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A Violência Patrimonial contra a Mulher nos Litígios de Família
Mário Luiz Delgado
09/01/2018
A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06), sempre festejada pelo grande avanço que representou no combate à violência doméstica contra a mulher, completou nove anos em 7 de agosto de 2015. Muito se tem escrito e deba- tido sobre o que mudou no panorama da violência doméstica nesse período.
Infelizmente, essa dura realidade, fruto das desigualdades histórico-culturais1 existentes entre os sexos, ainda permanece. A luta contra as diferenças de gênero persiste.
Em artigo publicado no Conjur, Rodrigo da Cunha Pereira divulga dados do Data Senado com “números constrangedores que deveriam escandalizar a nossa consciência civilizatória: uma em cada cinco brasileiras é vítima de violência doméstica ou familiar. O maior número de agressões recai sobre as que têm menos escolaridade. O inimigo está dentro de casa ou já foi de casa. Os maridos ou companheiros são os responsáveis por 49% dessa barbárie; ex-maridos ou ex-namorados, por 21%; e os namorados, por 3%”2.
Apesar disso, seria injusto negar o contributo da Lei para a melhoria das condições da mulher no cenário da violência doméstica, especialmente no que tange à impunidade dos agressores.
A Lei Maria da Penha não criou novos tipos penais, mas propiciou uma releitura dos tipos penais existentes, ao mesmo tempo em que assegurou, no âmbito do processo penal, um tratamento diferenciado e protetivo da mulher (discriminação positiva), de modo a suprir as diferenças decorrentes do gênero. Ela mudou a forma de se interpretar a tipificação penal tradicional, ampliando o conceito de violência doméstica para abarcar certas condutas que antes eram excluídas dos tipos penais.
Além da violência física, sempre a face mais chocante da violência doméstica, a Lei elasteceu a moldura normativa, possibilitando a incorporação na tipificação de outras formas de violência doméstica e familiar em razão do gênero, as quais, apesar de muito frequentes, eram pouco invocadas como instrumentos de proteção à mulher agredida3.
Nas demandas em curso nas varas de família, especialmente nos processos de divórcio com partilha de bens e de alimentos, são abundantes os crimes praticados contra o cônjuge virago e que passam despercebidos pelos advogados não militantes na advocacia criminal – especialmente crimes de ordem patrimonial, praticados em decorrência de uma relação assimétrica de poder contra quem se encontra em desvantagem e em situação de hipos- suficiência, justamente por ser mulher. Estamos nos referindo à violência patrimonial contra a mulher, que vem a ser espécie do gênero violência doméstica e familiar.
Nos conflitos conjugais, a violência patrimonial mais conhecida é aquela praticada mediante destruição de bens materiais e objetos pessoais4 ou a sua retenção indevida, nos casos de separação de fato, no afã de coagir a mulher a retomar ou a manter-se na convivência conjugal.
Entretanto, a violência patrimonial pode ser engendrada por formas mais sutis e que, justamente por isso, não são analisadas pelo operador do Direito sob o aspecto criminal. O atentado contra o patrimônio da mulher também pode ser praticado, por exemplo, pelo marido que subtrai ou faz uso exclusivo dos bens comuns ou pelo devedor de alimentos que retém o pagamento da verba devida ao ex-cônjuge.
É sobre esse aspecto da violência doméstica que nos propomos a refletir neste trabalho.
A Violência Doméstica e Familiar
A violência doméstica e familiar contra a mulher caracteriza forma específica de violação dos direitos humanos5. Essa violação é representada por qualquer ação ou omissão baseada no gênero que cause morte, lesão, sofri- mento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial e tenha sido praticada no âmbito da unidade doméstica, no âmbito da família ou no âmbito de qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
A Lei também é clara quando enuncia que a sua aplicação independe de orientação sexual. E por isso a Lei pode ser invocada mesmo quando o autor da agressão for outra mulher. O que se pretende coibir é a opressão contra a mulher em decorrência de uma questão de gênero enquanto relação assimétrica de poder, podendo figurar como agentes do tipo penal tanto homens quanto mulheres. A mulher agressora, no caso, age como se fosse homem6.
Já na relação entre dois homens, ou mesmo na relação entre homem e mulher, figurando o homem como vítima da violência, não é possível a aplicação da Lei Maria da Penha, por força da interpretação necessariamente restritiva das normas sancionadoras7.
A Lei Maria da Penha não criou o crime de violência doméstica, mas, ao definir e especificar as diversas formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, permitiu uma tipificação mais eficiente dos crimes já pre- vistos na legislação.
A violência doméstica não se expressa apenas pela violência física, relacionada às ofensas à integridade ou à saúde corporal, mas também pela violência psicológica, representada por qualquer conduta que cause prejuízo à saúde psicológica, à autodeterminação e à autoestima da mulher (ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir, etc.); pela violência sexual, que consiste em constranger a mulher a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força, que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação, ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; pela violência moral, praticada através de calúnia, difamação ou injúria; e, finalmente, pela violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.
Não são novos crimes, mas uma nova visão sobre os mesmos crimes sancionados no Código Penal, desde que praticados contra a mulher em razão do gênero8. A maioria das manifestações da violência doméstica e familiar descritas na Lei nº 11.340 possui os seus correspondentes típicos no Código Penal.
As penas cominadas a quem pratica a violência doméstica e familiar, portanto, são as mesmas prognosticadas no Código Penal para os crimes contra a integridade física, contra a honra ou contra o patrimônio, a depender do núcleo da conduta praticada. Como reflexo processual da tipificação, e pretendendo atribuir maior efetividade à norma repressora, a Lei estabelece ser proibida a aplicação, nos casos de crimes cometidos com violência doméstica ou familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa (art. 17).
Recentemente, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) ainda entendeu incabível, nos crimes cometidos com violência doméstica, a substituição da pena privativa de liberdade por sanção restritiva de direitos9.
A Violência Patrimonial no Curso das Ações de Família
A Lei nº 11.340 define a violência patrimonial contra a mulher como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades10. Em outras palavras, a violência patrimonial está nucleada em três condutas: subtrair, destruir e reter. Como a Lei Maria da Penha não alterou a tipologia e as disposições materiais relativas aos crimes patrimoniais, apenas ampliando o rol das condutas que caracterizam a violência doméstica e familiar, passemos agora ao necessário enquadramento de cada uma dessas condutas no tipo penal respectivo.
Subtração de Bens, Valores e Direitos ou Recursos Econômicos
O verbo “subtrair” conduz inicialmente a um tipo penal por todos conhecido: o furto, previsto no art. 155 do CP11. Se a subtração se deu com emprego de violência, temos o tipo denominado roubo12. Assim, incorre nessa conduta típica tanto o cônjuge ou companheiro que subtrai às escondidas valores da mulher para compra de bebidas ou drogas (situações mais comuns)13 como aquele que subtrai da mulher a parte que lhe cabia dos bens comuns, alienando o automóvel ou os móveis da casa ou até mesmo o animal de estimação. Nas lições de Scarance Fernandes, “na violência doméstica e familiar contra a mulher o furto diz respeito à subtração de bens particulares da vítima ou à parcela da mulher na meação dos bens comuns”14.
Às vezes a subtração ocorre com a finalidade de causar dor ou dissabor à mulher, pouco importando o valor dos bens subtraídos. A jurisprudência tem reconhecido a violência patrimonial nessas situações e, inclusive, afastado o princípio da bagatela15. São situações muito comuns, mas infelizmente pouco levadas à esfera jurisdicional.
Ressalte-se, finalmente, que não é todo e qualquer furto contra a mulher, ainda que praticado por ex-cônjuge ou ex-companheiro, que irá caracterizar a violência patrimonial. É preciso que a subtração ocorra em situação de violência doméstica, ou seja, em razão do gênero. Nesse sentido, confira-se o seguinte acórdão do TJRJ, que afastou a aplicação da Lei Maria da Penha, por considerar, no caso concreto, que o crime teria sido cometido ainda que a vítima não fosse mulher:
“APELAÇÃO. FURTO SIMPLES EM CONTEXTO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA FAMILIAR. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO VISANDO À REFORMA DA SENTENÇA ABSOLUTÓRIA, DE MOL- DE A VER CONDENADO O RECORRIDO NAS PENAS DO ART. 155 DO CÓDIGO PENAL, NA FORMA DA LEI Nº 11.340/06. Antes do exame da pretensão condenatória manifestada pelo Parquet, cumpre verificar a existência dos requisitos necessários para a aplicação da Lei nº 11.340/06. A incidência da referida Lei reclama a presença cumulativa de três vetores que caracterizam a situação de violência doméstica e familiar, representadas pela existência, passada ou atual, de relação íntima de afeto entre agressor e vítima, a violência de gênero direcionada à prática delitiva contra mulher e a situação de vulnerabilidade da vítima em relação ao agressor. A Terceira Seção do Superior Tribunal firmou entendimento de que o legislador, ao editar a Lei Maria da Penha, teve em conta a mulher numa perspectiva de gênero e em condições de hipossuficiência ou inferioridade física e econômica em relações patriarcais, consignando que o escopo da Lei é a proteção da mulher em situação de fragilidade/vulnerabilidade diante do homem ou de outra mulher, desde que caracterizado o vínculo de relação doméstica, familiar ou de afetividade (CC 88.027/MG, Min. Og Fernandes). Tal orientação encontra-se consolidada naquela e. Corte de Justiça, como se vê do julgado relatado pelo eminente Ministro Marco Aurélio Bellizze (HC 175.816/RS), onde restou pontuada a necessidade de ser empregada interpretação restritiva ao referido diploma legal. No caso, o Ministério Público denunciou o apelante pelo crime de furto simples, afirmando que ele teria subtraído determinada quantia em dinheiro pertencente a sua ex-companheira. A inicial afirma que tal conduta teria ocorrido quando o ‘denunciado estava visitando sua filha na residência da vítima, e quando esta se distraiu o denunciado subtraiu a resfurtiva da bolsa da vítima, se evadindo do local em seguida’. No entanto, de acordo com o relato da ex-companheira do recorrente em juízo, a mencionada subtração não ocorreu, como afirmado na denúncia, na sua residência, mas, sim, na residência de uma vizinha da sua mãe, que mora no andar de baixo. Também não foi confirmado que o apelado estava naquele local para a visitação dos filhos. A lesada informou que a subtração teria acontecido quando ela subiu para ir até a casa da sua mãe e deixou a bolsa no sofá. Quando retornou, a moradora da casa onde ambos se encontravam teria dito que o recorrido havia pegado algo na bolsa e saído correndo. Ao examinar a bolsa, constatou que o dinheiro não estava mais lá. A ex-companheira do apelado fez questão de esclarecer ao juízo que ‘não é a primeira vez que ele mexe nas coisas dos outros’. Pelos poucos elementos que se tem nos autos, não é possível enquadrar a conduta como sendo de violência doméstica e familiar, na modalidade de violência patrimonial (art. 7º, inciso IV). A suposta lesada e o apelado viveram juntos e possuem filhos em comum. Estão separados há cerca de dois anos. A subtração do dinheiro teria ocorrido na residência de terceiros, onde ambos se encontravam por motivo não esclarecido nos autos. Segundo relato da própria lesada, não foi a primeira vez que o recorrido mexeu ‘nas coisas dos outros’, o que sugere que esse comportamento já tenha ocorrido anteriormente, tendo outras pessoas como lesadas. Em relação à violência de gênero, não basta para seu reconhecimento que o sujeito passivo do crime seja mulher. É necessário que a violência se dê em razão do gênero, como forma de oprimir ou subjugar a mulher. No caso, a acusação é de subtração de dinheiro da ex-companheira. Contudo, pelas circunstâncias do fato, qualquer que fosse o sexo ou a condição do sujeito passivo, o crime poderia ter ocorrido da mesma forma, já que a própria lesada mencionou haver precedente da mesma conduta contra terceiros. Também não se percebe no episódio uma situação de vulnerabilidade da lesada em relação ao apelado, de modo a caracterizar um caso de opressão à mulher. O móbil do agir do apelado não teve qualquer relação com o gênero da suposta lesada. A Lei de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher é especial e, portanto, sua aplicação só se justifica quando verificada situação cujo suporte fático evidencie concretamente violência de gênero. A mera relação de parentesco, de convivência ou razão sentimental, por si só, não autoriza o regime jurídico diverso do comum. Por consequência, tratando-se de crime de furto desvinculado da Lei nº 11.340/06, a competência para decidir o presente feito é do Juízo Criminal comum, devendo ser reconhecida a nulidade da sentença e dos demais atos proferidos no primeiro grau, desde o recebimento da denúncia, eis que originário de órgão jurisdicional absolutamente incompetente. Processo anulado por incompetência absoluta do juízo, na forma do voto do relator. Vistos, relatados e discutidos estes autos em que são partes as acima epigrafadas, acordam os Desembargadores que integram a Oitava Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, por unanimidade de votos, em reconhecer e declarar a nulidade do processo, por incompetência absoluta do I Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Capital e determinar a remessa dos autos para o Juízo Criminal comum, nos termos do voto do Desembargador-Relator.” (TJRJ, Oitava Câmara Criminal, Rel. Des. Gilmar Augusto Teixeira, j. 02.09.2015)
Destruição Parcial ou Total de Objetos, Instrumentos de Trabalho e Documentos Pessoais
O tipo penal correspondente à conduta de destruir ou danificar bens da mulher é o crime de dano, previsto no art. 163 do CP16. Se o crime é cometido com violência à pessoa ou grave ameaça, com emprego de substância inflamável ou explosiva, ou ainda por motivo egoístico (como é o caso do ciúme excessivo), temos o crime de dano qualificado, cuja pena passa a ser de detenção de seis meses a três anos17.
Em regra, a apuração do crime de dano só se procede mediante queixa, ou seja, a ação penal é privada18, salvo se houver emprego de violência, grave ameaça, substância inflamável ou explosiva, quando a ação de privada passa a ser pública incondicionada. Na maioria das situações, o crime de dano sem- pre está associado a outras formas de violência, como é o caso da ameaça ou mesmo da violência psicológica, como ocorre nas situações em que o agressor provoca a destruição de objetos de alto valor sentimental ou, ainda, a morte de animal de estimação, visando atingir a vítima em seu estado psíquico. Nesses casos, ocorrem dois crimes em concurso.
Outros tipos penais relacionados diretamente à conduta “destruir” estão dispostos nos arts. 151 e 305 do CP. O art. 151 versa sobre o delito de violação de correspondência, que abrange a sonegação ou destruição de correspondência alheia, embora não fechada, e prevê pena de detenção, de um a três anos. O art. 305 trata da destruição, supressão ou ocultação de documentos, condutas sancionadas com pena de reclusão, de dois a seis anos, e multa, se o documento é público, e de um a cinco anos de reclusão se o documento é particular.
No tocante, especificamente, à ocultação (ou retenção) de documentos, se essa conduta impossibilitar o exercício de qualquer direito trabalhista pela mulher, tem-se caracterizado, ainda, o crime de frustração de direito assegurado por lei trabalhista, previsto no art. 203 do CP, com pena de detenção de um ano a dois anos e multa19.
Retenção de Bens, Valores e Direitos ou Recursos Econômicos
A violência patrimonial caracterizada pela conduta típica de reter bens ou valores tem a mesma natureza jurídica do seu tipo penal correspondente, que é a apropriação indébita, prevista no art. 168 do CP20. A pena é aumentada em um terço, quando o agente recebeu a coisa em depósito necessário, na qualidade de tutor, curador, síndico, liquidatário, inventariante, testamenteiro ou depositário judicial, ou ainda em razão de ofício, emprego ou profissão.
Especificamente quanto à conduta de reter bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer as necessidades do cônjuge ou companheiro, podemos vislumbrar uma série de condutas típicas e, portanto, criminosas, que não são levadas ao juízo competente para a devida apuração. E como se materializa essa conduta de “reter bens, valores e direitos ou recursos econômicos”? Ora, as formas são as mais diversas e todos os que militam na advocacia de família as conhecem muito bem.
O cônjuge meeiro que toma para si o quinhão dos bens móveis que deveria repassar à mulher, usufruindo sozinho dos frutos dos bens comuns, está se apropriando de bem móvel alheio. A conduta é semelhante àquela tipificada como apropriação indébita previdenciária e que consiste em deixar de repassar à Previdência Social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional (CP, art. 168-A). O meeiro deixa de repassar à meeira, por exemplo, os dividendos das ações de uma sociedade que pertencem aos dois.
Até a partilha dos bens, é corriqueiro que o cônjuge ou companheiro na posse dos bens amealhados durante a conjugalidade, pelo esforço comum e, por isso mesmo, reconhecidamente bens comuns partilháveis, sonegue ao meeiro a sua parte dos frutos, recebendo sozinho aquilo que seria destinado a ambos. A conduta do homem, recebedor da integralidade dos alugueres de imóvel pertencente a ambos os cônjuges ou conviventes, por exemplo, equivale à retenção ou apropriação de bens ou recursos econômicos, exatamente como previsto na Lei nº 11.340/06. Ou seja, apropriação indébita cometida com violência doméstica, na modalidade violência patrimonial.
Outra conduta que pode configurar a violência patrimonial, mediante a retenção de recursos econômicos, consiste em furtar-se ao pagamento de pensão alimentícia arbitrada em benefício da mulher, especialmente por se tratar de valor destinado a satisfazer necessidades vitais. Ora, o devedor de alimentos que, condenado ao pagamento de verba alimentar indispensável à subsistência da mulher, deixa, dolosamente, de cumprir com a sua obrigação não estaria se apropriando indevidamente de valores que pertenceriam à mulher credora dos alimentos?21.
O tipo previsto no art. 168 é essencialmente comissivo, ou seja, pra- ticado mediante a ação de apropriar-se e o objeto material é a coisa móvel. O cônjuge alimentante que mesmo dispondo de recursos econômicos adota subterfúgios para não pagar ou para retardar o pagamento de verba alimentar está, em outras palavras, retendo ou se apropriando de valores que pertencem à mulher, com o agravante de tais recursos destinarem-se à própria sobrevivência daquele cônjuge.
Ainda que assim não o fosse, não sendo possível o enquadramento dessa conduta no tipo da apropriação indébita, a violência patrimonial do devedor de alimentos, de qualquer forma, estaria materializada pela prática do crime de abandono material, previsto no art. 244 do CP:
“Art. 244. Deixar, sem justa causa, de prover a subsistência do cônjuge, ou de filho menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente inválido ou maior de 60 (sessenta) anos, não lhes proporcionando os recursos necessários ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada; deixar, sem justa causa, de socorrer descendente ou ascendente, gravemente enfermo: (Redação dada pela Lei nº 10.741, de 2003)
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa, de uma a dez vezes o maior salário mínimo vigente no País. (Redação dada pela Lei nº 5.478, de 1968)
Parágrafo único. Nas mesmas penas incide quem, sendo solvente, frustra ou ilide, de qualquer modo, inclusive por abandono injustificado de emprego ou função, o pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada. (Incluído pela Lei nº 5.478, de 1968).”
O alimentante que frustra o pagamento de pensão alimentícia, sem demonstrar justa causa para o inadimplemento, responde pelo crime do art. 244. Não basta, naturalmente, o mero inadimplemento, suficiente para decretação da prisão civil, sendo necessário que o inadimplemento da pensão alimentícia judicialmente acordada não tenha causa justa, decorrendo da intenção livre e deliberada de inadimplir22.
Ressalte-se que o novo CPC promove importante incentivo à apuração e à punição desse crime, quando determina, à luz do art. 532, que verificando a conduta procrastinatória do devedor de alimentos o juiz estará obrigado a “dar ciência ao Ministério Público dos indícios da prática do crime de abandono material”.
É relevante pontuar, enfim, que não se há de falar em prisão por dívida quando configurado o crime de apropriação indébita mediante retenção de bens, valores e direitos ou recursos econômicos, ou ainda o crime de abandono material, pela frustração deliberada ao pagamento de pensão alimentícia, mas, sim, em prisão criminal.
Dificuldades para Punir a Violência Patrimonial
Do ponto de vista estritamente legal, as principais dificuldades para instauração dos processos criminais visando à proteção patrimonial da mu- lher decorrem das imunidades, no tocante aos crimes contra o patrimônio, localizadas nos arts. 181 e 182 do CP23:
“Art. 181. É isento de pena quem comete qualquer dos crimes previstos neste título, em prejuízo: (Vide Lei nº 10.741, de 2003)
I – do cônjuge, na constância da sociedade conjugal; (…)
Art. 182. Somente se procede mediante representação, se o crime previsto neste título é cometido em prejuízo: (Vide Lei nº 10.741, de 2003)
I – do cônjuge desquitado ou judicialmente separado;”
Ou seja, enquanto não se consumar a separação de fato ou de direito, o divórcio ou a dissolução da união estável, praticamente nada poderia ser feito – salvo se o crime for cometido com emprego de grave ameaça ou vio- lência contra a pessoa ou, ainda, quando a vítima for maior de 60 anos. É o que estabelece o art. 183 do CP:
“Art. 183. Não se aplica o disposto nos dois artigos anteriores:
I – se o crime é de roubo ou de extorsão, ou, em geral, quando haja emprego de grave ameaça ou violência à pessoa;
(…)
III – se o crime é praticado contra pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos. (Incluído pela Lei nº 10.741, de 2003).”
A interpretação jurisprudencial mais conservadora e ainda vigente não recepcionou a tese de que os arts. 181 e 182 do CP teriam sido derrogados pela Lei Maria da Penha, vale dizer, o entendimento no sentido de serem inaplicáveis os arts. 181 e 182 do CP aos crimes de violência doméstica e familiar. O STJ vem decidindo que esses dispositivos não foram afastados pela Lei Maria da Penha24.
Isso não deve nos desanimar ou servir de desestímulo ao uso das ferramentas do Direito Penal contra a violência patrimonial praticada contra as mulheres. Se o cônjuge já estava divorciado, separado de direito ou separado de fato, se a união estável já estava dissolvida, ou se já havia cessado a relação íntima de afeto, deve ser feita a representação para instauração da persecução penal. Se houve emprego de violência ou grave ameaça, ou se a vítima for maior de 60 anos, a ação penal poderá ser instaurada independentemente de representação e ainda na constância do casamento ou da união estável.
Demais disto, parece-nos plenamente defensável a aplicação da cláusula de exceção do art. 183 quando o crime contra o patrimônio é cometido com emprego de violência doméstica contra a mulher.
Porém, existem outras dificuldades que transcendem a legalidade. Es- tamos nos referindo ao silêncio, à omissão e à inatividade da vítima, fatores que só impulsionam o ciclo da violência. Nas palavras de Scarance, “o silêncio da vítima enquanto inação compreende uma gama de situações: a vítima não registra boletins de ocorrência contra o agressor; a vítima registra boletim de ocorrência contra o agressor, mas renuncia ao direito de representar; após noticiar a violência, a vítima se retrata e inocenta o agressor”25. A mesma autora aponta como fatores que contribuem para o silêncio da vítima: a vergonha, a crença na mudança do parceiro, a inversão da culpa, a revitimização pelas autoridades e o medo de reviver o trauma.
Entretanto, esses fatores parecem explicar melhor a inação das vítimas nas situações de violência física, violência sexual, violência psicológica e violência moral. Com mais razão, ainda, nas populações de mais baixa renda ou menor nível de escolaridade. Mas, de modo algum, explicam a inação das vítimas nos casos de crimes cometidos com violência patrimonial. Inação essa que se verifica até mesmo entre pessoas de alto padrão de renda e alto nível de escolaridade.
Basta se indagar: em quantos litígios de família, patrocinados por ad- vogados privados, derivam notícias, representações ou queixas a autoridades competentes tendo por objeto a violência patrimonial contra a mulher?
Temo que as razões para esses baixos números tenham muito mais a ver com a falta de ambiência do profissional do Direito com o processo protetivo da Lei Maria da Penha do que propriamente com a inação silenciosa da vítima.
Medidas Protetivas para Coibir a Violência Patrimonial no Curso das Ações de Família
A violência patrimonial descrita na Lei Maria da Penha, repita-se, guar- da correspondência com os demais crimes contra o patrimônio previstos no Código Penal e assim deve ser tratada. Os crimes são os mesmos e por todos conhecidos, com a agravante de serem praticados com emprego de violência patrimonial contra a mulher, em razão do gênero, e, por isso, submetidos, quanto ao rito, ao processo da Lei nº 11.340/06.
Cabe à mulher, portanto, sempre que sofrer violência patrimonial no curso do processo de separação, divórcio, dissolução de união estável, partilha de bens ou alimentos, quer pela prática de furto, destruição, apropriação ou retenção de bens ou valores pelo marido, ex-marido, companheiro ou ex- companheiro, comunicar o fato à autoridade policial, seguindo-se a queixa ou representação conforme o caso, para a instauração da competente ação penal.
Além das consequências penais, a lei também prevê medidas protetivas ao patrimônio da mulher, tanto no tocante à proteção da meação dos bens da sociedade conjugal como dos bens particulares, e que poderão ser adotadas em caráter liminar.
Essas medidas independem da instauração de ação penal e podem ser postuladas no juízo cível ou mesmo perante a própria autoridade policial, competente para receber a notitiacriminis, que, por lei, estará obrigada a remeter, no prazo de 48 horas, expediente apartado ao juiz com o pedido da ofendida, para a concessão de medidas protetivas de urgência26.
E esse pedido de concessão pode ser formulado diretamente pela suposta ofendida, não sendo necessário, portanto, que esteja acompanhada de advogado ou defensor público (art. 27 da Lei Maria da Penha).
As medidas protetivas de urgência assemelham-se às medidas provisionais anteriormente previstas no art. 888 do CPC de 197327. Pretendem prevenir os atos de violência familiar e doméstica ou o dano que deles eventualmente resulte, protegendo o patrimônio da mulher ou do casal. Por isso mesmo podem ser concedidas ao final do procedimento ou no seu curso, como tutela antecipatória, ou mesmo uma cautelar incidental no juízo de família.
Essas medidas estão previstas no art. 24 da Lei nº 11.340/06, a saber:
I) Restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à
Havendo prova da subtração, o juiz deve determinar ao agressor a res- tituição dos bens que hajam sido subtraídos. Essa subtração, como vimos em tópico anterior, pode se referir tanto aos bens particulares da mulher como aos bens comuns do casal que tenham permanecido em poder exclusivo do ofensor. Como bem coloca Maria Berenice Dias, “se um bem comum é sub- traído pelo varão que passa a deter a sua posse com exclusividade, significa que houve a subtração da metade que pertence à mulher”28. Complementa Fredie Didier que, “havendo dúvida sobre a titularidade dos bens ou mesmo havendo interesse tão somente em conservá-los, impedindo o extravio ou dilapidação, poderá o juiz, a requerimento ou de ofício, determinar o seu arrolamento, na forma dos arts. 855 e seguintes do CPC, inclusive com a nomeação de depositário”29.
II) Proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em
Trata-se, certamente, da medida de proteção patrimonial mais importante prevista na Lei nº 11.340/06, consistente na vedação à prática de atos de disposição dos bens comuns. Essa é uma proteção indispensável, principalmente nas relações de união estável, hetero ou homoafetiva, e de namoro qualificado, uma vez que no casamento a mulher já goza da proteção prevista no art. 1.647, I, do CC, ao menos quanto aos bens imóveis.
A utilidade e a necessidade da medida eclodem, com mais vigor, quando envolvem os bens móveis, pois o agressor, mesmo casado em regime de comunhão, deles poderia dispor, em fraude ao patrimônio comum, sem a outorga obrigatória da mulher.
Essa medida tem a grande vantagem de retirar do agressor a capacidade de praticar determinados negócios jurídicos que tenham por objeto o patrimônio comum do casal ou os bens particulares da mulher, o que implica dizer que qualquer ato praticado contra a decisão judicial de indisponibilidade estará fora do plano de validade, passível de invalidação por nulidade (e não simples anulabilidade).
Evidentemente que não se pode deixar de considerar, nessas situações, a posição de eventuais terceiros de boa-fé que hajam transacionado com o ofensor. Daí a importância de se proporcionar a máxima publicidade à decisão judicial concessiva da medida protetiva. Nessa senda, a própria Lei compele o juiz a comandar a remessa de ofícios aos cartórios e repartições competentes para que averbem as restrições contra o agressor (art. 24, parágrafo único). Scarance Fernandes, com apoio em Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto, sugere que sejam expedidos ofícios ao Cartório de Registro de Imóveis (para os atos de disposição do patrimônio comum), ao Cartório de Notas (para suspensão de procuração), à Junta Comercial e ao Cartório de Registro das Pessoas Jurídicas (quando vítima e ofensor integrarem a mesma pessoa jurídica) e ao Departamento de Trânsito quanto à venda de veículos30.
Destaque-se, finalmente, que a medida protetiva não se restringe à alienação de bens, mas também à aquisição e à locação. Como bem observa Didier, “não só a venda do patrimônio comum pode causar prejuízo à ofendida, também a compra de bens pode ensejar a sua ruína. É válido lembrar que o art. 1.643 do Código Civil autoriza os cônjuges a, independentemente de autorização um do outro, (i) comprar, ainda que a crédito, as coisas necessárias à economia doméstica; e (ii) obter, por empréstimo, as quantias que a aquisição dessas coisas possa exigir. Em complemento, o art. 1.644 diz que as dívidas contraídas para os fins do artigo antecedente obrigam solidariamente ambos os cônjuges. Daí a importância da vedação, pelo juiz, da celebração de contratos de compra, sobretudo quando importar dispêndio de vultosa quantia. Por fim, a locação dos bens comuns também pode ser vedada, principalmente a locação de imóvel urbano comum, que, em regra, independe de autorização do cônjuge, salvo se celebrado o contrato por prazo igual ou superior a 10 anos (art. 3º da Lei Federal nº 8.245/91)”31.
III) Suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao
Para os casos em que a mulher outorgou procuração ao ofensor, a Lei permite ao juiz suspender a eficácia do ato, vedando ao mandatário a celebração de atos e negócios contrários aos interesses da mulher. Nesse particular, poder-se-ia indagar da utilidade da medida, quando o mandato, em regra, é revogável e a vítima poderia perfeitamente revogar a procuração independentemente de ordem judicial.
Explica Didier que essa medida “ganha importância sobretudo naqueles casos em que a procuração é irrevogável, ou quando a sua revogação implicar o pagamento de perdas e danos (arts. 683 a 685 do CC). É importante, também aqui, que se faça uma divulgação mais ampla possível da decisão judicial, a fim de não ferir direitos e interesses de terceiros de boa-fé (art. 24, parágrafo único). Também é importante dar ciência imediata e inequívoca da decisão ao próprio agressor”32.
IV) Prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas edanos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida.
Sempre que a violência patrimonial resultar em danos materiais para mulher, como nos casos de destruição ou subtração de bens, e estes não tenham sido reparados voluntariamente pelo agressor, forçando a vítima à adoção das providências legais, o juiz poderá determinar a prestação de caução provisória mediante depósito judicial, a ser feito pelo ofensor, para garantia da reparação das perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida.
Destaque-se, finalmente, que esse elenco de medidas, previsto no art. 24 da Lei Maria da Penha, não é exaustivo, podendo o juiz determinar outras medidas inominadas de proteção patrimonial da mulher. Cada situação concreta haverá de ditar qual a mais apropriada e poderá exigir, inclusive, uma decisão construtiva do magistrado. Por isso, acrescenta Didier que “subsiste um verdadeiro princípio da atipicidade das medidas protetivas de urgência, o que corrobora a tendência, já estabelecida no ordenamento processual civil no que diz respeito à tutela específica dos deveres de fazer, não fazer e dar coisa distinta de dinheiro (arts. 461 e 461-A do CPC), de conferir ao magistrado a possibilidade de se valer, em cada caso concreto, da medida que reputar mais adequada, necessária e proporcional para alcançar o resultado almejado, ainda que tal medida não esteja prevista ou regulamentada na lei. Essa é a forma encontrada para manter a abertura do sistema”33. Conclui o autor lembrando que, “a despeito de se exigir a provocação do Ministério Público ou da ofendida para que o juiz possa conceder as medidas protetivas de urgência (art. 19), não está o magistrado adstrito ao pedido. Desse modo, pode conceder medida diversa daquela pleiteada. Isso se revela ainda mais evidente nos casos em que a medida é requerida diretamente pela ofendida, que muitas vezes desconhece os seus direitos e a proteção que lhe é garantida pela lei. Esta assertiva tem assento na própria Lei Maria da Penha, que, no seu art. 22, 4º, determina que se aplique, no que couber, o caput do art. 461 do CPC.
O referido dispositivo, por sua vez, determina que o juiz conceda a tutela específica dos deveres de fazer e de não fazer ou assegure o resultado prático equivalente ao do adimplemento. Com isso, quer dizer que o magistrado está autorizado a conceder medida diversa daquela pleiteada, sem ofensa ao princípio da congruência objetiva, desde que isso seja necessário para a tutela do bem da vida que se pretende alcançar”.
1) Desde os tempos do Antigo Testamento, passando pelo Império Romano até a Europa feudal e chegando à América do século XX, subsiste a ideia de que os homens são superiores às Quase todas as leis religiosas, tais como a Bíblia Cristã, o Talmude, o Alcorão, o Livro dos Mórmons, pregam a superioridade masculina, concedendo ao homem o direito de dominar a mulher. E os conceitos machistas foram transportados para as leis seculares e vigoram até hoje em muitos países.
2) Revista Consultor Jurídico, 6 de setembro de
3) “HABEAS CORPUS. LEI MARIA DA PENHA. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA PSICOLÓGICA. DEFERI- MENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS PREVISTAS NA LEI Nº 340/06. PREVISÃO LEGAL. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. NEGATIVA DE AUTORIA. IMPOSSIBILIDADE DE ANÁLISE EM SEDE DE HABEAS CORPUS. DENEGAÇÃO DA ORDEM. Os crimes de violência doméstica, em geral, são praticados no âmbito familiar, não havendo, pois, testemunhas presenciais, pelo que a palavra da vítima é suficiente para o deferimento de medidas protetivas. Não incorre em cerceamento de defesa o deferimento de tais medidas imediatamente sem a manifestação do Ministério Público ou a oitiva do suposto agressor, porquanto se trata de medida cautelar para coibir e prevenir a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher. A violência doméstica e familiar não envolve somente a violência física e a sexual, mas também a violência psicológica, patrimonial e moral. Havendo, na narrativa da vítima, descrição de violência psicológica ou, até mesmo, moral, configurado está o crime, em tese, insculpido no § 9º do art. 129 do CódigoPenal. Ordem denegada.” (TJMG, Habeas Corpus Criminal 1.0000.09.489855-8/000, Rel. Des. Alexandre Victor de Carvalho, Quinta Câmara Criminal, j. 31.03.09, publicação da súmula em 17.04.09)
4) Essa manifestação da violência patrimonial é mais relatada nas situações em que o agressor quebra móveis e eletro- domésticos, atira objetos pela janela, rasga roupas e documentos, fere ou mata animais de estimação.
5) A Organização Mundial de Saúde, por sua vez, considera esse tipo de violência como uma questão de saúde pública.
6) “PROCESSO PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. RELAÇÃO HO- MOAFETIVA PRETÉRITA. VULNERABILIDADE DEMONSTRADA PELA RELAÇÃO DE AFETO. COM- PETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIALIZADO NO COMBATE À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A 1. De acordo com o art. 5º da Lei nº 11.340/06, o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher é competente para processar e julgar infrações penais cuja motivação seja a opressão à mulher, podendo figurar como sujeito ativo tanto homens quanto mulheres. 2. No caso em tela, a violência decorreu de relação homoafetiva pretéria entre mulheres, estando caracterizada a situação de vulnerabilidade por conta da relação de afeto. Ademais, o fato de as contendoras não residirem sob o mesmo teto não descaracteriza a violência doméstica, eis que, conforme arts. 5º, III, da Lei Maria da Penha e 1º da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, pode ocorrer em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. 3. Recurso em sentido estrito conhecido e provido.” (TJAM, Recurso em Sentido Estrito 0204416-91.2014.8.04.0020, Relª Carla Maria Santos dos Reis)
7) “CONFLITO DE COMPETÊNCIA. LEI MARIA DA VÍTIMA. HOMEM. A Lei Maria da Penha foi criada para dar proteção à mulher. Quando a vítima do crime for um homem, não se aplica a Lei Maria da Penha. No caso, a imputação é de crime contra a honra do companheiro, por ter este sido ofendido sob a imputação de ter se apoderado de dinheiro da sogra. No caso criminal concretizado em juízo, foi o homem que se sentiu vítima pelas ofensas, e não as mulheres (autoras das ofensas). Conflito de competência procedente.” (TJRS, Conflito de Jurisdição 70042334987, Terceira Câmara Criminal, Rel. Nereu José Giacomolli, j. 19.05.2011). Entretanto, se a vítima, não obstante fisicamente homem, for transexual, já decidiu o TJSP pela aplicação da Lei Maria da Penha.
8) Esse é o punctum saliens: diferenciar os crimes em que a vítima pertence ao gênero feminino daqueles em que o crime é cometido contra a mulher em razão do gênero.
9) A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) indeferiu habeas corpus (HC 446), no qual a Defensoria Pública da União (DPU) pedia a substituição da pena privativa de liberdade por sanção restritiva de direitos a um condenado à pena de três meses de detenção, em regime aberto, pelo crime de lesão corporal praticado em ambiente doméstico contra a esposa.
10) “Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: (…) IV – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;”
11) “Art. Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel.”
12) “Art. Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência.”
13) “PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. FURTO QUALIFICADO POR ABUSO DE CONFIANÇA (ART. 155, 4º, II, DO CÓDIGO PENAL). (…). O agente que comercializou os bens subtraídos da residência da vítima para adquirir substância entorpecente pratica o crime de furto consumado, pois houve a inversão da posse. A recuperação da coisa furtada não implica na atipicidade da conduta delituosa. Configura abuso de confiança a conduta do agente que, logo após sair de clínica para tratamento de dependentes químicos, consegue abrigo por liberalidade da sua ex-companheira e subtrai parte da mobília que guarnece a parte da residência que foi entregue para hospedagem. Parecer da PGJ pelo conhecimento e desprovimento do recurso. Recurso conhecido e desprovido.” (TJSC, ACR 486.201, 2010.048620-1, Rel. Carlos Alberto Civinski, j. 11.08.2011, Quarta Câmara Criminal, de São João Batista)
14) FERNANDES, Valéria Dias Lei Maria da Penha: o processo no caminho da efetividade: abordagem jurídica e multidisciplinar. São Paulo: Atlas, 2015. p. 106.
15) “APELAÇÃO FURTO QUALIFICADO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. ALTA REPROVABILIDADE DA CONDUTA. AUSÊNCIA DE DOLO. INOCORRÊNCIA. REDIMENSIONAMENTO DA PENA. NECESSIDADE. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. Constatada a maior reprovabilidade de que é dotado o furto praticado durante o repouso noturno, contra a ex-companheira, a favor de quem já existiam medidas protetivas de urgência deferidas contra o recorrente e, ainda, mediante o rompimento de obstáculo, resta inviabilizado o reconhecimento do princípio da insignificância. Tampouco se revela cabível a absolvição do recorrente ao argumento de ausência de dolo, havendo o autor confessado em juízo a retirada não autorizada dos bens da vítima, sendo irrelevante o objetivo de lucro, não se fazendo comprovada nos autos, ainda, a sua intenção de apenas chatear a ofendida, mormente em se considerando que os bens não foram devolvidos espontaneamente . Inadequadamente sopesadas as circunstâncias judiciais a permearem a prática delitiva, impõe-se o redimensionamento da pena imposta.” (TJMG, APR 10134130002212001, Rel. Matheus Chaves Jardim, j. 12.02.2015, Câmaras Criminais/Segunda Câmara Criminal, publ. 02.03.2015)
16) “Art. 163. Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia: Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa.”
17) “RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL PENAL. CRIME DE AMEAÇA PRATICADO CONTRA IRMÃ DO RÉU. INCIDÊNCIA DA LEI MARIA DA ART. 5º, INCISO II, DA LEI Nº 11.340/06. COMPETÊN- CIA DO JUIZADO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER DE BRASÍLIA/DF. RECURSO PROVIDO. 1. A Lei nº 11.340/06, denominada Lei Maria da Penha, tem o intuito de proteger a mulher da violência doméstica e familiar que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, sendo que o crime deve ser cometido no âmbito da unidade doméstica, da família ou em qualquer relação íntima de afeto. 2. Na espécie, apurou-se que o réu foi à casa da vítima para ameaçá-la, ocasião em que provocou danos em seu carro ao atirar pedras. Após, foi constatado o envio rotineiro de mensagens pelo telefone celular com o claro intuito de intimidá-la e forçá-la a abrir mão ‘do controle financeiro da pensão recebida pela mãe’ de ambos. 3. Nesse contexto, inarredável concluir pela incidência da Lei nº 11.343/06, tendo em vista o sofrimento psicológico em tese sofrido por mulher em âmbito familiar, nos termos expressos do art. 5º, inciso II, da mencionada legislação. 4. ‘Para a configuração de violência doméstica, basta que estejam presentes as hipóteses previstas no art. 5º da Lei nº 11.343/06 (Lei Maria da Penha), dentre as quais não se encontra a necessidade de coabitação entre autor e vítima’ (HC 115.857/ MG, 6ª T., Relª Minª Jane Silva [Desª Conv. do TJMG], DJe 02.02.09). 5. Recurso provido para determinar que o Juiz de Direito da 3ª Vara do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Brasília/DF prossiga no julgamento da causa.” (REsp 1.239.850/DF, Relª Minª Laurita Vaz, Quinta Turma, j. 16.02.2012, DJe 05.03.2012)
18) Essa, segundo Scarance, seria a maior dificuldade de aplicação da Lei no tocante ao crime de “Por se tratar em regra de ação penal privada, a vítima depende da contratação de um advogado ou da intervenção de um Defensor Público para ingressar com a queixa-crime. Caso não seja devidamente orientada na Delegacia, pode deixar trans- correr o prazo decadencial” (Op. cit., p. 107). Infelizmente tem razão a autora e raríssimas são as queixas por crime de dano, como igualmente raras são aquelas decorrentes de crimes contra a honra. Essa é uma postura omissiva da vítima que só contribui com a impunidade. Mas não se pode negar, por outro lado, que esse silêncio constitui um dos traços mais estigmatizantes da violência doméstica em qualquer lugar do mundo.
19) “Art. Frustrar, mediante fraude ou violência, direito assegurado pela legislação do trabalho: Pena – detenção de um ano a dois anos, e multa, além da pena correspondente à violência. (Redação dada pela Lei nº 9.777, de 29.12.1998) § 1º Na mesma pena incorre quem: (…) II – impede alguém de se desligar de serviços de qualquer natureza, mediante coação ou por meio da retenção de seus documentos pessoais ou contratuais. (Incluído pela Lei nº 9.777, de 1998).”
20) “Art. Apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção: Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa.”
21) Nesse sentido o Enunciado aprovado no X Congresso Brasileiro de Direito de Família, em outubro de 2015: “Enunciado O alimentante que, dispondo de recursos econômicos, adota subterfúgios para não pagar ou para retardar o pagamento de verba alimentar incorre na conduta descrita no art. 7º, inc. IV da Lei nº 11.340/2006 (violência patrimonial)”.
22) Nesse sentido é a orientação da jurisprudência: “PENAL. ABANDONO MATERIAL. DEIXAR DE PAGAR PENSÃO ALIMENTÍCIA JUDICIALMENTE FIXADA. DOLO CONFIGURADO. JUSTA CAUSA NÃO DEMONSTRADA. Aquele que deixa de prover a assistência ao filho menor, frustrando o pagamento de pensão alimentícia, sem demonstrar justa causa para o inadimplemento, responde pelo crime do 244 do Código Penal” (TJMG, APCR 1.0084.14.000322-3/001, Rel. Des. Júlio Cezar Guttierrez, j. 22.07.2015, DJEMG 28.07.2015).
23) Para Scarance, “o processo por violência patrimonial tem sua efetividade prejudicada graças às imunidades absoluta e relativa previstas nos 181 e 182 do Código Penal. Em nada adiantou a Lei Maria da Penha disciplinar a violência patrimonial se persistem no ordenamento normas de isenção de pena ou condicionantes da ação à representação. Tais imunidades deveriam ter sido revogadas ou, ao menos, deveria ser mantida apenas a imunidade relativa” (Op. cit., p. 110-111).
24) “RECURSO ORDINÁRIO EM HABEASCORPUS. TENTATIVA DE ESTELIONATO (ART. 171 C/C O 14, INCISO II, AMBOS DO CÓDIGO PENAL). CRIME PRATICADO POR UM DOS CÔNJUGES CONTRA O OUTRO. SEPARAÇÃO DE CORPOS. EXTINÇÃO DO VÍNCULO MATRIMONIAL. INOCORRÊNCIA. INCIDÊNCIA DA ESCUSA ABSOLUTÓRIA PREVISTA NO ART. 181, INCISO I, DO CÓDIGO PENAL. IMUNIDADE NÃO REVOGADA PELA LEI MARIA DA PENHA. DERROGAÇÃO QUE IMPLICARIA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE. PREVISÃO EXPRESSA DE MEDIDAS CAUTELARES PARA A PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO DA MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR. INVIABILIDADE DE SE ADOTAR ANALOGIA EM PREJUÍZO DO RÉU. PROVIMENTO DO RECLAMO. 1. O art. 181, inciso I, do Código Penal estabelece imunidade penal absoluta ao cônjuge que pratica crime patrimonial na constância do casamento. 2. De acordo com o art. 1.571 do Código Civil, a sociedade conjugal termina pela morte de um dos cônjuges, pela nulidade ou anulação do casamento, pela separação judicial e pelo divórcio, motivo pelo qual a separação de corpos, assim como a separação de fato, que não tem condão de extinguir o vínculo matrimonial, não é capaz de afastar a imunidade prevista no inciso I do art. 181 do estatuto repressivo. 3. O advento da Lei nº 11.340/06 não é capaz de alterar tal entendimento, pois, embora tenha previsto a violência patrimonial como uma das que pode ser cometida no âmbito doméstico e familiar contra a mulher, não revogou, quer expressa, quer tacitamente, o art. 181 do Código Penal. 4. Ao se admitir que a Lei Maria da Penha derrogou a referida imunidade, se estaria diante de flagrante hipótese de violação ao princípio da isonomia, já que os crimes patrimoniais praticados pelo marido contra a mulher no âmbito doméstico e familiar poderiam ser processados e julgados, ao passo que a mulher que venha a cometer o mesmo tipo de delito contra o marido estaria isenta de pena. 5. Não há falar em ineficácia ou inutilidade da Lei nº 11.340/06 ante a persistência da imunidade prevista no art. 181, inciso I, do Código Penal quando se tratar de violência praticada contra a mulher no âmbito doméstico e familiar, uma vez que na própria legislação vigente existe a previsão de medidas cautelares específicas para a proteção do patrimônio da ofendida. 6. No Direito Penal não se admite a analogia em prejuízo do réu, razão pela qual a separação de corpos ou mesmo a separação de fato, que não extinguem a sociedade conjugal, não podem ser equiparadas à separação judicial ou ao divórcio, que põem fim ao vínculo matrimonial, para fins de afastamento da imunidade disposta no inciso I do art. 181 do estatuto repressivo. 7. Recurso provido para determinar o trancamento da ação penal apenas com relação ao recorrente.” (RHC 42.918/RS, Rel. Min. Jorge Mussi, Quinta Turma, j. 05.08.2014, DJe 14.08.2014)
25) Op. cit., p. 124.
26) Lei nº 340/06: “Art. 12. Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles previstos no Código de Processo Penal: (…) III – remeter, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, expediente apar- tado ao juiz com o pedido da ofendida, para a concessão de medidas protetivas de urgência; (…) § 1º O pedido da ofendida será tomado a termo pela autoridade policial e deverá conter: I – qualificação da ofendida e do agressor; II – nome e idade dos dependentes; III – descrição sucinta do fato e das medidas protetivas solicitadas pela ofendida. 2º A autoridade policial deverá anexar ao documento referido no § 1º o boletim de ocorrência e cópia de todos os documentos disponíveis em posse da ofendida. § 3º Serão admitidos como meios de prova os laudos ou prontuários médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde”.
27) “Art. 888. O juiz poderá ordenar ou autorizar, na pendência da ação principal ou antes de sua propositura: I – obras de conservação em coisa litigiosa ou judicialmente apreendida; II – a entrega de bens de uso pessoal do cônjuge e dos filhos; III – a posse provisória dos filhos, nos casos de separação judicial ou anulação de casamento; IV – o afastamento do menor autorizado a contrair casamento contra a vontade dos pais; V – o depósito de menores ou incapazes castigados imoderadamente por seus pais, tutores ou curadores, ou por eles induzidos à prática de atos contrários à lei ou à moral; VI – o afastamento temporário de um dos cônjuges da morada do casal; VII – a guarda e a educação dos filhos, regulado o direito de visita que, no interesse da criança ou do adolescente, pode, a critério do juiz, ser extensivo a cada um dos avós; (Redação dada pela Lei nº 12.398, de 2011) VIII – a interdição ou a demolição de prédio para resguardar a saúde, a segurança ou outro interesse público.”
28) DIAS, Maria A Lei Maria da Penhana justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica. 2. ed. São Paulo: RT, 2010. p. 117.
29) DIDIER , Fredie; OLVIEIRA, Rafael. Aspectos processuais civis da Lei Maria da Penha (violência doméstica e familiar contra a mulher). Disponível em: <http://www.evocati.com.br/evocati/artigos.wsp?tmp_codartigo=449>. Acesso em: 20 out. 2015.
30) Op. cit., p. 165.
31) Artigo cit.
32) Idem.
33) Idem.
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