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CLÁSSICOS FORENSE

FILOSOFIA DO DIREITO

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O homem no âmbito do direito, de Gustav Radbruch

GUSTAV RADBRUCH

REVISTA FORENSE 173 - ANO DE 1956

Revista Forense

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18/08/2025

Começo por imediatamente delimitar o assunto versado neste curto ensaio. Não me proponho indagar o modo pelo qual o Direita, enquanto perspectiva particular, avalia o homem. Tampouco tento aqui descobrir como é que, de fato, o Direito atua, ou deverá eficazmente atuar sôbre o homem. É meu propósito apenas investigar as representações que o Direito chega a formar do homem, a fim de nêle influir, levando-o a comportar-se jurìdicamente. Por outras palavras: vou averiguar o modo pelo qual o Direito conceba o homem dentro do próprio âmbito, que é o jurídico.

Não é o homem real, por conseguinte, o assunto que desperta o meu interêsse teórico neste momento; só me preocupa a imagem ou concepção dêle que o Direito fixa e à qual dirige os seus preceitos.

Também devo afirmar, logo de início: as diversas fases da História do Direito acusam sucessivas variações da imagem ou concepção jurídica do homem. Semelhantes variações marcam até as viragens decisivas da História do Direito. São o fato que faz época. Para a caracterização do estila jurídico dos vários períodos, nenhum outro evento denota igual preponderância. Cada período histórico, na verdade, inicia-se, evolui e fecha-se porque certa imagem ou representação jurídica do homem se formou, adquiriu vigência, impregnando o ordenamento jurídico até ao momento de ser afastada por outra.

O conceito jurídico de homem ao longo da história

Mas resulta daqui que não é possível compreender qualquer ordenamento jurídico atendendo ao homem real, isolado, que neste vale de lágrimas passa, atribulado pelos seus desejos, pelos seus caprichos, pelas suas disposições e pelos seus anseios. Tampouco é possível essa compreensão a partir das variedades sucessivas dessa planta admirável que a humanidade é. Do homem concreto, empírico, de carne e osso, não se é conduzido até ao ordenamento jurídico, mas à sua negação. Quem, com MAX STIRNER, arvorar o indivíduo em premissa conclui necessàriamente pelo anarquismo. A proposição jurídica, com as suas notas da generalidade e da abstração, implica tipo genérico e abstrato de homem. Só entre êste e aquela é possível coordenação jurídica. Em cada época da História do Direito, apresenta-se como fundamental um dos diferentes aspectos da humanidade do homem; e o que se impõe em cada época como fundamental assume caráter típico para o Direito, constitui-se em ponto de referência decisivo da normatividade jurídica.

A maneira como o homem chega a ser representado pelo Direito revela-se nitidamente, em cada época, pelo conjunto de direitos subjetivos e de deveres jurídicos consagrados pelo ordenamento jurídico. Ao contrário do que geralmente se julga, o ordenamento jurídico assenta, não no uso eficaz dos direitos subjetivos, mas no preenchimento rigoroso dos deveres jurídicas. IHERING já uma vez demonstrou penetrantemente que o ordenamento jurídico se desmorona quando os deveres jurídicos deixam de ser cumpridos. A falta de exercício dos direitos subjetivos é menos ruinosa para a vigência dêle. No conjunto de deveres jurídicos e de direitos subjetivos, ao qual corresponde determinada comportamento humano, exprime-se a vontade normativa do ordenamento jurídico. Ela declara-se pelo reconhecimento de direitos subjetivos quando considera admissível obter eficácia normativa pela convergente atitude dos homens; manifesta-se pela definição de deveres jurídicas quando lhe parece necessário, contrapor outros motivos aos motivos que levariam os homens

A comportarem-se espontaneamente de modo diferente do pretendido. Os deveres jurídicos e os direitos subjetivos, que o ordenamento jurídico reconhece e fundamenta, denunciam assim claramente, pela, sua combinação técnica, quais os impulsos ou motivos humanos que o Direito aceita, concedendo-lhes eficácia jurídica. Denunciam conjuntamente a imagem ou representação jurídica do homem que o Direito acolheu no seu âmbito.

Na Alemanha medieval, o Direito, como aliás era inevitável, manifestou-se de harmonia com determinada imagem ou representação jurídica do homem. Característico desta época é a particular estruturação dos direitos subjetivos. Êstes dir-se-iam suportados ou penetrados por deveres. São direitos subjetivos cujo exercício pressupõe atividade ditada pelo dever. Consagram juridicamente a concepção de um tipo de homem que, devido à religião, à formação religiosa da consciência, à moralidade ambiente, vive na vinculação ao dever e à comunidade.

De fato, quer o ordenamento jurídico, quer o ordenamento econômico medieval, exprimem semelhante concepção de homem. A organização gremial, por exemplo, significando o monopólio assegurado, alimenta-se da confiança na honra gremial, estímulo poderoso da boa qualidade do trabalho. Durante muitos anos, esta confiança nunca foi desmentida. A organização corporativa abandona os direitos subjetivos, sem os acompanhar de complicado instrumental coercitivo ou fiscalizador, à atmosfera moral da própria instituição, ao espírito de fidelidade à honra gremial. Quando êste pressuposto oscilou, também vacilou a Estado medieval. Foi suficiente que o senhor feudal se visse obrigado a ceder a influência aos que se tornaram proprietários das suas terras. Se o Estado medieval decaiu foi porque o conceito de homem que o Direito medieval exprimia já não correspondia ao conceito de homem então em formação.

Com o Renascimento, a Reforma e a recepção efetiva dada ao direito romano, o homem desliga-se da moralidade ambiente e da comunidade. Surge novo tipo de homem, indócil aos deveres religiosos e éticos, exclusivamente determinado por interêsses individuais. A norma jurídica toma-o para centro de referência. O novo tipo de homem, gizado segundo a figura do comerciante, e cujo comportamento se rege pelo cálculo econômico e pela idéia de lucro, fornece a imagem que o Direito irá receber.

As necessidades do comerciante atuaram como uma das principais causas da recepção do direito romano, da transformação do Direito em função da nova imagem do homem. Com manifesto exagêro, pode-se, no entanto, afirmar que, a partir dêste momento, o Direito considera o homem como comerciante. Prova-o o fato de até regular o trabalho do artífice como atividade conducente à venda dos produtos manufaturados. Mas a época da História do Direito que se inspira no homem concebido como personificação do egoísmo, divide-se em dois períodos distintos: o do Estado-de-polícia e o do Humanismo.

O Estado-de-polícia fia ainda pouca do entendimento dos membros da comunidade jurídica. Por isso, diligencia protegê-los contra os próprios erros, ou conduzi-los à felicidade mesmo contra vontade. Considera-se a si próprio como um tutor paternal e autoritário dos súditos. Para os governar, vai ao ponto de os educar, prescindindo, se fôr preciso, do assentimento colaborante. No entanto, se o egoísmo dos súditos se orienta espontâneamente para a direção inculcada pelo ordenamento político-jurídico, o Estado-de-polícia utiliza-o para sôbre êle basear direitos subjetivos e deveres jurídicos. Tudo que não fôr proibido é exigido – e não apenas permitido. O ordenamento jurídico, se reconhece tipo de homem suficientemente egoísta para se determinar apenas pelo interêsse bem entendido, admite também que lhe falta discernimento para em todos os casos o descobrir e realizar.

Só em oitocentos, com o iluminismo e o jusracionalismo, regressou o ordenamento jurídico àquela imagem do homem que o direito romano já recebera: a do homem esperto e desembaraçado, apto á satisfazer por si o próprio interêsse, que lhe determina os atos como único objetivo. Tal homem vive sentindo-se liberto das vinculações sociais de qualquer espécie e só consente em ligar-se juridicamente se esta limitação é inevitável como meio de satisfazer o seu interêsse.

Condicionada pelo curso da História, reaparece assim concepção jurídica de homem já antiga. Pressupõe ela certa perspectiva metodológica sôbre o homem e a via jurídica – perspectiva que persiste através dos tempos: a que leva o legislador a elaborar e a redigir a lei de tal modo que seja fàcilmente compreendida e obedecida por homens tão egoístas e utilitários que, sem limitações legais, perseguiriam os seus interêsses sem olhar a meios; e tão ladinos que; em cada lacuna da lei, logo descobririam a fenda por onde escapariam às malhas da rêde jurídica. A legislação requerida por, êste tipo de homem pretende ultrapassá-lo na esperteza e no desembaraço. Para repetir frase de KANT, dever-se-á dizer dela que tem de ser apropriada a um povo de diabos. MACHIAVELLI também partilhava desta, opinião, ao afirmar: Só pode dotar um povo com uma Constituição política ou com um corpo de leis quem, profundamente convencido da maldade humana, a aceita como pressuposto ineliminável. Sabedoria também repetida, por outra fórmula, por velho aforismo germânico: dos maus costumes dependem as boas leis.

Segundo a sabedoria contida em tais máximas, as leis devem ser feitas atendendo à construção fictícia que interpreta o homem temo se fôsse tendencialmente malicioso, esperto, egoísta e desembaraçado. No século XVIII, acreditou-se que tal construção fictícia espelhava em si o tipo de homem médio oferecido pela realidade empírica. Tanto o jusracionalismo como a economia clássica, guardaram nas suas doutrinas uma imagem do homem decalcada sôbre o homooeconamicus. Um século mais esclarecido talvez não recusasse a evidência de que os homens, na sua maioria, em vez de maliciosos, espertos, egoístas e desembaraçados, são antes comodistas, estúpidos e indolentes.

Tão ingênua crença na correspondência entre esta concepção e a realidade, humana levou o século XVIII, com uma pertinácea que hoje nos provoca admiração, a assentar nela o ordenamento jurídico. Desaparecem então os derradeiros vestígios da estrutura jurídica dos ordenamentos patriarcais e medievos: a velha concepção dos direitos subjetivos, tendo por pressuposto o que se passou a considerar enganadora ilusão – o dever religioso e moral – foi substituída por cautelosa combinação de direitos subjetivos e de deveres jurídicos. Também se afastou o conceito de dever próprio do Estado-de-polícia: a ninguém pareceu justo que se estabelecessem deveres cujo cumprimento assegurasse interêsse porventura desconhecido de quem era chamado por lei a cumpri-los. Se o interêsse pode receber satisfação pela adoção de uma linha de conduta coincidente com a direção implícita no ordenamento jurídico, em vez de impor deveres jurídicos, a lei assegura o exercício de direitos subjetivos: beneficianonobtruduntur. Quem não quer, já tem. No reino da vontade encontra o homem o reino celestial. Por isso, a esperteza e o desembaraço são aceites como pressupostos. O homem voluntário e diligente, titular do próprio interesse, sabe por si descobrir êste e os meios de o satisfazer e proteger, inclusivamente os meios jurídicos: ignorantiajurisnocet, jusvigilantibussciptuns. O direito positivo deve ignorar o dorminhoco!

Pela mesma razão, o direito positivo deve também ignorar tôdas as vinculações sociais ou econômicas que impeçam o homem ativa de satisfazer e defender o próprio interêsse retamente entendido. A lei, ao criar possibilidades de atuação lícita, deverá criar possibilidades reais, isto é: iguais às que a realidade pode oferecer. Por exemplo, a liberdade contratual em sentido jurídico, formal, deverá ser idêntica à liberdade contratual efetiva, real. É uma liberdade que pertence, como atributo, a homens semelhantes, tratando entre si em pé de igualdade. Na vida jurídica, na imensa diversidade das situações, o sujeito de direitos que cada homem é atua como contraente, doador, comprador, testador, etc.; mas no seu semelhante, com o qual entra em relação, descobre a própria imagem como que reproduzida em espelho: é como se tratasse consigo próprio. Em todos os negócios jurídicos, cada interveniente encarna idêntico esquema de humojuridicus.

Muito mais do que conscientemente nos apercebemos, o nosso moderno pensamento jurídico, até à fase mais recente, estêve dominado por esta concepção. Imperou no direito privado; mas predominou sobretudo no direito processual civil. Deu-lhe até cunho específico, evidente na estrutura do processo, que permitia ao autor e ao réu comportamento análogo ao das pedras de xadrez, movidas alternadamente sôbre o tabuleiro pelos antagonistas. Os litigantes confrontam-se, não como adversários carecentes de direitos, mas como titulares de interêsses bem entendidos, que, de igual para igual, procuram fazer valer em juíza com meios igualmente poderosos.

Mesmo nos domínios do direita penal, graças a FEUERBACH, esta concepção foi aceita. A célebre doutrina da coação psicológica envolve conceito de homem que permite considerar o delito planeado como meio racional e egoísta de se satisfazer o interêsse, independentemente do êxito ou fracasso, da vantagem ou desvantagem da sua utilização.

Interpretado à luz da doutrina contratualista, também o direito público se baseou no interêsse bem entendido de indivíduos livres, igualmente humanos. O direito de voto, por exemplo, tinha o seu exercício ligado à manifestação do interêsse individual; pois o voto, separando a maioria vencedora da minoria vencida, traduz a supremacia dos interêsses compartilhados individualmente pela maior soma de indivíduos. Eis aqui o motivo pelo qual tanto o direito constitucional como a sua ciência se desinteressavam então pelos bastidores sociais do voto – o partido, a classe, a região. Se ROUSSEAU combatera os partidos, fundado em que falseavam a pura expressão do interêsse individual, também a lei e a doutrina, em data não muito recuada, fingiam desconhecer as poderosas organizações partidárias. Encaravam-nas como figuras sociológicas destituídas de relevância jurídica. Para o direito constitucional, só o indivíduo tinha dignidade jurídica.

Em todos os domínios, consentiu o Direito em se orientar por uma concepção. individualista e intelectualista do homem. Apenas um cantinho do ordenamento jurídico, ilha perdida onde o passado teimava em sobreviver, mantinha o ambiente jurídico patriarcal, o velha conceito de direito subjetivo penetrado pela, idéia de dever: o cantinho ocupado pelo direito de família. O pai e o marido, perante a mulher e os filhos, obedecem ainda ao figurino medievo: são titulares de direitos cujo exercício assenta na consciência do dever moral.

A pouco e pouco, todavia, chegou aqui também a nova concepção. Sem se ar totalmente a idéia de dever moral, colocou-se em primeiro plano a garantia jurídica de que seriam cumpridos os esposos e pais. Recordem-se as medidas de proteção jurídica à mulher e, sobretudo, aos filhos, para quem é criada jurisdição especial. Inicia-se assim neste setor a evolução já verificada nos restantes setores, a qual consiste na substituição de direitos subjetivos, cuja estrutura e cujo exercício são dominados pelo dever moral, por direitos subjetivos e deveres jurídicos, cuja função é satisfazer, respectivamente, interêsses próprios e interêsses alheios.

O caráter esquemático e fictício desta concepção, exatamente porque se quadrava tão bem com o liberalismo político e jurídico, começou entretanto a ser denunciado pela crítica quando o liberalismo entrou em crise. A medida que a descoberta se casava com as novas convicções, desenhou-se a mudança de rumo. Novamente se reconhece que o homem não é capaz de atuar em todos os casos movido por claro e prévio conhecimento do seu interêsse bem entendido; novamente se admite que, em muitas situações, não é capaz de realizar o dito interêsse, nem êste é o único motivo determinante dos seus atos. O Direito, que só contava com o racional, o previsível, o ponderável, começa a atentar nas conseqüências da leviandade, nos imprevistos trazidos pelas situações prementes, nos múltiplos fatôres, enfim, que o homem esperto, desembaraçado e ativo não pode medir e prever de antemão. A legislação entra a conter medidas destinadas a proteger o sujeito de direitos contra os próprios atos ou contra as conseqüências desastrosas dos atos inconsiderados de terceiros. Também no processo civil – cabe ao direito processual austríaco o primeiro passo neste sentido – o juiz, ajudando e conduzindo a marcha do processo, intervém na lide precisamente com o fim de proteger os litigantes. Em direito penal, FEUERBACH é pôsto de parte: reconhece-se agora no criminoso juízo discriminativo, que lhe permite preavaliar friamente da utilidade ou inutilidade do comportamento punível. O juiz do crime foi apetrechado, por isso, com poderes de escolha da pena mais apropriada a melhorá-lo, a acordar nêle a consciência, não apenas do interêsse bem entendido, mas do interêsse pessoal e social. Êste intuito de provocar o aperfeiçoamento do criminoso pela pena trouxe consigo, além desta, outra conseqüência importante para a nascente concepção jurídica de homem: a de chamar a atenção para prelevância jurídico-penal da rica variedade de tipos psicológicos que podem cair debaixo do conceito de delinqüente. Não tem outra origem a classificação do delinqüente em habitual e fortuito, em corrigível e incorrigível. O novo direito penal, já alguém o disse, merece o nome de direito penal sociológico, pois êle reconhece importância jurídica a muitos fatos até então tidos por serem apenas sociològicamente importantes.

Tudo isso são indícios de que nova concepção jurídica do homem se encontra em vias de amadurecimento. De fato inicia-se agora nova época da História do Direito.

A ruptura com o liberalismo e a nova concepção social

Quando se compara a nova concepção à concepção anterior, verifica-se logo que aquela está mais próxima da vida. O esquema liberal, com a sua liberdade abstrata, a sua esperteza e utilitarismo, tinha muito de artificioso. O novo esquema pretende eliminar o construtivismo falsificador, para interpretar o homem no duplo aspecto da sua vida – o social e o individual. Concebe o sujeito de direitos, portanto, não como homem isolado, Adão ou Robinson, como indivíduo contraposto à sociedade, mas como homem colocado no meio próprio, que é, o social. Esta nota da sociabilidade tem até nêle certo predomínio. Ò homem social ocupa o centro de referência do Direito. Antes de ser reconhecido na qualidade de indivíduo, o homem é pelo Direito reconhecido na qualidade de socius.

Devido a esta maior aproximação aa homem real do conceito jurídico de homem, novos tipos sociais passam a ter relevância jurídica, enriquecendo o conteúdo do conceito de sujeito de direitos. Nos domínios do direito de trabalho, o fenômeno produz-se nitidamente. O direito de trabalho está para a era do direito social como o direito comercial estava para a era do direito liberal. Na verdade, êste último, ou, melhor, o seu ramo de direito privado, colocava os sujeitos de direitos em pé de igualdade e respeitava a liberdade de decisão ao ponto de a mesma só vir a compromisso pelo contrato negociado sem outras peias além das legais. Mas desconhecia, ou fechava os olhos, à fôrça social inerente à posição subordinada do trabalhador perante o empresário. Não atendia à específica solidariedade que liga espontâneamente entre si os membros da mesma comunidade de trabalho. Reconhecida esta solidariedade, aparece o movimento tendente a favorecer o equilíbrio das fôrças sociais representadas pelo chefe da emprêsa e pelos seus colaboradores. A progressiva afirmação da nova tendência manifesta-se pelo reconhecimento jurídico das organizações sindicais e dos contratos coletivos de trabalho.

Por outro lado, o direito privado liberal também ignorava a unidade corporativa que a emprêsa era Juridicamente, apenas distinguia nela pluralidade de relações contratuais, ligando os servidores ao empresário. Não conseguia ainda ver que a emprêsa, por si, constituía unidade social e econômica fechada. As árvores impediam-lhe a visão do bosque.

Característica fundamental do direito de trabalho é o desperto sentido da realidade humana e social. Não disciplina abstratamente indivíduos; considera o homem na qualidade social de empresário, empregado, artífice. Em vez de indivíduos isolados, toma para ponto de referência sindicatos e grêmios. Já não aceita a pura liberdade contratual, pois admite o condicionalismo poderoso, simultâneamente econômico e social, que influi no exercício aparentemente incondicionado dessa liberdade. O homem, para o direito social, aparece sempre como membro de uma comunidade – a emprêsa, o sindicato, o grêmio, englobados, por sua vez, na comunidade mais alta, a comunidade econômica nacional. Êste mais amplo horizonte abrange, além das já conhecidas do liberalismo, muitas outras determinantes sociais e jurídicas da conduta, nomeadamente as resultantes dêsse egoísmo máximo que se designa por solidariedade.

Não tardou igualmente o direito público a deixar-se penetrar pelo novo conceito jurídico de homem. Estamos hoje assistindo à modificação do conceito de democracia. No repensar dêste conceito também influi a maior importância agora dada ao aspecto social da vida humana. De liberal, a democracia passa a social. Democracia já não significa para nós igualdade entre todos os que têm figura humana, mas aproximadamente o contrário disto: o melhor método de escolha dos que mandam. Em vez de soma de indivíduos isolados, aparece-nos agora como um todo social constituído por grupos, classes, partidos, agremiações. O novo significado vale não só para o conceito sociológico e político de democracia, mas também para o seu conceito jurídico. O direito constitucional reconhece a êstes grupos relevância jurídica para lhes atribuir o direito de voto. Por isso, os partidos, até agora trabalhando nos bastidores, surgem em primeiro plano, adquirem o colorido de órgãos estaduais e cidadania no âmbito do direito constitucional e da sua ciência.

Quando o Direito concebe o homem como ser social, inclui neste conceito o conceito de ethos coletivo. Não admira assim que nasça novo movimento aspirando a moralizar o Direito. Outra vez se pretende que o respeito da norma jurídica seja ditado pela observância de deveres morais. Fala-se já dos deveres sociais da propriedade privada; o exercício do direito de voto deixa de ser assunto particular, caso da consciência de cada qual, para ser exigido em nome do dever social do cidadão. Já o velho IHERING, também neste capítulo precursor, havia caracterizado a luta pelo Direito como luta pela realização do dever moral. Com êste movimento moralizador, a era do direito social retoma, reinterpretando-o, o pensamento característico da era do direito patriarcal. Também para nós se nos apresenta o Direito como feudo da totalidade.

No entanto, é diferente o modo como atualmente o dever penetra no Direito. Os direitos já não dependem do cumprimento do dever, como durante o feudalismo; o seu exercício é condicionado pelo cumprimento do dever. A economia de guerra já nos habituou a encarar os direitos como coisa precária, que o titular tem o dever de exercitar. Se não forem exercitados, ou se forem desviados do seu fim, o legislador pode suprimi-los. Os direitos subjetivos possuem hoje a natureza de direitos revogáveis.

Até aqui considerei o conceito jurídico de homem enquanto objeto do ordenamento jurídico. Ficaria incompleta a história que tracei a largos traços se não lhe acrescentasse outro capítulo. O referido conceito pode também encarar-se por outro aspecto: o de sujeito do ordenamento jurídico – ou seja: como seu criador. O conceito de legislador humano não foi sempre uma evidência: resultou de lenta conquista dos séculos.

O homem como sujeito do ordenamento jurídico

Nos primeiros tempos, Religião, Moral, Direito e Costumes atuavam como unidade funcional para os germanos. O Direito era simultâneamente um saber transmitido pelos antepassados, voz da consciência popular, vontade dos deuses. Não havia a noção do legislador humano. A compilação das regras jurídicas em livros não mudou esta convicção: coligia-se um Direito herdado. Na compilação de Saxe, lê-se: Êste Direito não foi por mim concebido, veio do passado até nós, mediante os nossos bons antepassados.

Os primeiros legisladores humanos devem ter sido homens que, com mãos delituosas, se apossaram de prerrogativas divinas. Êste trânsito verificou-se na Alemanha vagarosa e tardiamente. As leis merovíngias e carlovíngias marcam o momento da mudança decisiva. Mas, de início, o rei não podia ainda legislar para a generalidade dos súditos: só estava na posição de regular a atividade dos seus funcionários, a quem dava ordens. A intervenção evidente do legislador humano verificou-se no âmbito do direito administrativo ou, mais limitadamente ainda, no âmbito do direito burocrático. Era um direito positivo que se impunha apenas aos tribunais do rei. O povo e os seus tribunais viviam ainda regidos pelo direito costumeiro. Mas daí por diante desenha-se a emulação entre êstes dois direitos, a sua luta pelo predomínio; emulação e luta que mais não são do que formas históricas da eterna emulação e luta entre o Direito e o Estado.

Ao longo desta evolução, que durou até aos tempos modernos, tanto a doutrina como a prática do Direito não se servem exclusivamente da lei, procuram fortalecer-se com o auxílio de outras autoridades, como a Bíblia e os juristas clássicos da antiguidade. Atingiram então uma fôrça persuasiva não igualada ainda pela fôrça vinculativa, incondicionada, da lei editada pelos nossos Estados modernos. Na época do direito natural, a norma jurídica impõe-se vàlidamente mediante o reconhecimento geral da retidão do seu conteúdo, sem necessitar, como hoje, do aparelho coercitivo com que o Estado a dota. HOBBES, reagindo contra a concepção jusnaturalista, repete ainda a miúdo: law is not counsel, but command – a lei não é conselho, mas imperativo.

A recepção do direito romano, do direito escrito do império romano, abriu o caminho à inspiração da vontade do Estado na forma de lei geral. O absolutismo consolidou êste fato. Assim se verifica com o chamado Estado burocrático. O iluminismo, com a sua típica tendência para a racionalização de tôdas as atividades humanas, substitui as criações espontâneas do espírito popular pela legislação editada pelo Estado, que subordina à realização dos fins eleitos pelos governantes as atividades dos súditos.

A linguagem, como sempre, acusou logo esta modificação da consciência jurídica. Quase de um golpe, surge, pronta e perfeita, a moderna linguagem jurídica, excepcionalmente apta a exprimir o sentido imperativo da norma, a manifestar a nova consciência com que o poder político é exercido com intenção legislativa. A linguagem da ordem categórica substitui ràpidamente a linguagem da persuasão pedagógica, do conselho paternal. A evolução termina com a entrada na História do senhor absoluto do povo, que também atua como absoluto legislador.

A passagem do Estado absoluto ao Estado constitucional não representa modificação profunda neste processo histórico. Significa apenas que se tentou neutralizar e despersonalizar o órgão detentor do poder absoluto de legislar. A vontade do Estado, pelo menos em tese, engloba a vontade popular. Mas se o povo é tido por originário detentor do Poder Legislativo, nunca foi ao ponto de se lhe entregar o seu exercício direto. A formação jurídica da vontade estadual pertence às assembléias legislativas, nas quais os seus representantes têm assento. Mas a lei obedece à Constituição na sua feitura. Desta sorte, a lei volta a ser um direito popular, embora diferente: já não emana do espírito popular espontâneamente, caprichosamente – resulta da manifestação organizada da vontade popular, que conscientemente se determina nela fixação prévia dos fins a atingir.

Também aqui, pois, o curso da História vai da vontade geral inconsciente para a consciente vontade individual e, desta, para a consciente vontade geral. Entre as duas evoluções da representação jurídica do homem como objeto e como sujeito do ordenamento jurídico, a correspondência é manifesta. A partir dêste instante o Direito, quer o objetivo, quer o subjetivo, é Direito da comunidade – Direito da consciência comum para homens que têm a consciência de viverem em comum. É o Direito da comunidade organizada.

Com êste paralelo, chegou ao fim o meu ensaio. É agora a ocasião de dizer que a tentativa já teve precedentes. Com outra forma, velada pelo manto das construções históricas, havia sido já feita pela doutrina do estado de natureza. Por estado de natureza, em última análise, teremos de compreender a situação originária da alma humana, ponto de partida do Direito. O nosso século, que é o século jurídico por excelência, combinou de diferente maneira as duas concepções principais do estado de natureza, expressas nas duas máximas clássicas: appetitussocietatis (GROTIUS) e homohominiiupus (HOBBES). Numa conferência tão substancial como espirituosa, GEORG JELLINECK mostrou como a velha doutrina do Estado se habituara a pensar segundo o modêlo do pai originário da humanidade o tipo humano que adotara para ponto de partida. Pois o velho Adão, considerado nas sucessivas formas históricas da sua manifestação e nas sucessivas maneiras pelas quais estas têm sido històricamente concebidas – eis o homem que o Direito tem sucessivamente considerado.

__________________________

Notas:
* N. da R.: versão portuguêsa de A. J. B.

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