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Repensando o Direito Civil Brasileiro (20): A pluralidade dos modelos de família e o legislador (parte 2)

CASAMENTO

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ENTIDADE FAMILIAR

FAMÍLIA

FAMÍLIA POLIAFETIVA

FAMÍLIAS HOMOAFETIVAS

HOMOAFETIVO

MODELOS

PLURALIDADE

UNIÃO ESTÁVEL

Felipe Quintella

Felipe Quintella

16/06/2017

No Repensando o Direito Civil Brasileiro (17), começamos uma reflexão sobre a pluralidade dos modelos de família e o legislador, pensando sobre o projeto de lei em trâmite no Senado que, na verdade, como concluímos, apenas ajustaria o Código Civil aos entendimentos do STF e do STJ sobre união estável e casamento homoafetivos.

Hoje, vamos finalizar — por ora, somente, é claro, pois o Direito precisa constantemente ser repensado — a reflexão, pensando sobre o referido projeto e o modelo de família poliafetiva.

Em primeiro lugar, deve-se estabelecer uma imprescindível premissa: família poliafetiva é uma expressão que se refere a um grupo de pessoas — mais de duas, necessariamente — que vive concomitantemente em um núcleo conjugal, ou seja, que mantêm relações sexuais, e com o intuito de constituir família, ou, em outras palavras, de estabelecer comunhão de vida. Não estão abrangidas no conceito, pois, outras situações, como a das famílias paralelas formadas por vínculo poligâmico, nem a dos “relacionamentos abertos”.

Reconhece-se, certamente, à luz do princípio da pluralidade dos modelos de família, que existem comportamentos poligâmicos, que levam pessoas a constituir vínculos de simples namoro ou de união estável paralelos,[1] porém sempre, cada um, com dois componentes apenas. Diferente é a situação de pessoas que se relacionam concomitantementecom outras duas ou mais. Nesta última situação é que, nos casos em que há no relacionamento o intuito de estabelecer comunhão de vida, surge a família poliafetiva.

Pois bem. Como vimos no Repensando (17), o projeto de lei em comento pretende alterar a redação do art. 1.723 do Código Civil, que passaria a ser a seguinte: “é reconhecida como entidade familiar a união estável entre duas pessoas, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”.[2]

Ora, ao retirar do texto original do dispositivo legal a referência a sexos — ohomem ea mulher —, mas incluir a quantidade de sujeitos — duas pessoas —, o legislador alteraria a lei para incluir as famílias homoafetivas, mas, ao mesmo tempo, para excluir as famílias poliafetivas. Isso, possivelmente, ou por distração na elaboração da nova redação proposta, ou pela vontade mesmo de, discretamente, vedar as uniões poliafetivas, como se a lei — sobretudo em sede de Direito de Família — tivesse o condão de alterar a realidade quanto ao comportamento afetivo das pessoas.

O resultado seria lamentável.

As famílias homoafetivas, mesmo após a promulgação da Constituição de 1988 — que fundou a República sobre a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III); estabeleceu como objetivos gerais construir uma sociedade livre, justa e solidária, além de promover o bem de todos, sem qualquer forma de discriminação (art. 3º, incs. I e IV); e que ainda consagrou como um dos direitos fundamentais a igualdade (art. 5º, caput e inc. I) — demoraram mais de vinte anos, de 1988 a 2011, para conseguir reconhecimento como entidades familiares, sendo tratadas até então, quando muito, como sociedades de fato.

Já as famílias poliafetivas, a despeito da promulgação da Constituição há quase trinta anos, vivem ainda hoje até mesmo à margem do debate jurídico. Mudança legislativa que acabe por excluí-las do que a lei considera união estável proverá argumento adicional para aqueles que — novamente, a despeito da Constituição — continuam não querendo lidar com essa realidade. O efeito seria terrível no sentido da negativa de reconhecimento, garantia e proteção de direitos aos que convivem nesse modelo de família.

Até que o Supremo Tribunal Federal venha a se pronunciar sobre o assunto, a dificuldade enfrentada por tais famílias se agravará se a alteração proposta para o art. 1.723 do Código Civil vier a ser efetivada.

A doutrina, no âmbito do Direito de Família, tem de atuar para evitar que se perpetue a absurda e inaceitável situação de falta de reconhecimento e desproteção de um modelo de família, apenas por ser diferente. Como esclareceu o Constituinte no preâmbulo da Constituição de 1988, a igualdade, a liberdade e a justiça, dentre outros, foram tomados como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos que o Estado Democrático instituído se destina a assegurar.


[1] O Direito brasileiro não admite a existência de casamentos paralelos, denominada, tecnicamente, bigamia (art. 1.521, IV do Código Civil e art. 235 do Código Penal) — o que aqui apenas se afirma, sem juízo de mérito.
[2] Vale lembrar que a redação original, ainda em vigor, é a seguinte: “Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.”

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