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O Direito Civil em 2019: uma breve retrospectiva

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O Direito Civil em 2019: uma breve retrospectiva

2019

DIREITO CIVIL

DIREITO CIVIL EM 2019

LEI 13.811/2019

LEI DA LIBERDADE ECONÔMICA

RESPONSABILIDADE CIVIL

RETROSPECTIVA

RETROSPECTIVA 2019

Anderson Schreiber

Anderson Schreiber

02/01/2020

O ano de 2019 foi agitado para o Direito Civil. No campo legislativo, a promulgação da Lei 13.874/2019 (a chamada Lei da Liberdade Econômica) – fruto da conversão da Medida Provisória 881, apresentada pelo Governo Federal como uma tentativa de superação da estagnação econômica e das altas taxas de desemprego – trouxe alterações ao texto do Código Civil, algumas de utilidade inquestionável como o maior detalhamento das noções de “confusão patrimonial” e “desvio de finalidade” no artigo 50 da codificação; outras de caráter inútil ou até perigoso, como a introdução de uma referência à “racionalidade econômica” como critério de interpretação dos contratos no artigo 113, §1º, V – expressão abertíssima, que, aliás, reedita exatamente os mesmíssimos temores que os autores da iniciativa pareciam pretender afastar, qual seja, o uso de expressões de caráter amplo para alterar o sentido que os contratantes buscaram imprimir ao seu contrato (sobre o tema, seja consentido remeter à coluna Alterações da MP 881 ao Código Civil – Parte I).

Outra alteração legislativa polêmica foi aquela trazida pela Lei 13.811/2019, alterando o artigo 1.520 do Código Civil para interditar por completo a possibilidade de casamento antes da idade núbil (16 anos). No regime anterior, abria-se exceção para os casos de gravidez. Aplaudida por parte da doutrina, que entende ser a relação conjugal radicalmente independente da relação parental ocasionada pela gravidez, a nova orientação legislativa tem sido objeto de críticas por outros autores, que vêem na permissão do casamento em casos de gravidez um possível instrumento de proteção à mulher, especialmente em realidades ainda marcadas pelo forte preconceito à jovem mãe solteira.

Ainda no campo legislativo, merece destaque a Lei 13.853/2019 (fruto da conversão da Medida Provisória 869/2018), que inseriu na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais os artigos 55-A e seguintes, criando a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). Vale recordar que a criação de uma agência reguladora já constava da redação original da LGPD, tendo sido, contudo, objeto de veto pelo Presidente da República, sob a alegação de vício de iniciativa. A ANPD foi criada como “órgão da administração pública federal, integrante da Presidência da República” (LGPD, art. 55-A, caput). Os §§1º e 2º do artigo 55-A esclarecem, porém, que tal natureza afigura-se transitória, podendo a Autoridade ser transformada pelo Poder Executivo em entidade da administração pública federal indireta, submetida a regime autárquico especial e vinculada à Presidência da República, devendo tal transformação ser avaliada em até dois anos da data da entrada em vigor da estrutura regimental da ANPD. A experiência de outros países mostra que a autonomia e independência da Autoridade Fiscalizadora em relação ao Poder Executivo afigura-se indispensável, pois o Poder Público, não raro, é um dos grandes violadores da privacidade dos cidadãos.

No campo jurisprudencial, questões de grande relevância para o Direito Civil foram objeto de análise pelas nossas Cortes Superiores. O Plenário do Supremo Tribunal Federal debateu, no âmbito do RE 828.040/DF, a aplicabilidade da cláusula geral de responsabilidade objetiva por atividade de risco, constante do parágrafo único do artigo 927 do Código Civil[1], às relações trabalhistas. Algumas decisões judiciais negavam aplicabilidade ao dispositivo, sustentando sua incompatibilidade com a Constituição da República, que imporia, em seu artigo 7º, XXVIII, um regime de responsabilidade subjetiva nas relações de trabalho, ao se referir a indenização paga pelo empregador “quando incorrer em dolo ou culpa”.[2] Entretanto, o STF concluiu, na esteira do voto do Ministro Relator Alexandre de Moraes, que a previsão constitucional não impede a instituição de regime mais benéfico ao trabalhador por normas infraconstitucionais, sendo certo que o próprio caput do artigo 7º da Constituição esclarece que aos direitos do trabalhador arrolados no dispositivo se somam “outros que visem à melhoria de sua condição social”. Trata-se, a nosso ver, de decisão acertada, pois impede que uma interpretação constitucional restritiva de direitos agrave a equivocada percepção de que o Direito do Trabalho constitui uma espécie de gueto setorial, imune a interpretações de caráter sistemático.

Já no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, a Corte Especial pacificou, no âmbito do EREsp 1.281.594/SP, o entendimento acerca do prazo prescricional aplicável às pretensões indenizatórias fundadas na responsabilidade civil contratual. O entendimento que prevaleceu, capitaneado pelo Ministo Felix Fischer, foi aquele segundo o qual “o caráter secundário assumido pelas perdas e danos advindas do inadimplemento contratual, impõe seguir a sorte do principal (obrigação anteriormente assumida). Dessa forma, enquanto não prescrita a pretensão central alusiva à execução da obrigação contratual, sujeita ao prazo de 10 anos (caso não exista previsão de prazo diferenciado), não pode estar fulminado pela prescrição o provimento acessório relativo à responsabilidade civil atrelada ao descumprimento do pactuado.” O prazo trienal previsto no art. 206, §3°, V, seria reservado, segundo o Tribunal, para as hipóteses de responsabilidade civil extracontratual. Ficaram vencidos os Ministros que seguiram o voto do relator, Ministro Benedito Gonçalves, para quem o prazo trienal aplica-se indistintamente a ambas as espécies de responsabilidade. Este segundo entendimento é o que me parece mais adequado à ordem jurídica brasileira, conforme defendi em outra oportunidade.[3] Merece atenção o seguinte aspecto: a decisão da Corte Especial, lida com atenção, determina não a aplicação do prazo decenal constante do artigo 205 do Código Civil (em que pese a referência introduzida na ementa do acórdão), mas sim a aplicação à pretensão indenizatória do mesmo prazo incidente sobre a pretensão de execução específica da prestação originária.[4] Trata-se de aspecto da grande relevância prática, que merece melhor desenvolvimento pela doutrina.

A Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, uniformizou o entendimento de que “o roubo à mão armada em estacionamento gratuito, externo e de livre acesso configura fortuito externo, afastando a responsabilização do estabelecimento comercial.” Estes eventos são, infelizmente, recorrentes em diversas cidades brasileiras, sendo objeto de intensa judicialização, o que reforça a importância de respostas uniformes pelos nossos tribunais. A fundamentação adotada pela Corte no referido julgamento (EREsp 1.431.606/SP) foi cuidadosa ao distinguir a hipótese versada de outras situações nas quais o STJ reconhece a responsabilidade do estabelecimento: “O Superior Tribunal de Justiça, conferindo interpretação extensiva à Súmula n. 130/STJ, entende que estabelecimentos comerciais, tais como grandes shoppings centers e hipermercados, ao oferecerem estacionamento, ainda que gratuito, respondem pelos assaltos à mão armada praticados contra os clientes quando, apesar de o estacionamento não ser inerente à natureza do serviço prestado, gera legítima expectativa de segurança ao cliente em troca dos benefícios financeiros indiretos decorrentes desse acréscimo de conforto aos consumidores. No entanto, nos casos em que o estacionamento representa mera comodidade, sendo área aberta, gratuita e de livre acesso por todos, o estabelecimento comercial não pode ser responsabilizado por roubo à mão armada, fato de terceiro que exclui a responsabilidade, por se tratar de fortuito externo.” A decisão enfatiza, ademais, a necessidade de avaliar as circunstâncias do caso concreto, merecendo aplausos por oferecer parâmetros objetivos que orientem o intérprete: (a) gratuidade do serviço, (b) localidade externa ao estabelecimento e (c) livre acesso.

Registro, brevemente, algumas outras decisões instigantes proferidas no âmbito das turmas do STJ: (a) possibilidade, à luz do direito brasileiro, de reparação não-pecuniária do dano à honra (REsp 1.771.866/DF)[5]; (b) importância de se investigar a vontade do próprio falecido em relação ao destino a ser conferido ao seu cadáver, notadamente diante da opção pela preservação do corpo em processo de criogenia (REsp. 1.693.718/RJ)[6]; (c) possibilidade de realização de inventário extrajudicial, mesmo quando o falecido deixe testamento (REsp 1.808.767)[7]; (d) interpretação extensiva da expressão “qualquer interessado”, constante do artigo 155 do Estatuto da Criança e do Adolescente,[8] para fins de determinação da legitimidade ativa para deflagração do procedimento de suspensão ou perda do poder familiar (REsp 1.203.968/MG).[9]

No que se refere aos debates acadêmicos, por fim, destaco dois fatos importantes: (a) a fundação do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont), inclusive com publicação de sua Revista Brasileira de Direito Contratual, que já teve publicado seu primeiro volume; e (b) a realização do VII Congresso do Instituto Brasileiro de Direito, em setembro, no Rio de Janeiro. Além da imperdível entrevista concedida pelo Professor italiano Pietro Perlingieri, disponível no site do Instituto,[10] este último evento contou com palestras sobre temas extremamente atuais, como proteção dos dados pessoais em smart cities, o sistema opt-out do cadastro positivo de crédito, impactos da biotecnologia no direito civil, autonomia privada nos condomínios especiais, entre tantos outros.

FONTE: Carta Forense


[1] “Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.”

[2] “Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (…) XXVIII – seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa”.

[3] No texto A prescrição trienal da responsabilidade contratual, escrito em coautoria com Rafael Mansur, meu orientado no mestrado no PPGD da UERJ, publicado no Conjur. Disponível em https://bit.ly/2W3V6E0).

[4] Confira-se o seguinte trecho extraído do inteiro teor do acórdão: “a natureza secundária das perdas e danos decorrentes do inadimplemento contratual tem notória importância, devendo necessariamente seguir a sorte da relação obrigacional preexistente. Nesse diapasão, não se mostra coerente ou lógico admitir que a prestação acessória prescreva em prazo próprio diverso da obrigação principal, sob pena de se permitir que a parte lesada pelo inadimplemento promova demanda visando garantir a prestação pactuada, mas não mais possa optar pelo ressarcimento dos danos decorrentes.”

[5] Trecho extraído do inteiro teor do acórdão: “O direito à retratação e ao esclarecimento da verdade possui previsão na Constituição da República e na Lei Civil, não tendo sido afastado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 130?DF. O princípio da reparação integral (arts. 927 e 944 do CC) possibilita o pagamento da indenização em pecúnia e in natura, a fim de se dar efetividade ao instituto da responsabilidade civil.”

[6] Trecho extraído do inteiro teor do acórdão: “Não se pode ignorar que a recorrente conviveu e coabitou com seu pai por mais de 30 anos após ele ter se divorciado da mãe das recorridas, sendo certo que a maior parte desse tempo, mais de 20 anos, a recorrente Lígia e seu pai residiram nas cidades de Belém do Pará e Rio de Janeiro, ao passo que as recorridas Carmen e Denise Monteiro residiram no Rio Grande do Sul. (…) Desse modo, não obstante as autoras e a ré possuam o mesmo grau de parentesco com o falecido, é razoável concluir, diante das particularidades fáticas do presente caso, que a manifestação da filha Lígia, ora recorrente, é a que traduz a real vontade do seu genitor em relação à destinação de seus restos mortais. Pois sem dúvida alguma, é a que melhor pode revelar suas convicções e desejos, em razão da longa convivência com ele que perdurou até o final de sua vida.” Dediquei ao instigante caso uma coluna exclusiva aqui na Carta Forense: http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/o-caso-da-criogenia-direito-ao-cadaver-e-tutela-post-mortem-da-autodeterminacao-corporal/18341

[7] Trecho extraído do inteiro teor do acórdão: “Não há razão de ordem pública para se proibir o inventário extrajudicial quando o testamento já tiver sido homologado judicialmente, até porque o herdeiro maior e capaz sequer é obrigado a receber o seu quinhão hereditário estipulado pelo testador.” A decisão unânime da Quarta Turma confirma o posicionamento que já vinha sendo acolhido em diversas portarias de corregedorias de tribunais estaduais e representa importante medida para desafogar o Poder Judiciário e assegurar celeridade em um momento tão delicado da vida dos herdeiros.

[8] “Art. 155. O procedimento para a perda ou a suspensão do poder familiar terá início por provocação do Ministério Público ou de quem tenha legítimo interesse.”

[9] Trecho extraído do inteiro teor do acórdão: “o legislador não definiu quem teria, em tese, o ‘legítimo interesse’ para pleitear a medida, tampouco fixou requisitos estanques para a legitimação ativa, tratando-se de efetivo conceito jurídico indeterminado. A omissão, longe de ser considerada um esquecimento ou displicência, constitui uma consciente opção legislativa derivada do sistema normativo protetivo estatuído pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que tem como baliza central os princípios do melhor interesse da criança e da proteção integral. (…) A existência de vínculo familiar ou de parentesco não constitui requisito para a legitimidade ativa do interessado na requisição da medida de perda ou suspensão do poder familiar, devendo a aferição do legítimo interesse ocorrer na análise do caso concreto, a fim de se perquirir acerca do vínculo pessoal do sujeito ativo com o menor em estado de vulnerabilidade.”

[10] Disponível, na íntegra e com opção de legendas em português, em: https://www.youtube.com/watch?v=k3h7-UrQ5bs&feature=emb_logo


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