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Desafios da Causalidade na Responsabilidade Civil Brasileira

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Anderson Schreiber

Anderson Schreiber

25/02/2019

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo apreciou recurso no qual se discutia a responsabilidade civil do município de Hortolândia por danos materiais e morais causados pela queda de uma árvore na casa do autor após forte tempestade. No caso analisado, a vítima já havia notificado a municipalidade acerca do risco de queda em razão do apodrecimento do tronco. A Câmara julgadora entendeu estar configurada a responsabilidade civil do ente público nos seguintes termos: “quer sob o ponto de vista da teoria da equivalência, quer sob a ótica da teoria da causalidade adequada ou da causalidade imediata, a responsabilidade do Município se vê configurada. Tanto a tempestade quanto o mau estado de conservação da árvore, plantada no passeio público, foram causa da queda; não fosse o fato de a árvore estar podre, não teria caído, pois a madeira, feita para construir navios, por exemplo, é muito resistente; o fato de a árvore estar podre é o de que mais proximamente deriva o dano, não havendo de se argumentar com a queda de outras dezenas de árvores, naquele dia, pois se a Municipalidade não se incumbia de conservar nem a árvore que tinha razões para saber encontrar-se comprometida, quem garante que as outras estivessem sadias” (TJSP, 7ª Câmara de Direito Público, Apelação Cível 1005033-53.2017.8.26.0229, j. 31.1.2019). Esta decisão figura, ao lado de tantas outras, como exemplo das dificuldades enfrentadas pelos tribunais brasileiros no manejo das diversas teorias da causalidade.

Para que surja o dever de indenizar, é preciso, como se sabe, que o dano sofrido pela vítima constitua uma consequência da ação ou omissão do agente. O nexo de causalidade (relação de causa e consequência) é originariamente um conceito lógico, e não jurídico. Tornou-se, todavia, jurídico para se evitar uma super-responsabilização na vida social. A ciência jurídica tratou, nesse sentido, de construir sua própria noção de nexo causal, mais restrita que aquela que derivaria de uma visão puramente lógica dos acontecimentos que se sucedem na natureza. Nesse sentido, desenvolveram-se numerosas teorias, de que são exemplos mais notórios a teoria da equivalência das condições, a teoria da causalidade adequada, a teoria da causalidade eficiente e a teoria da causalidade direta e imediata.[1]

Em termos de direito positivo, nosso Código Civil afirma em seu art. 403: “Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual”. A norma tem sido vista como acolhimento legislativo da teoria da causalidade direta e imediata, que limita o dever de indenizar às consequências direta e imediatamente derivadas da conduta culposa. Nosso Supremo Tribunal Federal já decidiu, repetidas vezes, que o dispositivo, embora situado na parte do Código Civil dedicada ao direito das obrigações, aplica-se também à responsabilidade civil aquiliana (extracontratual ou, mais tecnicamente, extraobrigacional).

Assim, se o agente provoca um acidente de trânsito que resulta em lesão à integridade física da vítima, que vem a receber tratamento médico em hospital, onde contrai infecção hospitalar que resulta em sua morte, o agente responde pela lesão à integridade física, mas não pela perda da vida da vítima, cuja causa direta e imediata não foi o acidente de trânsito em si, mas a infecção hospitalar. É evidente que a vítima nem sequer teria ido ao hospital se o acidente de trânsito não tivesse acontecido (há nexo causal em sentido lógico), mas o acidente de trânsito é causa meramente remota ou indireta da morte (não se configurando, portanto, nexo causal em sentido jurídico). Vale dizer: a morte da vítima consiste, no exemplo dado, em dano indireto, também chamado dano por ricochete, que não gera responsabilidade. A indenização pela perda do ente querido, nessa hipótese, deve ser buscada perante o hospital, e não perante o motorista.

A teoria da causa direta e imediata fornece um critério inegavelmente seguro para evitar uma responsabilidade civil ad infinitum. Não houvesse freio à ideia de causalidade, já advertia Binding, o marceneiro poderia acabar sendo responsabilizado pelo adultério cometido sobre a cama que construiu. Também é certo, entretanto, que, em alguns casos, a aplicação da teoria da causa direta e imediata pode se revelar injusta. Isso ocorre sempre que se está diante de danos que, embora não sejam diretamente resultantes da conduta culposa do agente, derivam necessariamente do seu resultado imediato, sem a intervenção de qualquer outra causa.

Veja-se um exemplo: uma indústria polui um rio, gerando a mortandade de peixes. O dano causado diretamente pela conduta da indústria poluente é a mortandade de peixes, um dano ambiental de natureza extrapatrimonial. É certo, todavia, que, como consequência desse dano, um segundo dano ocorrerá: o pescador local, que vive da pesca, não poderá vender seus peixes no mercado e, portanto, sofrerá uma perda econômica de receitas razoavelmente esperadas (lucros cessantes). Esse dano patrimonial é um dano indireto, pois resulta não diretamente da conduta da indústria poluente, mas do dano direto dela derivado, qual seja, a mortandade de peixes. Trata-se, todavia, de um dano indireto necessário, isto é, um dano que deriva necessariamente do dano anterior, sem que para tanto seja preciso a intervenção de qualquer outra causa. Tal dano indireto necessário deve ser indenizado pelo agente. Nas palavras de Agostinho Alvim: “os danos indiretos ou remotos não se excluem, só por isso; em regra, não são indenizáveis, porque deixam de ser efeito necessário, pelo aparecimento de concausas. Suposto não existam estas, aqueles danos são indenizáveis”[2]. É o que se denomina subteoria da necessariedade causal, que consiste em um desdobramento (rectius: atenuação) da teoria da causalidade direta e imediata.

Em que pesem as sólidas formulações teóricas em torno do tema do nexo causal, a jurisprudência brasileira tem aplicado a noção de modo pouco rigoroso. Nossas decisões judiciais caracterizam-se por um tratamento flexível do tema da causalidade. Não é incomum encontrar nos julgados, mesmo sem menção a qualquer dispositivo legal, referências à teoria da causalidade adequada ou à teoria da causalidade eficiente, que asseguram maior margem de discricionariedade ao julgador. Outras vezes, valem-se os magistrados de presunções de causalidade sem base legal. Todos esses subterfúgios contribuem para uma flexibilização do nexo causal na prática judicial, que gera insegurança e falta de uniformidade nas decisões judiciais em matéria de responsabilidade civil.

Há muitos e notórios exemplos de erros na aplicação do nexo causal em nossa jurisprudência, com o uso de uma teoria sob a designação de outra. [3] São equívocos que se explicam não apenas pela aridez do tema, mas sobretudo por conta daquela associação usual com a noção lógica de causalidade: muitos magistrados acreditam que aferir o nexo causal é coisa óbvia, que resulta dos fatos, dispensando aprofundamento jurídico em termos de fundamentação – quando é justamente o contrário.

Erros à parte, não se pode negar que, na realidade atual, existem casos em que a resistência judicial a uma aplicação técnica da casualidade direta e imediata (ainda que com o temperamento trazido pela subteoria da necessariedade causal) exprime a percepção por nossas cortes de alguma insuficiência das teorias tradicionais da causalidade, construídas todas a partir de uma perspectiva de responsabilidade individual fundada na culpa do agente (responsabilidade subjetiva) e, por isso mesmo, desatentas às transformações da responsabilidade civil contemporânea, guiadas pela necessidade de gerir riscos sociais e prevenir danos. É nesse sentido que um número cada vez maior de construções teóricas pontuais tem vindo amenizar os rigores da aplicação das teorias tradicionais da causalidade. Ainda que de modo pouco sistemático e, portanto, tecnicamente criticável, tais construções vêm evidenciando verdadeiros buracos negros decorrentes da aplicação da concepção jurídica tradicional do nexo de causalidade aos desafios impostos por uma sociedade de riscos. Um exemplo marcante tem-se na chamada teoria da causalidade alternativa.

Ao contrário das teorias tradicionais da causalidade, a chamada teoria da causalidade alternativa não se propõe a eleger um critério de aferição da causalidade jurídica em geral, aplicável a todos os casos, mas cuida tão-somente de certas situações que parecem restar ao desabrigo daquelas teorias. Sua origem situa-se na discussão sobre o tratamento a ser dado à causalidade em hipóteses em que, embora seja possível identificar o grupo de cuja atuação adveio o dano, mostra-se impraticável a determinação precisa do seu causador. Exemplo célebre é o do acidente de caça em que um disparo atinge a vítima, sem que se possa determinar da arma de qual dos caçadores partiu o projétil. Ao contrário do que ocorre na causalidade concorrente (em que todos os participantes concorrem para o resultado), aqui não se sabe de qual ou quais agentes partiu a ação que resultou no dano, sendo certo, porém, que nem todos contribuíram para o prejuízo.

À luz das teorias tradicionais da causalidade, a solução para tais casos seria a irresponsabilidade. Afirma-se que, em situações assim, “a relação de causalidade é incerta, já que não é possível estabelecer quem é o autor da falta cometida”[4]. Segundo a dogmática tradicional, “o concurso na produção do dano deve ser especificamente demonstrado pelo lesado. Para este fim, não basta a mera presença do sujeito em um grupo de pessoas se não é identificado o autor do dano. Por exemplo, não se provando qual de duas pessoas no local tenha ateado fogo, nenhuma das duas pode ser tida como responsável”[5]. Os tribunais comovem-se, todavia, com a injustiça de tais situações, uma vez que a vítima resta desamparada, mesmo sendo certo que o dano lhe foi provocado por, ao menos, um dos integrantes do grupo. O problema está longe de refletir um preciosismo teórico: em caso dramático julgado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, discutiu-se a configuração do nexo causal em relação à situação de uma criança portadora de hemofilia que, após receber transfusão de sangue em mais de um hospital, contraiu o HIV[6]. Sabe-se que houve falha de um dos hospitais, mas o atual estado da medicina não permite identificar em qual dos hospitais o vírus foi contraído. A solução tradicional é a ausência de responsabilidade civil de todos os hospitais, por impossibilidade de demonstração do nexo causal em relação a qualquer um deles individualmente. Nesse quadro, a vítima nada recebe, embora se tenha certeza de que lhe foi causado um dano injusto.

A teoria da causalidade alternativa vem propor solução diversa: a responsabilidade solidária de todos os integrantes do grupo envolvido na geração do dano, embora, a rigor, apenas um de seus integrantes o tenha provocado.[7]Procura-se justificar a teoria da causalidade alternativa com a norma do Código Civil que atribui responsabilidade solidária aos coautores do ato ilícito (art. 942, parágrafo único). Tecnicamente, contudo, não se trata de coautoria, mas de uma autoria alternativa entre certo número de potenciais causadores do dano. Pior: a teoria da causalidade alternativa esbarraria na vedação à presunção de solidariedade no direito brasileiro (art. 265). Ainda assim, os tribunais brasileiros a tem aplicado em alguns casos.[8]

O problema central que a chamada teoria da causalidade alternativa pretende enfrentar pode ser formulado em termos mais genéricos, mirando uma solução mais sistemática: trata-se, a rigor, de evidenciar a insuficiência de todas as teorias tradicionais da causalidade (teoria da causalidade direta e imediata, teoria da causalidade adequada, teoria da causalidade eficiente etc.) para solucionar os casos em que, embora haja possibilidade de que determinado evento tenha sido causa do dano, não se pode provar matemática ou cientificamente que tal evento o causou, de fato, no caso concreto. Em um cenário em que a responsabilidade civil se fundava exclusivamente na culpa, a ausência de uma demonstração precisa da causalidade tendia a afastar qualquer responsabilização. Já em um cenário em que a responsabilidade civil abrange não apenas a culpa, mas também a criação do risco como fatores de imputação, a contribuição da atividade do agente para a criação ou majoração do risco há ter alguma relevância jurídica, ainda que substancialmente diversa daquela inerente à produção do dano em si. No citado exemplo da criança que contrai o vírus do HIV em transfusões de sangue, parece evidente que a impossibilidade de demonstração científica da causalidade, à luz do atual estado da ciência e da técnica médicas, exprime não apenas a impossibilidade de provar que houve nexo causal, mas também a impossibilidade de provar que não houve nexo causal, de tal maneira que lançar – ou, ao menos, lançar integralmente – sobre a vítima o ônus da incapacidade objetiva da ciência soa excessivo em termos de direito substancial (independentemente, portanto, de caminhos episódicos que se possam encontrar em termos processuais, como se poderia vislumbrar, no caso mencionado, na inversão do ônus da prova em favor do consumidor, sujeita a requisitos próprios à luz do art. 6º, VIII, do CDC). Uma solução possível, em teoria, seria a repartição de tal ônus entre os diversos hospitais envolvidos, contornando a vedação à presunção de solidariedade vigente no direito brasileiro. Tal solução permitira, ainda, uma análise efetiva da contribuição causal para a deflagração do risco de dano (o risco, de resto, é, como se costuma registrar, o dano que ainda não se realizou). Assim, o hospital que adota menos cautelas ou tem sistemas menos seguros de controle ou realizou um número maior de transfusões à vítima poderia responder por maior “parcela” do dano. Tal solução aproximar-se-ia do critério de algumas soluções que já encontram respaldo na experiência estrangeira, como o critério do market share (fatia de mercado), empregado em algumas decisões do common law, em que não se pode determinar com precisão o exato fabricante do produto nocivo no caso concreto.

Longe de representar uma proposta pronta e acabada – missão que foge ao escopo desta breve coluna –, as considerações formuladas acima têm o escopo de despertar o interesse do leitor e reforçar a necessidade de se revisitar o tema da causalidade no direito brasileiro, no espaço existente entre dois extremos que convém evitar: (a) de um lado, uma visão excessivamente dogmatista do tema, que fecha os olhos às injustiças provocadas pela aplicação de teorias da causalidade construídas à luz de um quadro geral da responsabilidade civil fundado sobre a culpa, especialmente nos casos de impossibilidade científica de aferição do nexo causal; e (b) de outro lado, propostas casuísticas que, ao arrepio do caráter sistemático da ordem jurídica, procuram construir soluções robinho odianas válidas apenas para certos casos, que acabam, por isso mesmo, violando o postulado normativo da isonomia formal e substancial, além de apresentar baixa efetividade, uma vez que acabam derrubadas pelo déficit de fundamentação jurídica. Equilibrando-se entre esses dois extremos, o intérprete é chamado a lançar renovado olhar sobre o nexo causal, tema que, não obstante os inúmeros estudos publicados nos últimos anos, segue à espera de uma verdadeira releitura à luz da Constituição da República.

Fonte: Carta Forense


[1]Para um panorama das diversas teorias, ver: Gisela Sampaio da Cruz, O problema do nexo causal na responsabilidade civil, Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 33-153.
[2]Agostinho Alvim, Da inexecução das obrigações e suas consequências, 5. ed., São Paulo: Saraiva, 1980, p. 370.
[3]Para uma análise detalhada desses casos, ver Gustavo Tepedino, Notas sobre o Nexo de Causalidade, in Revista Trimestral de Direito Civil, ano 2, vol. 6, abr./jun., 2001, pp. 9-14.
[4]Philippe le Tourneau, La responsabilité civile, Paris: Dalloz, 1982, p. 209.
[5] Massimo Bianca, Diritto Civile, Milão: Dott. A. Giuffrè, 1994, v. 5, p. 648.
[6]TJRS, 5ª Câmara Cível, Apelação Cível 593.008.808, rel. Des. Alfredo Guilherme Englert, j. 1-4-1993.
[7]Para mais detalhes, ver: Anderson Schreiber, Novos paradigmas da responsabilidade civil…, cit., p. 74-78.
[8]TJRS, 9ª Câmara Cível, Ap. Civ. 0086732-86.2014.8.21.7000, rel. Des. Miguel Ângelo da Silva, j. 25-11-2015; STJ, 4ª T., REsp 26.975/RS, rel. Min. Aldir Passarinho Junior, j. 18-12-2001.

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