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A Convalidação de Leis Inconstitucionais por Emendas
Kiyoshi Harada
14/09/2018
Já se incorporou na prática legislativa a constitucionalização de normas de lei ordinária. Quando isso ocorre em relação àquelas leis conformadas com a ordem constitucional vigente à época em que vieram ao mundo, não provoca nenhum problema de ordem jurídica. O máximo que pode acontecer é a maior desmoralização da Carta Política, motivada pelo preceito constitucional descumprido tal qual à época em que aquele preceito não tinha status constitucional.
Já é tempo de perceber que problemas decorrentes de descumprimento de leis ordinárias não se resolvem e nem devem ser resolvidos pela constitucionalização delas. A questão depende da vontade política de o poder público cumprir ou não as leis em vigor, independentemente de sua categoria, se lei complementar, lei ordinária ou norma constitucional. Mesmo as leis tidas como inconstitucionais, sem prévia manifestação do Judiciário, não podem deixar de ser cumpridas pelo poder público.
O grande problema surge quando se constitucionaliza uma norma que nasceu de forma incompatível com a ordem constitucional então vigente.
Citemos um caso concreto para melhor entendimento da matéria.
A base de cálculo da Cofins, segundo o art. 3º da Lei nº 9.718, de 27-11-1998 é o faturamento, que corresponde à receita bruta da pessoa jurídica, explicitando o seu § 1º que: “entende-se por receita bruta a totalidade das receitas auferidas pela pessoa jurídica, sendo irrelevante o tipo de atividade por ela exercida e a classificação contábil para as receitas”.
Esse § 1º estava em descompasso com a norma do inciso I do art. 195 da CF que, em sua redação original, só autorizava a instituição da contribuição social (Cofins) incidente sobre o faturamento e o lucro, além daquela incidente sobre folha de salários.
A peremptória redação do § 1º, enfatizando ser a receita bruta a “totalidade das receitas auferidas”, a qualquer título sequer dava margem para realizar a interpretação conforme a Constituição que o caput do art. 3º, por si só, estaria a possibilitar.
Por isso, o STF, no RE 357.950, Rel. Min. Marco Aurélio, declarou a inconstitucionalidade daquele § 1º do art. 3º da Lei nº 9.718/98.
Por ter natureza meramente declaratória a decisão da Corte Suprema surte efeito ex tunc, vale dizer, passa a vigorar a redação anterior da lei, como se nunca tivesse sido alterada.
A base de cálculo da Cofins fica, portanto, restrita ao faturamento bruto, o que no nosso modo de entender exclui, não apenas os rendimentos de aplicações financeiras e de alugueres, como também dos juros embutidos nas prestações da casa própria.
A Emenda Constitucional nº 20, de 15-12-1998, entretanto, veio alterar a redação do texto original do inciso I do art. 195 da CF, para prever a contribuição social sobre “a receita ou o faturamento”, deixando claro que se trata de duas realidades distintas.
Desde a declaração de inconstitucionalidade do § 1º do art. 3º da Lei nº 9.718/98, nenhum instrumento normativo veio à luz, para adequar a base de cálculo da Cofins ao novo texto constitucional. Daí a pergunta: pode-se cobrar a Cofins sobre a receita bruta a partir da Emenda Constitucional nº 20/98?
Duas correntes de pensamento existem a respeito.
Para os defensores da tese de que a recepção é um princípio de continuação, ou seja, o direito não conflitante com a ordem constitucional antecedente continua valendo sob a nova ordem, que o recepciona no que não lhe for contrário, não seria possível falar em recepção daquele § 1º do art. 3º da Lei nº 9.718/98 que conflitava com o texto constitucional então vigente.
Para aqueles que buscam o fundamento de validade da norma antiga no novo texto constitucional, a EC nº 20/98 teria recepcionado aquele § 1º do art. 3º da Lei nº 9.718/98, passando a produzir seus efeitos a partir de então, sendo desnecessária sua reedição nos mesmos termos. O que não se poderia tolerar seria a sua aplicação retroativa. Nada mais.
Esse último posicionamento doutrinário permite a convalidação de preceitos legais inconstitucionais, inclusive, prejudicando o uso da via direta de controle da constitucionalidade (controle concentrado), pois é sabido que a Corte Suprema não admite a invocação de inconstitucionalidade de uma lei à luz da ordem constitucional que não mais está em vigor. Resta ao interessado somente o uso da via difusa que, na hipótese de declaração de inconstitucionalidade, a norma atingida somente terá a sua eficácia suspensa por Resolução do Senado Federal, que, às vezes, pode levar anos. A prevalecer a tese da convalidação de leis por emendas constitucionais, estar-se-ia admitindo a supressão parcial da competência do STF no exercício de sua atividade como guardião da Constituição, bem como admitindo e estimulando a produção, em escala industrial, de normas inconstitucionais, porém convenientes ao governo, por conta de futuras emendas que, atualmente, quando patrocinadas pelo governo, são mais fáceis de serem aprovadas do que as propostas legislativas de lei complementar ou de lei ordinária. Essa tese da convalidação, portanto, conduz a um sistema legislativo que refoge da conduta ético-moral que deve presidir a ação do legislador. O Legislativo não pode continuar investindo na morosidade do Judiciário na detectação de inconstitucionalidade dos instrumentos normativos diversos que vem produzindo, sem a menor preocupação com o princípio da hierarquia vertical das leis.
Lamentavelmente, a “puxada de tapete” dos legisladores em geral já vem de longa data. Por exemplo, nas chamadas leis de incentivos fiscais do ICMS nenhuma delas obedece ao mandamento constitucional. Levada a questão ao Judiciário pelo estado prejudicado, antes do julgamento da Adin pela Corte Suprema, o astuto legislador revoga o texto legal guerreado e elabora outra lei na oportunidade seguinte. A Corte Suprema precisa encontrar um mecanismo para colocar freio nesse tipo de comportamento legislativo desleal, timbrado por elevada dose de má-fé, que, praticamente, faz com que os Ministros da mais Alta Corte de Justiça do país percam o seu precioso tempo para nada.
Por tudo isso, é importante adotar-se a corrente doutrinária que exige a reelaboração da norma incompatível com a ordem constitucional antecedente, para se ajustar ao novo paradigma constitucional, de conformidade com o ensinamento esposado por Celso Antonio Bandeira de Mello (RevistaDiálogoJurídico, Salvador, CAJ, v. 1, 2001, p. 18). Poderão dizer que essa é a posição de um purista do direito, que é um preciosismo desnecessário etc. É preferível exigir-se a reedição da norma anterior com data posterior à da emenda superveniente do que compactuar com um sistema que permite a prevalência da astúcia legislativa sobre a inteligência do intérprete.
Se a recepção é um princípio de continuação, evidentemente, somente o que era constitucional poderá ser recepcionado pelo novo ordenamento constitucional, assim mesmo, apenas naquilo que não contrariar essa nova ordem, que poderá sempre sofrer alterações por via de emendas, ressalvadas as hipóteses abrangidas por cláusulas pétreas. Como é sabido, é da essência do Direito o seu dinamismo, devendo sempre adequar-se às transformações da sociedade, onde busca sua legitimação.
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