração[20].

Em suma, uma tese, a da heterointegração, defende que os princípios encontram-se num plano suprapositivo e que as demais normas devem ser interpretadas à sua luz. A outra tese, da autointegração, defende que os princípios encontram-se inseridos dentro do ordenamento jurídico como um todo, assim como as demais regras, e que deve haver uma tarefa hermenêutica a fim de uni-los ao direito posto.

4 CONCRETIZAÇÃO DA NORMA A PARTIR DA INTERPRETAÇÃO

Como vimos, a tarefa do intérprete do direito não se resume à pura aplicação dos regramentos legais, subsumindo o caso à moldura legal que o regule, inclusive, por vezes, há espaços não regulados que necessitam ser preenchidos, momento em que se recorre aos princípios gerais do direito.

Nesse ínterim, Eros Grau defende a ideia de “caráter alográfico do direito”, isto é, a ideia de que o texto normativo não se completa no sentido nele impresso pelo legislador. Assim, seu sentido de fato somente se completa a partir do exercício da interpretação realizado pelo aplicador do direito[21]. Esse também é o entendimento trazido pelos professores Jorge Miranda, o qual preleciona que “não é possível aplicação sem interpretação, tal como esta só faz pleno sentido posta ao serviço da aplicação”[22] e Paulo Bonavides, que aduz que “não há norma jurídica que dispense interpretação”[23].

A visão trazida pelo autor dialoga diretamente com o método hermenêutico-concretizador trazido por Friederich Muller, inclusive citado ao tratar da criação/construção da norma pelo aplicador do direito: “o fato e? que a norma e? construída pelo intérprete no decorrer do processo de concretização do direito. O texto, preceito jurídico, e?, como diz Friedrich Muller, matéria que precisa ser trabalhada”[24].

Para Friederich Müller, a concretização só se alcança com a norma de decisão, ou seja, a norma é constituída a partir do programa da norma (texto legal) e o âmbito normativo (contexto real em que incide a norma), de modo que “norma” e “texto normativo” não se confundem. Basicamente, “se, em termos da teoria da norma, o âmbito normativo é parte integrante da norma, então a norma não pode ser colocada no mesmo patamar do texto normativo”[25].

Nesse sentido, vale dizer, que somente após o processo de concretização é que de fato atinge-se a norma aplicável ao caso. Essa é inclusive a principal crítica de Müller à Teoria Pura do Direito de Kelsen, que, para ele, coloca a norma e o texto normativo no mesmo patamar. Nesse ponto, com base em um mesmo texto normativo, as interpretações possíveis poderiam ser “logicamente” equiparadas e somente se chegaria a uma determinada solução por meio de uma decisão metajurídica do órgão aplicador da norma[26].

Um outro método de interpretação hermenêutica que encontra pontos de convergência com o método hermenêutico-concretizador de Müller é o método concretizador da Constituição, defendido por Konrad Hesse, em sua obra Escritos de Derecho Constitucional. Hesse confere primazia ao texto constitucional, ressaltando que “a interpretação da Constituição deve considerar tanto o texto constitucional quanto a realidade em que a norma incide. Ademais, a importância da interpretação é fundamental porque, dada a natureza aberta e ampla da Constituição, os problemas de interpretação surgem com mais frequência do que outros setores do sistema legal cujas regras são mais detalhadas”[27].

Hesse trata ainda, em sua obra A força normativa da Constituição, da existência de uma Constituição Jurídica e outra real, determinada a partir dos fatores reais do poder. O autor tece algumas críticas à obra A Essência da Constituição, de Ferdinand Lassalle, para construir seu raciocínio e desenvolver sua tese, apresentando ao longo do texto alguns contrapontos acerca do conceito de “Constituição real” como absoluta, acima da Constituição escrita (defendida por Lassalle).

Logo no início de sua obra, Hesse confronta Lassalle, que, segundo sua tese fundamental, “questões constitucionais não são questões jurídicas, mas sim questões políticas”[28], e isso se justifica no fato de que a Constituição de um país se baseia nas relações de poder nele dominantes. As relações fáticas provenientes da relação entre os fatores reais do poder funcionam como uma espécie de “força ativa” que determina as leis tal como elas são. Essa é a Constituição real do país.

O autor critica ainda a visão de Lassalle de que a Constituição Jurídica não passa de um pedaço de papel, limitando a compatibilidade com a Constituição Real, pois, caso a contrarie, haverá um conflito que acarretará no sucumbimento desta “Constituição de papel” ante os fatores reais do poder.

Para Hesse, portanto, a “Constituição real’ e “Constituição jurídica” estariam na verdade em uma relação de coordenação. Isso significa que elas se condicionam mutuamente, em uma relação de reciprocidade, mas não dependem pura e simplesmente uma da outra, “ainda que não de forma absoluta, a Constituição jurídica tem significado próprio. Sua pretensão de eficácia apresenta-se como elemento autônomo no campo de forças do qual resulta a realidade do Estado”[29]. A força normativa é adquirida exatamente na medida em que se busca realizar essa eficácia.

Por fim, a compreensão das possibilidades e os limites da Constituição jurídica só podem resultar da sua relação com a realidade, pois é a partir dela que se pode analisar a pretensão da eficácia das normas. Interpretar e colmatar as lacunas legislativas é tarefa árdua ao aplicador do direito, que deverá respeitar os limites impostos pela Constituição que rege o quadro normativo geral do ordenamento interno.

5 ANALISANDO LACUNAS EM CASOS CONCRETOS A PARTIR DA TEORIA DA NORMA JURÍDICA DE BOBBIO

Na base de incansáveis ??esforços para explicar a natureza da lei e a interpretação das normas em casos de obscuridade do legislador reside a questão de como os juízes devem decidir os casos. Daí surge a necessidade de uma análise perfunctória do papel dos tribunais e como ocorre a atuação do Judiciário na prática desses julgamentos. A história da teoria jurídica está repleta de várias tentativas de oferecer uma resposta geralmente aceitável à questão levantada.

O fervor do debate e a insatisfação perpétua com as soluções oferecidas instigou o pensamento da arbitrariedade indomável dos juízes. No debate contemporâneo, o significado da argumentação é particularmente enfatizado como um elo do processo judicial que fornece razoabilidade e, com isso, justificativa e motivação da decisão.

Neste tópico, analisaremos a partir de casos concretos a divisão das lacunas da lei apresentadas por Bobbio em sua obra Teoria do Ordenamento Jurídico:

Habeas corpus substitutivo de recurso especial. Não cabimento.Ressalva do entendimento pessoal da relatora. Tráfico ilícito de drogas e roubo circunstanciado. Alegada deficiência de defesa técnica. Anulação do processo. Impossibilidade. Súmula n.º 523/STF.Rito da Lei n.º 11.343/2006. Lex specialis que se sobrepõe, em termos hermenêuticos, ao procedimento ordinário previsto no Código de Processo Penal. Inquirição do réu ao fim da audiência de instrução e julgamento. Inversão que, no caso, não acarretou nenhum prejuízo à defesa. Pas de nullité sans grief. Dosimetria da pena.Existência de flagrante ilegalidade na valoração das circunstâncias judiciais. Readequação da pena. Habeas corpus não conhecido. Ordem parcialmente concedida, de ofício.[…] Não se ignora que a Lei n.º 11.343/2006 prevê procedimento especial a ser seguido nas ações penais instauradas para a persecução do crime de tráfico ilícito de drogas, estabelecendo, entre outras coisas, que, na audiência de instrução, o interrogatório do acusado deve preceder as demais inquirições. Sem dúvida, por se tratar de lex specialis, sua aplicação é mister quando em confronto com o rito ordinário previsto no Código de Processo Penal, já que as regras da lex generalis só se aplicam subsidiariamente à legislação específica, caso nesta existam lacunas.[…] 7. Não bastasse, além de o vício processual estar nitidamente precluso, uma vez que não foi alegado durante a audiência em que teria ocorrido – e, posteriormente, em nenhuma outra peça processual –, o fato é que, no caso concreto, em que há conexão entre os crimes de tráfico de drogas e de roubo, a fidelidade ao rito comum ordinário constituiu ato até mesmo mais benéfico ao acusado, nomeadamente porque a alteração promovida pela Lei n.º 11.719/2008 no art. 400 do Código de Processo Penal, posicionando o interrogatório do réu no final da instrução, objetivou justamente otimizar o princípio da ampla defesa. 8.Excetuados os casos de patente ilegalidade ou abuso de poder, é vedado, em habeas corpus, o amplo reexame das circunstâncias judiciais consideradas para a individualização da sanção penal, por demandar a análise de matéria fático-probatória (STJ. HC 234.942/PB, Rel. Min. Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 06.02.2014, DJe 26.02.2014).

Nesse processo, a ministra Laurita Vaz refere-se a um tipo de lacuna denominada por Bobbio[30] de “própria” ou “real”, que se origina de dentro do sistema, a partir do direito estabelecido, aludindo-se ao caso em que não há uma norma, uma regra, um termo regulatório que o solucione de forma satisfatória. No episódio em questão, a ministra cita a Lei n.º 11.343/2006 (que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências), a qual se trata de lei especial, que deve ser aplicada em face da “lei geral”.

O rito ordinário do Código de Processo Penal, quando trata de crimes ligados ao. Porém, em certos casos, há alguns pontos que a lei especial não suporta, devendo-se recorrer a meio legítimo de colmatação da lacuna estabelecida.

As lacunas próprias, como coloca Bobbio[31], podem ser eliminadas a partir das próprias leis vigentes, podendo ser completadas por obra do intérprete (poder-se-ia falar em aplicar a analogia quando cabível, princípios gerais ou até mesmo comparar jurisprudências). No caso em questão, a Ministra aponta a aplicação da lei geral nos episódios em que existam lacunas na lei específica.

A seguir, veremos um tipo de lacuna que Bobbio denominaria como imprópria, que ocorre quando há uma insatisfação com o sistema, surgindo de uma comparação do sistema real com o sistema ideal:

Agravo regimental. Agravo em recurso especial. Processual civil e direito do consumidor. Plano de saúde. Mensalidades. Reajuste em razão de faixa etária. Vedação. Art. 535 do CPC. Inexistência de omissão, obscuridade ou contradição. Prescrição. Código de Defesa do Consumidor. Incidência.

  1. Não há que se falar em violação ao art. 535 do CPC, por omissão do acórdão recorrido, quando houve análise das matérias relevantes à lide e sobre elas o julgador emitiu pronunciamento, ainda que desconformidade com a vontade do recorrente.
  2. “Frente à lacuna existente, tanto na Lei 7.347/1985, quanto no CDC, no que concerne ao prazo prescricional aplicável em hipóteses em que se discute a abusividade de cláusula contratual, e, considerando-se a subsidiariedade do CC às relações de consumo, deve-se aplicar, na espécie, o prazo prescricional de 10 (dez) anos disposto no art. 205 do CC” (REsp 995.995/DF, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe 16.11.2010).
  3. Quando o entendimento adotado pelo e. Tribunal de origem estiver em conformidade com a jurisprudência aqui sedimentada, incide, no caso, o óbice contido na Súmula 83 do STJ, que determina a pronta rejeição dos recursos a ele dirigidos, entendimento aplicável também aos recursos especiais fundados na alínea do permissivo constitucional.
  4. A parte agravante não trouxe, nas razões do agravo regimental, argumentos novos, aptos a modificar a decisão agravada, que deve ser mantida por seus próprios e jurídicos fundamentos.
  5. Agravo regimental não provido, com aplicação de multa (STJ. AgRg no AREsp 507.874/RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 24.06.2014, DJe 01.08.2014).

No caso em questão, como não existe uma lei específica que trate sobre a prescrição quando se discute a abusividade de cláusula contratual (ligada majoritariamente à relações de consumo), na Lei 7.347/1985 (que disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico e dá outras providências) tampouco no Código de Defesa do Consumidor, entendeu-se pela aplicação do art. 205 do Código Civil, que trata dos casos em geral, em que não há um tempo de prescrição determinado.

O caso não regulamentado não implica automaticamente uma lacuna do sistema, porque englobada em uma norma geral exclusiva, mas, quando muito, é uma lacuna que diz respeito a como deveria ser o sistema. “Num sistema em que cada caso não regulamentado faz parte da norma geral exclusiva […] não pode haver outra coisa além de lacunas impróprias”[32].

O caso em questão, apesar de não trazer o termo “lacuna” em si, trata de um tema bastante polêmico, haja vista a inexistência de previsão legal que incidia sobre o fato, o que acabou por revelar uma lacuna no âmbito do ordenamento, uma ausência de normas para regular casos como esse. Trata-se de um típico caso “à frente das normas”, isto é, tema que se propõe a partir da evolução da vida humana e que era inimaginável à época em que foram criadas as normas:

Estado – Laicidade. O Brasil é uma república laica, surgindo absolutamente neutro quanto às religiões. Considerações. Feto anencéfalo – Interrupção da gravidez – Mulher – Liberdade sexual e reprodutiva – Saúde – Dignidade – Autodeterminação – Direitos fundamentais – Crime – Inexistência. Mostra-se inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal (ADPF 54, Relator Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 12.04.2012, DJe divulg. 29.04.2013, public. 30.04.2013).

Essa é uma lacuna que Bobbio[33] denominaria de “lacuna objetiva”, isto é, ela é alheia à vontade do legislador, haja vista que “dependem do desenvolvimento das relações sociais, das novas invenções, de todas aquelas causas que provocam um envelhecimento dos textos legislativos […]”. No caso em relevo, às tecnologias antigas não conseguiam detectar o feto anencefálico ainda no útero da mãe, o que só foi possível com o desenvolvimento das tecnologias integradas ao avanço da medicina. Dessa forma, estamos diante de um episódio proveniente de uma novidade tecnológica, os exames que hoje tornam possível a determinação da ocorrência de anencefalia ou não nos fetos, quando ainda se encontram no útero da genitora.

6CONCLUSÃO

A partir do trabalho exposto, depreendemos que, para a compreensão da existência das “lacunas da lei”, é necessário analisar o ordenamento jurídico como um todo, a partir de sua ideia de “completude”. Obviamente, é impossível a norma abranger todos os casos possíveis que a vida real venha a lhe impor, no entanto, a lacuna normativa não pode ser alçada como justificativa para que o caso deixe de ser apreciado.

Dessa forma, cabe ao intérprete da lei, à luz dos princípios constitucionais e de direito, colmatar as lacunas da lei, a partir de uma discricionariedade ponderada que permita a “criação da lei” dentro dos limites constitucionais e dos princípios gerais do direito.

Por fim, a partir da análise jurisprudencial, verificamos a existência prática de lacunas na classificação de Norberto Bobbio, as lacunas próprias (elididas a partir da lei vigente, com a aplicação da lei geral nos episódios em que hajam lacunas na lei específica), as lacunas impróprias (insatisfação com o sistema, surgindo de uma comparação do sistema real com o sistema ideal), e a lacuna objetiva (alheia à vontade do legislador, a qual depende do desenvolvimento das relações sociais que provocam o “envelhecimento do texto legislativo”).

Conclui-se que a existência de omissões legislativas no ordenamento jurídico é algo recorrente, diante dos avanços da vida humana e do desenvolvimento de novas tecnologias, o que impõe que o direito esteja em constante evolução. Desse modo, a interpretação das normas é tarefa árdua aos aplicadores do direito, que exige o exercício intelectual constante na conformação das soluções oferecidas ao caso concreto em relação aos ditames constitucionais.

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[1]BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.6. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1995. Cap. 4. p. 128.

[2] BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.6. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1995. Cap. 4. p. 115.

[3] BOBBIO, Norberto. Op. cit., p. 118.

[4] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 245.

[5] MONTESQUIEU. De L’esprit des lois. Paris: Dalibon Libraire, 1817, p. 22. Tome Troisie?me.

[6] BOBBIO, Norberto. Op. cit., p. 128.

[7] BOBBIO, Norberto. Op. cit., p. 123.

[8] LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. p. 519-520.

[9] MARKOVIC, Milos. The inextricable entanglement of argumentation and interpretation in law. Filozofija I Drustvo, v. 28, n. 4, p. 1.087-1.101, [s.l.], 2017. National Library of Serbia. p. 1.093.

[10] BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.6. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1995. Cap. 4. p. 132-133.

[11] BOBBIO, Norberto. Op. cit., p. 137-138.

[12] BOBBIO, Norberto. Op. cit., p. 139.

[13] SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O direito constitucional e as lacunas da lei. Revista de informação legislativa, v. 34, n. 133, p. 5-16, jan./mar. 1997. p. 5-7.

[14] SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Op. cit., p. 7-9.

[15] FERRAJOLI, Luigi. Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo. Um debate com Luigi Ferrajolli. Alexandre Morais da Rosa (coord.). Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2012, p. 24.

[16] REGLA, Josep Aguiló. Do império da lei ao estado constitucional. Dois paradigmas jurídicos em poucas palavras. In: RIBEIRO, Eduardo (coord.). Argumentação e estado constitucional. São Paulo: Ícone, 2012. p. 25.

[17] FERRAZ JR., Tercio Sampaio. FUNÇÃO social da dogmática jurídica.São Paulo: Max Limonad, 1998. p. 153.

[18] FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Op. cit., p. 153-154.

[19] BONAVIDES, Paulo. Dos princípios gerais de direito aos princípios constitucionais. In: ______. Curso de direito constitucional.28. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2013. Cap. 8. p. 264-306.

[20] NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014. p. 22.

[21] GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 23.

[22] MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 258. t II.

[23] BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 398.

[24] GRAU, Eros Roberto. Op. cit., p. 25.

[25] MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. São Paulo: RT, 2008. p. 192.

[26] MÜLLER, Friedrich. Op. cit., p. 193-194.

[27] HESSE, Konrad. Escritos de derecho constitucional (selección). Madrid: Centro de Estudios Constitucionalales, 1983, p. 36.

[28] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1991, p. 9.

[29] HESSE, Konrad. Op. cit., p. 15.

[30] BOBBIO, Norberto. Op. cit., p. 143.

[31] BOBBIO, Norberto. Op. cit., p. 144.

[32] BOBBIO, Norberto. Op. cit., p. 144.

[33] BOBBIO, Norberto. Op. cit., p. 144.


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