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A Constituição do Algoritmo

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12/07/2023

O mundo de hoje está regido, essencialmente, por algoritmos desenhados pelas grandes companhias tecnológicas, que configuram os processos comunicativos, em grande medida, em função de seus interesses econômicos. Desde o ponto de vista do constitucionalismo, esses algoritmos e a realidade virtual que é gerada estão provocando rupturas importantes que poderiam ser caracterizadas do seguinte modo:

  1. A primeira ruptura é a do contexto cultural da constituição, com a configuração de novos fatores de legitimação que correspondem aos fatores de poder globais do nosso tempo, em particular, os tecnológicos1. Novas pautas culturais e novos paradigmas estão se impondo, transformando a cultura constitucional, provocando um esvaziamento da densidade constitucional de direitos e instituições e dificultando a realização das funções da constituição: o controle de poder, a garantia dos direitos e a canalização dos conflitos sociais e políticos fundamentais.
  2. A segunda é a ruptura da constituição como referente cultural unitário (constituição analógica v. constituição digital). Essa cisão origina outras muitas rupturas que afetam o ordenamento jurídico, o sistema de fontes do direito e os direitos constitucionais. Em geral, não se pode deixar de assinalar a existência de uma certa incompatibilidade entre os algoritmos e a vertente processual da democracia pluralista e do Direito Constitucional, como processo público, plural e participativo2.
  3. A terceira ruptura é produzida entre a realidade física e a realidade virtual. A primeira continua sendo regulada pelo Estado por meio do Direito Público. A segunda tem um alcance global e é ordenada, essencialmente, pelas companhias tecnológicas pelo Direito Privado. Portanto, não se trata apenas de duas realidades distintas em sua configuração, mas também em sua ordenação: a física é basicamente estatal e pública, a virtual essencialmente global e privada. Ademais, a realidade virtual não reflete a realidade física, mas a distorce e a submete aos interesses econômicos das grandes companhias tecnológicas que a estão arquitetando e configurando à sua medida3.
  4. A quarta ruptura se produz na própria configuração da realidade, na destruição de uma percepção social compartilhada da realidade, que está sendo provocada pelas grandes companhias tecnológicas. Essas companhias são os novos mediadores que controlam os processos comunicativos frente aos antigos mediadores, os meios de comunicação tradicionais. Ao potencializar as notícias falsas e as realidades alternativas, os novos mediadores geram uma tensão sobre a realidade que tem um grande potencial destrutivo do espaço público4.
  5. A ruptura da constituição econômica, gerada pela globalização e impulsionada pelo desenvolvimento tecnológico, é também um elemento que devemos considerar, na medida em que priva o Estado de uma capacidade de ordenação da vida social muito relevante e o submete, igualmente, aos grandes agentes globais. Ademais, afeta ao estatuto dos direitos fundamentais, privando-o de sua vinculação com a dignidade da pessoa e orientando-o aos direitos mais vinculados com as exigências do tráfego econômico (direitos dos consumidores e usuários, direito à proteção de dados pessoais)

Todas essas rupturas são muito diferentes das que respaldaram historicamente o constitucionalismo. As rupturas anteriores tinham a ver com a implantação revolucionária da constituição no mundo moderno ou com sua defesa diante de sistemas ditatoriais. Todas elas se produziam no seio do Estado e em relação à organização do poder estatal. Ao contrário, as rupturas que estão sendo produzidas no século XXI estão situadas fora do Estado e configuram um mundo no qual o poder do Estado não mais alcança uma grande parte da realidade antes por ele ordenada. Vimos isso com a crise econômica, que evidenciou a impossibilidade de ver-se recuperado, por parte dos cidadãos, um poder que se situava fora do Estado.

A propósito, é paradigmático comparar algumas das revoluções democráticas dentro do Estado com a situação posterior dos países da zona do euro durante a crise financeira. No caso da Revolução dos Cravos portuguesa, como nas que se seguiram à queda do Muro de Berlim, ou, inclusive as revoluções árabes já no século XXI, o exército ou os cidadãos se apresentam no palácio do ditador e o derrubam.

Entretanto, a involução democrática que significou para alguns países da zona do euro a crise financeira6 era impossível solucionar por medidas internas. Alguns governos caíram, mas foi precisamente devido a pressões externas e nunca a uma revolução democrática promovida pelos cidadãos. Na verdade, aonde poderiam ter ido os cidadãos para pôr fim a essa involução democrática? Aos palácios de governo certamente não, porque nada teria mudado com outros governos e nem aos bancos centrais da zona do euro, porque careciam de competências para resolver os problemas.

Os fatores de poder do nosso tempo, como é o caso das grandes companhias digitais, cada vez se desvinculam mais do Estado e cada vez mais têm mais poder, inclusive econômico, em face do Estado. É o que constatamos com o crescimento das companhias tecnológicas durante a crise sanitária. Algumas delas, como a Apple, chegaram a alcançar um valor de mercado que supera o PIB de países como Itália ou Brasil7. Porém, muito mais importante que o seu valor econômico é sua capacidade de configurar os processos comunicativos e o espaço público por meio de seus aplicativos de internet.

São companhias que estão ocupando posições monopolísticas em âmbitos nos quais intervêm e que impõem suas condições por meio da contratação privada. Essas companhias submetem os usuários a lesões permanentes em seus direitos constitucionais (o segredo das comunicações, a intimidade ou o direito de participação política, dentre outros) ao utilizar os dados que extraem de sua atividade na internet para criar perfis de usuários que depois são utilizados tanto para a publicidade comercial como para a propaganda política8.

Diante do Estado e da constituição estatal, essas companhias estão criando novas pautas culturais orientadas a favorecer seu modelo de negócio. Seus algoritmos provocam a radicalização e a fragmentação do espaço público e dificultam a realização das funções da constituição. A brecha entre a constituição formal de cada país e a realidade dos processos políticos e sociais aumenta a cada dia.

Não poderia ser dito, tal como Ferdinand Lassalle, que a constituição é hoje uma “folha de papel”, tal como se apresentava em seu tempo diante dos fatores reais de poder internos (o monarca, a nobreza, os bancos etc.)9. Entre outras coisas, porque a constituição de hoje tem um suporte digital que guardamos na nuvem e sua aplicação se vê comprometida por fatores de poder globais que controlam o mundo digital e que se situam fora do Estado.

Se comparamos esse devir histórico com o momento da luta pela consolidação do regime constitucional no final do século XIX, vemos como mudaram os fatores de poder e os interesses que configuram o mundo de hoje por causa da globalização. Estamos ante uma autêntica ruptura, porque não se trata mais de consolidar a constituição do Estado para tornar viável a nova ordem social e a liberação dos fatores produtivos que tornem possível o desenvolvimento econômico dentro desse Estado. O Estado segue sendo o fator de poder, mas agora existem outros fatores de poder globais, que jogam num terreno diferente do da constituição estatal.

Autores como Hans Kelsen e Costatino Mortati prestaram atenção, em suas épocas, nesses fatores de poder e na sua incidência sobre a constituição. Ambos escrevem no contexto do Estado nacional e oferecem soluções aos problemas de legitimação que enfrenta a ordem jurídica estatal. Ambos tentam submeter, em diferente medida (em função das respectivas experiências históricas), o poder ao Direito. Kelsen por meio da ideia de norma fundamental, a qual desenha um sistema normativo sustentado pela constituição material kelseniana10. Mortati, por meio de sua ideia de constituição material como limite de natureza complexa, já que incorpora um princípio político que atua, enquanto tal, como fronteira jurídica do poder11. Mas também aqui o debate sobre o sentido da constituição se move dentro do espaço público nacional.

O mesmo podemos dizer sobre outra formulação, mais recente, acerca da brecha entre constituição formal e constituição real, qual seja, a de Georges Burdeau. Para além de que todos os problemas que enuncia no seu sugestivo texto “Une survivance: la notion de Constitution”12, sejam tais, o certo é que se trata de um testemunho fundamental acerca das dificuldades que representa a transição do Estado legal ao Estado constitucional de direito para a coerência interna da constituição. Mas, novamente, dentro de uma análise situada, como é natural, no limite dos contornos do Estado nacional.

O conflito nacional interno sobre a constituição, em todas as suas diversas etapas no mundo moderno, não tem nada a ver com o conflito externo gerado pelos agentes globais. A globalização gerou uma externalização de poder estatal que, por definição, não pode mais ser regulado pela constituição nacional. Ninguém pode dispor daquilo que não lhe pertence e há uma parte grande do antigo poder estatal que hoje não mais pertence ao Estado. Que as normas constitucionais sigam regulando-o é normal, porque a essência mesma da constituição que conhecemos é sua capacidade formal de configurar um ordenamento jurídico pleno, coerente e unitário.

Nesse nível formal, a constituição pode articular suas relações com o direito supranacional nas condições próprias do pluralismo constitucional. Mas fora do Estado e, por sua vez, das instituições supranacionais, há um grande vazio constitucional. Por mais que o Direito Internacional tenha aumentado sua densidade constitucional13, ninguém controla realmente os agentes globais (com exceção da China e em relação aos seus, porque é uma ditadura que atua, ela própria, como agente global).

Os agentes globais não têm interesse algum na constituição. Eles se movem no plano da economia e da política, ou melhor, são eles que movem a economia e a política mediante sua intervenção sobre as políticas econômicas dos Estados e sobre seu espaço público (incluídos os processos eleitorais). O desprezo dos novos fatores reais de poder globais pela constituição faz parte da consciência de seu poder sobre os Estados, de sua capacidade de influência sobre eles e do fato de que a constituição estatal não tenha representado um limite para que possam realizar seus interesses.

O mundo digital, que ocupa uma parte cada vez mais importante de nossa realidade cotidiana, está submetido a regras em cuja produção o Estado praticamente não intervém e que não se adéquam aos princípios e valores constitucionais. A constituição está fora dessa realidade e agora temos que fazer um grande esforço através da constituição do algoritmo em dois sentidos. A constituição do algoritmo significa submeter essa nova realidade do mundo digital aos princípios e valores constitucionais (constitucionalizar os algoritmos), mas também adaptar a própria constituição às condições de um mundo novo, que não se pode mais governar plenamente de acordo com a constituição analógica (digitalizar a constituição).

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NOTAS

1 Cf. CALLEJÓN, Francisco Balaguer. Constitution, démocratie et mondialisation. La légitimité de la Constitution face à la crise économique et aux réseaux sociaux. In: Mélanges en l’honneur du Professeur Dominique Rousseau. Constitution, justice, démocratie. Paris: L.G.D.J., 2020

2 Cf. CALLEJÓN, Francisco Balaguer. La constitución del algoritmo. El difícil encaje de la constitución analógica en el mundo digital. In: GOMES, Ana Cláudia Nascimento; ALBERGARIA, Bruno; CANOTILHO, Mariana Rodrigues (coord.). Direito Constitucional:diálogos em homenagem ao 80º aniversário de J. J. Gomes Canotilho. Belo Horizonte: Fórum, 2021. Cf., igualmente, CALLEJÓN, Francisco Balaguer. La constitución del algoritmo. In: CALLEJÓN, Francisco Balaguer (coord.); VILLAR, Gregorio Cámara; CALLEJÓN, María Luisa Balaguer; MARTOS, José Antonio Montilla. Introducción al Derecho Constitucional. 11. ed. Madri: Tecnos, 2022.

3 Cf. CALLEJÓN, Francisco Balaguer. La cultura constitucional en la era digital, no prelo.

4 Cf. CALLEJÓN, Francisco Balaguer. The Impact of the New Mediators of the Digital Age on Freedom of Speech. In: HINDELANG, S.; MOBERG, A. (ed.). YSEC Yearbook of Socio-Economic Constitutions. Dordrecht: Springer, 2022.

5 Cf. CALLEJÓN, Francisco Balaguer. Costituzione economica e globalizzazione. federalismi.it, numero speciale, 5/2019, 25 out. 2019

6 Cf. CALLEJÓN, Francisco Balaguer. Crisi economica e crisi costituzionale in Europa. KorEuropa, nº 1/2012; CALLEJÓN, Francisco Balaguer. Parlamenti nazionali e Unione europea nella governance multilivello. Nomos – Le attualità nel diritto, 2016. Anticipazioni Convegno Finale Prin. In memoria di Antonio Zorzi Giustiniani.

7 Cf. VEGA, M. A. García. FAANG: el acrónimo más caro de la historia. El País, 25 de julho de 2020. Cf., também, CORONA, S.; FARIZA, I. Las tecnológicas agigantan su dominio en plena pandemia. El País, 23 de agosto de 2020.

8 Quando as moedas digitais forem implantadas, essa informação se ampliará até definir, com exatidão, seus hábitos de compra, o que permitirá conhecer outros muitos aspectos da personalidade dos usuários. Todos esses dados já servem, hoje em dia, para fazer previsões que podem afetar a economia, por exemplo, em relação com o sucesso futuro de novos produtos comerciais, afetando o valor de mercado das companhias que os fabricarem.

9 “Wo die geschriebene Verfassung nicht der wirklichen entspricht, da findet ein Konflikt statt, dem nicht zu helfen ist und bei dem unbedingt auf die Dauer die geschriebene Verfassung, das bloße Blatt Papier, der wirklichen Verfassung, den tatsächlich im Lande bestehenden Machtverhältnissen, erliegen muß.” (LASSALLE, Ferdinand. Über Verfassungswesen. 1862. Disponível em: https://web.archive.org/web/20061017003551; http://www.gewaltenteilung.de:80/lassalle.htm.)

10 Por constituição material entende Kelsen a norma ou as normas que regulam a produção de normas jurídicas. Cf. KELSEN, Hans. Reine Rechtslehre. 2. ed. (1960). Viena: Verlag Franz Deuticke, 1967, p. 228.

11 A contribuição de Mortarti (MORTATI, Costantino. La Costituzione in senso materiale (1940). Milano: Giuffrè Editore, 1998) não consiste em diferenciar a Constituição formal e uma Constituição real, Direito Vivo, law in action ou texto e contexto constitucional, formulações por ele criticadas. Ao contrário, o característico da teoria de Mortari é que, para ele, a Constituição real ou o Direito Vivo são uma manifestação da Constituição material, da permanência da Constituição material dentro do ordenamento. Se, pelo contrário, a Constituição real ou o Direito Vivo se afastam da Constituição material, então a unidade do sistema jurídico se verá afetada e poderemos estar diante de uma possível ruptura constitucional que evidencie a aparição de uma nova constituição material. Portanto, a teoria de Mortati não se limita a apelar para os fatores reais de poder, porque nisso não se diferenciaria de outras formulações, com as de Lassalle. O que adita Mortati é configurar esses fatores reais de poder como um fator normativo, deduzindo deles os princípios aos que deve se ajustar o ordenamento e que configuram a autêntica Constituição em sentido jurídico. Cf. CALLEJÓN, Francisco Balaguer. Potere costituente e limiti alla revisione costituzionale visti dalla Spagna. In: LANCHESTER, Fulco (ed.). Costantino Mortati. Potere costituente e limiti alla revisione costituzionale. Padova: Cedam, 2017, p. 85-112.

12 Cf. BURDEAU, Georges. Une survivance: la notion de Constitution. Ecrits de Droit constitutionnel et de Science politique. Paris: Éditions Panthéon-Assas, 2011, p. 235 e s.

13 Cf. HÄBERLE, Peter. El constitucionalismo universal desde las constituciones parciales nacionales e internacionales. Siete Tesis. Direito Público, nº 54. nov./dez. 2013. Disponível em: https://www.portaldeperiodicos.idp. edu.br/direitopublico/article/view/2363/1219

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