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A Dignidade e a Curatela

Nelson Rosenvald

Nelson Rosenvald

19/11/2015

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“O que os outros se diziam: que Sorôco tinha tido muita paciência. Sendo que não ia sentir falta dessas transtornadas pobrezinhas, era até um alívio. Isso não tinha cura, elas não iam voltar, nunca mais. De antes, Sorôco aguentara de repassar tantas desgraças, de morar com as duas, pelejava. Daí, com os anos, elas pioraram, ele não dava mais conta, teve de chamar ajuda, que foi preciso. Tiveram que olhar em socorro dele, determinar de dar as providências, de mercê. Quem pagava tudo era o Governo, que tinha mandado o carro. Por forma que, por força disso, agora iam remir com as duas, em hospícios. O se seguir.”

Em “Sorôco, sua mãe, sua filha”, Guimarães Rosa narra o momento em que um homem viúvo conduz a sua mãe e a sua única filha para a estação ferroviária. O destino de ambas era o manicômio de Barbacena. Esse brevíssimo conto de 4 páginas, que abre o livro “Primeiras estórias”, é uma pérola do maior escritor brasileiro de todos os tempos. Que me perdoe Machado de Assis…

Esse relato evidencia a triste procissão dos “trens de doido”, que diuturnamente abasteciam o manicômio de Barbacena com gente de todo o Brasil. Milhares de “ignorados de tal”, condenados a uma internação sem interdição, privados de sua liberdade e vida, sem que houvesse formal alteração em seu status personae. Alguns eram verdadeiramente insanos, outros, apenas mereciam maiores cuidados (epiléticos, deprimidos, alcoólatras). A maioria dos internos, infelizmente, eram os “párias sociais” (prostitutas, homossexuais, moradores de rua, militantes políticos, mães solteiras e gente incômoda de modo geral). Em comum, ninguém era civilmente incapaz, porém todos tinham a humanidade confiscada ao receberem o passaporte para o hospital. No “colônia”, pelo menos 60 mil pessoas morreram, tantos outros morreram de invisibilidade.

O fato é que a curatela jamais coincidiu com a pobreza e o miserável nunca foi um sujeito legalmente descapacitado. A índole patrimonialista da curatela naturalmente reservou a incidência do instituto para a gestão patrimonial do “louco abastado”. A acentuada preocupação com a conservação dos bens direcionou o legislador a elaboração de normas que exigissem cuidadosa prestação de contas da administração do acervo da pessoa interdita, mediante balancetes periódicos. Assim, a funcionalização da curatela à preservação de titularidades se prestou a duas palpáveis consequências: a uma, privou o curatelado de qualquer tipo de cuidado pessoal, propósito de tratamento ou recuperação, afinal ele estava imerso no acervo patrimonial; a duas, excluiu completamente da curatela as pessoas com deficiência psíquica, porém desprovidas de bens.

Atualmente, a subversão de valores constitucionais se reproduz pela farsa. Inegavelmente a via da curatela é franqueada a qualquer ser humano, independentemente de sua condição patrimonial, pois a curatela se funcionaliza à sedimentação da clausula geral de proteção e promoção da pessoa humana. Todavia, vivenciamos uma inexplicável epidemia de incapacitação de pessoas com deficiência, cuja lógica só se explica por um baixo índice civilizatório, retratado por uma subversão de valores, na qual se patrimonializa a curatela para a obtenção do mínimo existencial de famílias completamente marginalizadas e desassistidas pelo Sistema Universal de Saúde.

Nesse cenário há um grande número de pessoas que já nascem vulneradas, atingidas em sua dignidade, pela soma de condições adversas de ordem psicofísica, social e econômica, sem acesso ao direito fundamental à saúde, as quais seria em tese assegurado de modo igualitário através de ações e serviços para proteção, promoção e recuperação de todos que possuam impedimentos de longo prazo de natureza intelectual. A insuficiência de políticas públicas que contemplem vulnerabilidades específicas impede a efetivação do cuidado e tratamento de pessoas fragilizadas por toda a sorte de deficiências. Em busca de alguma solução ou paliativo, a falta de informação adequada associada à carência material culmina por conduzir essas pessoas ao processo de curatela. O resultado é uma indústria de interdições mal conduzidas, embasadas em frágeis perícias, reproduzidas com um impressionante automatismo e acolhidas por magistrados cuja percepção imediata da indigência familiar se sobrepõe à necessária sensibilidade acerca da real necessidade de submeter as pessoas à curatela. Pode-se admitir que o desfecho do processo gere uma presumida vulnerabilidade da pessoa incapaz. Todavia, é inadmissível que a única saída que o sistema propicie (ou tolere) para a tutela de uma pessoa vulnerada seja a naturalização da condição jurídica de incapaz.

Como consequência de um processo que já no nascedouro desvirtua a funcionalização da curatela, o curador fatalmente direcionará o valor do benefício para o mínimo existencial – quiçá o mínimo vital – da entidade familiar, sem que se imponha qualquer espécie de fiscalização judicial sobre a concretização dos cuidados médicos e afetivos essenciais ao processo de recuperação da pessoa ou minoração de sua condição de suscetibilidade. Causa espécie o desconhecimento da população sobre o fato de que o aludido benefício é obtido sem o requisito da curatela e da indigna privação da autonomia da pessoa com deficiência. Que a sociedade então preste atenção ao art. 40 do Novo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015): “É assegurado à pessoa com deficiência que não possua meios para prover sua subsistência nem de tê-la provida por sua família o benefício mensal de 1 (um) salário-mínimo, nos termos da Lei 8.742, de 7 de dezembro de 1993”. Infelizmente, a instrumentalização do processo a uma finalidade previdenciária culmina por oficializar, no Brasil do século XXI, uma realidade completamente infensa a afirmação de direitos fundamentais, sejam aqueles inseridos na Carta Constitucional, como os incorporados por Tratados Internacionais de Direitos Humanos. A civilização de um País, ensina PIETRO PERLINGIERI , “é medida com base no tratamento reservado as pessoas mais vulneráveis, aos marginalizados, aos diversamente hábeis, a efetiva concretização histórica da centralidade da pessoa”.

Post Scriptum- Em 10 de Outubro foi comemorado o Dia Mundial da Saúde Mental. A data foi observada pela primeira vez em 1992 e prossegue como data oficial até hoje. Iniciou como apenas uma atividade anual da Federação Mundial para a Saúde Mental e hoje se tornou o maior e mais difundido programa de educação em prol da dignidade das pessoas com deficiência.


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