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As leis orçamentárias já são impositivas desde a elaboração
Marcus Abraham
06/07/2015
Abaixo da Constituição, as leis orçamentárias são as mais importantes no país, já declarou o então ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Britto. Contudo, essas normas não têm sido devidamente respeitadas pelos governos federal, estadual e municipal. É o que afirma Marcus Abraham, desembargador do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (RJ e ES) e professor de Direito Financeiro da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, ele criticou as leis editadas pelo Congresso para obrigar o Poder Executivo a aplicar as despesas previstas nas normas. A razão da crítica é simples: o orçamento já é impositivo desde a sua elaboração.
ConJur — A lei orçamentária foi elencada pelo STF como a mais importantes abaixo da Constituição, mas dificilmente é cumprida no país. Na sua avaliação, porque isso acontece?
Marcus Abraham — No Direito Tributário, há uma frase que diz: “o tributo é o preço da liberdade”. Essa é uma frase muito repetida, e eu a complemento dizendo que o orçamento é o espelho da vida do Estado. Enquanto o tributo é o preço da liberdade, é o valor que a gente paga para garantir os direitos fundamentais e básicos do cidadão na sociedade — porque, afinal, sem recursos financeiros não há como se atender a sociedade; o orçamento, por sua vez, é o espelho da vida da sociedade, porque é através dele que o administrador se compromete a executar o que colocou no papel. Só que no Brasil há uma questão, que foi até muito discutida recentemente com a aprovação da Emenda Constitucional 86, a PEC do Orçamento Impositivo. O texto ganhou esse apelido porque vincula 1,2% das receitas à execução das emendas parlamentares. A grande verdade é que o nosso orçamento é impositivo desde a origem — ou seja, desde a sua elaboração até a sua execução, está vinculado aos preceitos constitucionais. Quando a Constituição estabelece uma série de direitos para o cidadão e deveres para o Estado — como à saúde, educação, previdência e outros —, o fez não como um mero conselho. Isso é um comando impositivo e categórico, que o administrador tem que seguir. A doutrina clássica sempre disse que o orçamento se origina de uma decisão política. Eu já venho dizendo, desde a primeira edição do meu livro, que não é uma decisão política. O orçamento não será montado apenas por uma conveniência ou ideologia do governante que está no poder. Ele tem que montá-lo lendo primeiro a Constituição e identificando o que a Carta Magna elege como prioridade.
ConJur — Mas isso não é o que ocorre.
Marcus Abraham — Isso não ocorre porque o administrador se sente livre para montar o orçamento dele, quando, na realidade, não está. Ele está ali para fazer valer o que a Constituição prevê para a sociedade. Ele é apenas um administrador público, eleito pelo povo para atender a sociedade conforme o que estabelece a Constituição. Isso tem a ver com outra temática muito discutida, que diz respeito à judicialização da saúde. Por que o cidadão vai ao Judiciário? Para pedir um direito que não foi executado pelo Estado. E por que não foi? Porque o orçamento, na origem, não foi elaborado conforme o que a Constituição prioriza. Se o gestor montasse um orçamento que atendesse às prioridades constitucionais, não haveria tanta judicialização. Não há nenhum país no mundo que consiga atender plenamente a sua sociedade, pois existe uma série de dificuldades de ordem de gestão, recursos humanos e materiais. Mas, certamente, se o orçamento fosse elaborado e executado pelos valores da Constituição não teríamos tantas dificuldades como hoje. E não apenas na saúde.
ConJur — Esse ambiente não torna a PEC do Orçamento Impositivo necessária? Como o senhor vê a proposta?
Marcus Abraham — A PEC vem exatamente para remediar um contingenciamento ao vincular [um percentual para] a execução orçamentária. Tenho restrições aos contingenciamentos, mas a PEC do Orçamento Impositivo tem a sua virtude, pois metade desses 1,2% tem que ir para a saúde, o que é bastante positivo. Mas de novo, nada disso aconteceria se o orçamento fosse encarado como uma peça compromissória e obrigatória da sua execução. E te digo mais: boa parte da doutrina clássica, que sempre pregou que essa decisão era política, hoje está mudando.
ConJur — A aprovação de uma emenda constitucional como essa, na sua avaliação, não dá margem para negociatas e barganhas entre os poderes?
Marcus Abraham — Sim. Na realidade, parte do contingenciamento também faz parte desse jogo. Não vou fazer uma crítica porque é o jogo democrático. O que a PEC do Orçamento Impositivo faz é garantir que um valor que foi programado seja executado. Volto a bater: o orçamento, como um todo, tem que ser impositivo. E mais: tem que ser impositivo desde a elaboração. Tem que ser elaborado conforme os valores constitucionais.
ConJur — Estamos vivendo um momento de ajuste fiscal, com um contingenciamento previsto superior a R$ 60 bilhões. O senhor acha que isso terá reflexo no que é direcionado à saúde e à educação, por exemplo? Como isso pode impactar no Judiciário?
Marcus Abraham — Sou favorável ao ajuste e ao equilíbrio fiscal. E sou contra gastos desnecessários. Mas independentemente do ajuste fiscal, sou favorável que se priorize gastos que devem ser feitos. Por exemplo, o Governo Federal gastou, no ano passado, quase R$ 1 bilhão com passagens aéreas e quase R$ 800 milhões com publicidade institucional. A pergunta que eu faço, como um cidadão é: o que é mais importante? Garantir a saúde, a vida e a educação, como a Constituição determina, ou garantir uma boa imagem governamental? Hoje, em um mundo com altas tecnologias, será que são necessárias tantas viagens que justifiquem tantos gastos com passagens aéreas? Entrando no ajuste fiscal, o que tem que ser cortado é o supérfluo. Estamos falando de contingenciamentos, mas não deste atual, porque ainda não o analisei. Mas identifiquei um relatório do Tribunal de Contas da União, assinado pelo então presidente, ministro Benjamin Zymler, que analisa os contingenciamentos na área da saúde entre 2010 e 2014. No período, foram contingenciados — portanto, previstos e não gastos na área da saúde — R$ 20 bilhões. Me pergunto, então, o que a Constituição estabeleceu como mais importante: fazer superavit ou prestar saúde e educação? Parece-me que contingenciar recursos da saúde para fazer superavit é priorizar uma questão econômica em detrimento de uma questão da saúde.
ConJur — O senhor acha que esse contingenciamento aumentará o número de ações?
Marcus Abraham — Não tenho como afirmar. O que posso dizer é que sempre se contingenciam recursos da saúde e da educação. Então, esses direitos continuarão a ser buscados na via do Judiciário.
ConJur — Com relação aos dados que o senhor analisou, a título de comparação, quais foram os gastos do governo com questões, digamos, menos urgentes?
Marcus Abraham — Segundo dados da própria Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, a Administração Direta Federal gastou R$ 761 milhões em ações de publicidade institucional sobre os programas governamentais. Esse dado, extraí de uma reportagem da Folha de S.Paulo. Em 2014, foram aplicados R$ 1 bilhão e R$ 282 milhões em despesas com passagens aéreas e locomoção no serviço público federal e R$ 385 milhões em serviços de consultoria. Esses dados foram extraídos do Portal da Transparência. Agora com relação à saúde, como já disse, o relatório de fiscalização da saúde de 2013, do Tribunal de Contas da União, identificou que, nos últimos cinco anos, R$ 20 bilhões e R$ 400 milhões foram contingenciados. No ano de 2012, metade disso, R$ 9,6 bilhões, foram contingenciados da área da saúde. Era dinheiro que estava no orçamento e era para ser usado em hospitais, medicamentos e recursos humanos. Na hora em que isso acontece, a disponibilidade de saúde para o cidadão é reduzida, mas a necessidade dele continua a mesma. Então, ele tem que ir ao Judiciário e aí vemos toda essa judicialização da saúde e dos demais direitos sociais. O problema está na origem: o orçamento elaborado e impositivo tinha que ser executado. Assim talvez não vivêssemos esse drama. A Constituição estabelece as prioridades. Falta o governante entender que tem que respeitá-las.
ConJur — Recentemente o presidente do Supremo, ministro Ricardo Lewandowski, afirmou que como um cidadão entende a necessidade do ajuste, mas enquanto chefe de um poder, tem que reivindicar o aumento para o Judiciário, que inclusive que está em discussão no Congresso. Como o senhor avalia isso?
Marcus Abraham — Como falei, são prioridades… A Constituição estabelece as prioridades. E quando ela diz que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”, assim como a educação e os outros direitos sociais, os governantes e todos os demais gestores devem estabelecer uma ordem de prioridades. Afinal, Rui Barbosa já dizia: “a Constituição não dá conselhos”. Na realidade, a Carta tem comandos imperativos, que devem ser seguidos. A prioridade é a vinculação ao texto constitucional.
ConJur — No seu livro, o senhor aborda a dependência, principalmente dos municípios, aos repasses interestaduais. Isso é ruim?
Marcus Abraham — Em um capítulo novo, sobre a problemática do federalismo fiscal, discuto questões como a guerra fiscal e trato da dependência dos municípios aos repasses, principalmente do Fundo de Participação dos Municípios. Alguns estados também dependem do Fundo de Participação dos Estados. E estes estados e municípios acabam também dependendo de outras fontes de recursos que não lhes são próprias como, por exemplo, os royalties. Esse problema vem desde a formação da nossa federação. Temos hoje 5.560 municípios, a grande maioria com menos de 50 mil habitantes. São municípios que têm uma máquina administrativa própria, mas não têm uma estrutura administrativa suficiente nem uma base econômica instalada que lhes deem capacidade arrecadatória. Então, eles não conseguem cobrar os tributos que a Constituição lhes atribuiu, como o ISS [Imposto sobre Serviço], o IPTU [Imposto Predial e Territorial Urbano] e o ITBI [Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis], que lhes dariam autossuficiência financeira. Então, dependem dos repasses e isso acaba gerando o que chamo de acomodação municipal. Porque se eles conseguem sobreviver minimamente com esses recursos, acabam se acomodando e não tentam programar a administração para que, aos poucos, consiga montar a sua estrutura arrecadatória. Tampouco estimulam uma base econômica local e, assim, acabam dependentes de recursos que vêm de fora. A meu ver, o mesmo bolo financeiro para um número cada vez maior de estruturas administrativas faz com que os recursos públicos sejam, cada vez mais, direcionados à estrutura administrativa e menos ao cidadão. Questiono-me sobre a necessidade dessa imensa quantidade de estruturas administrativas, que se replica e consome recursos públicos, e que gera essa acomodação e a guerra fiscal. Quem acaba perdendo é o cidadão.
ConJur — Qual seria a solução para a questão da dependência?
Marcus Abraham — Acho que a solução depende de uma reforma política. Uma reforma tributária também seria bem-vinda. Mas a autonomia que a Constituição de 1988 estabeleceu para os municípios não é apenas administrativa nem política. Precisa também ser uma autonomia financeira. Se a Constituição dá obrigações aos municípios, recursos financeiros necessariamente têm que lhes ser atribuídos. O problema no Brasil de hoje é o desequilíbrio entre a autonomia administrativa e política versus a autonomia financeira, porque quem não tem autonomia financeira acaba dependendo de terceiros. Esse equilíbrio entre os recursos e a obrigação de fazer é que precisa ser repensado no país.
ConJur — Segundo o CNJ, mais da metade das ações judiciais nos tribunais são execuções fiscais. Na sua opinião, o Judiciário poderia ajudar com a arrecadação se julgasse os processos de forma mais rápida?
Marcus Abraham — Fui procurador da Fazenda Nacional por 12 anos e conheço um pouco da mecânica. Não sei se é possível ao Judiciário, fisicamente, acelerar essas ações. A realidade que conheço é o empenho dos magistrados em geral de movimentar todos os processos a partir de critérios objetivos. Acho que deve haver em relação a toda dívida ativa — e não apenas do estado e do município, mas da União também — um trabalho em conjunto das secretarias de fazenda no sentido de se depurar com maior qualidade o crédito tributário inscrito e cobrado. Muitos desses créditos padecem de certa legitimidade e legalidade, merecem uma revisão. Então, esse seria o primeiro ponto. O segundo ponto seria trabalhar parte dessa cobrança em outra via de recuperação de crédito, como a transação ou a mediação entre credor e a União, estados e municípios. Temos não apenas um sistema tributário muito oneroso, mas temos principalmente um sistema tributário muito complexo e difícil de ser atendido, com normas diariamente sendo alteradas. Isso torna cada vez mais difícil ao cidadão cumprir o seu dever fundamental de pagar seus tributos. Uma coisa acaba alimentando a outra. Então, acho que há outro trabalho a ser feio. Na realidade, a gente chega na questão da reforma tributária.
ConJur — Em sua opinião, o Brasil evoluiu com a edição de leis como da Transparência e da Responsabilidade Fiscal?
Marcus Abraham — Evoluímos muito. Saímos de um período sombrio, mas somos ainda uma democracia jovem, então há muito o que se amadurecer. Sem dúvida, desde a Lei de Responsabilidade Fiscal muita coisa na seara financeira melhorou, apesar de termos muito o que melhorar. Todas as leis que trazem maior transparência, como a Lei de Acesso à Informação, e decisões, como a que foi recentemente proferida pelo STF com relação à transparência das operações do BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social], nos mostra que estamos caminhando para um momento muito melhor.
ConJur — Mesmo diante do cenário de operações como a “lava jato”, que aponta desvios de bilhões Petrobras?
Marcus Abraham — Esse é um cenário muito angustiante para qualquer cidadão, triste até. Mas será que não estamos dando um passo? Acho que estamos caminhando para uma limpeza. Nossa Constituição tem 25 anos. Estamos nesse regime sólido, democrático e que preza pela moralidade, ética e transparência há apenas um quarto de século. Não há o que se comparar com o regime democrático norte-americano, por exemplo, que tem uma constituição com mais de duzentos anos. Estamos caminhando e eu sou muito otimista, mais ainda porque vejo o Direito Financeiro como uma ferramenta do cidadão.
ConJur — Como a gente pode estimular que o cidadão comum a fiscalizar?
Marcus Abraham — A primeira coisa é esclarecer que ele pode participar. Há um trabalho sendo feito pelos governos estaduais e alguns municipais, de implementar programas de educação fiscal. Acho que eles ainda estão muito embrionários. Então, o primeiro ponto é fazer com que o cidadão saiba que pode participar. O segundo é fazer com que ele saiba como pode participar. Faço uma analogia entre o cidadão e o orçamento público com o morador de um edifício residencial. Aquele morador que não vai à assembleia escolher seu síndico ou aprovar as contas faz a mesma coisa que o cidadão que não participa das questões financeiras do seu país. Há muito para participar. A transparência fiscal vem nos dando informações diretas nos sites, então podemos tentar acompanhar minimamente o que está sendo gasto e aonde está sendo contingenciado. Quando o Governo Federal, no ano passado, editou o decreto dos conselhos populares, identifiquei ali o orçamento participativo. Ou seja, a participação do cidadão por meio de sugestões, que ficam a critério do gestor acolhê-las ou não. O cidadão não tem a visão do todo, olha para o problema dele, mas é o destinatário final. Então, ninguém melhor do que ele pra apontar ao governante onde é necessário tal gasto. O cidadão deve participar e tem mecanismos para participar. A participação do dele faz parte do processo de amadurecimento que o Brasil está vivendo.
Fonte: Conjur
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Veja também:
- Os 15 anos da Lei de Responsabilidade Fiscal
- Orçamento platônico
- Orçamento Participativo e sem prejuízo
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