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Revista Forense

DIREITO ADMINISTRATIVO

REVISTA FORENSE

As regulamentações infralegais pela CVM e pela B3 sobre operações de alugueis de ações podem limitar direitos essenciais dos acionistas titulares dos papeis?

REVISTA FORENSE 434

Revista Forense

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26/07/2023

RESUMO: O objetivo deste artigo é trazer o leitor para uma reflexão acerca do papel da CVM e da B3 na regulamentação da opção denominada no jargão de marcado como “aluguel de ações”, bem como se essas normas infralegais poderiam limitar direitos essenciais dos acionistas, tanto mutuantes quanto mutuários. Ganha relevo o estudo pela análise de serviços especializados ofertados no mercado de valores mobiliários e sua regulação, ofertada pelos agentes financeiros, a fim de imprimir maior liquidez ao mercado de capitais brasileiro. Para a análise da temática proposta serão analisados os direitos essenciais aos acionistas assegurados no art. 109 da LSA sob a perspectiva do “aluguel de ações” e a transmissibilidade dos direitos do proprietário originário (mutuante) ao proprietário temporário (mutuário), os reflexos desses direitos e as limitações legais e infralegais quanto a espécie.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Regulatório; Comissão de Valores Mobiliários; Direito Societário; Aluguel de Ações; Direitos Essenciais de Acionistas; Limitações; Autonomia de Vontades das Partes; Conflito de Normas.

ABSTRACT: The aim of this paper is to bring the reader to a reflection about the role of CVM (brazilian SEC) and B3 in regulating the option called in branded jargon as “stock rental”, as well as whether these infra-legal rules could limit essential shareholder rights, both lenders and borrowers. The study is highlighted by the analysis of specialized services offered in the securities market and its regulation, offered by financial agents, in order to provide greater liquidity to the Brazilian capital market. For the analysis of the proposed theme, the essential rights to shareholders guaranteed in article 109 of the LSA will be analyzed from the perspective of “shares rental” and the transferability of the rights of the original owner (lender) to the temporary owner (borrower) and the consequences of these rights and the legal and infra-legal limitations on species.

KEYWORDS: Regulatory Law; Securities Commission; Corporate Law; Rental of Shares; Essential Rights of Shareholders; Limitations; Autonomy of the Parties; Conflict of Rules.

SUMÁRIO: Introdução – 1. Da operação denominada “Aluguel de Ações” e sua normatização – 1.1 Transmissibilidade dos direitos do acionista mutante – 2. Dos direitos essenciais dos acionistas e sua análise na opetação de “aluguel de ações”– 2.1 Participação nos lucros e o mútuo de ações – 2.2 Da participação no acervo em caso de liquidação – 2.3 Do direito de fiscalização – 2.4 Direito de preferência – 2.5 Direito de recesso – Conclusão – Referências bibliográficas.

INTRODUÇÃO

Este estudo compreende analisar serviços especializados ofertados no mercado de valores mobiliários e regulação, centrando-se na operação denominada “aluguel de ações” ofertada pelos agentes financeiros, bem como se em sua regulamentação pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e pela B3 (principal bolsa de valores do Brasil) poderia haver limitações aos direitos essenciais dos titulares das ações que foram colocadas à disposição para aluguel.

O aluguel de ações se trata de uma operação de extrema relevância ao mercado financeiro, haja vista que impulsiona a liquidez do mercado de capitais. Isso porque o tomador dos ativos poderá obter ações através de empréstimo ou “aluguel” para cumprir com obrigações de entregar ativos que ainda não possui, geralmente em operações em que há “vendas a descoberto”. 

Para a execução deste estudo, analisaram-se a estrutura e operacionalização da referida operação e sua natureza jurídica sob a ótica civilista.

Posteriormente, a análise centra-se nas normas da CVM e da B3, bem como da legislação extravagante atinente à espécie.

Por fim, o estudo tem como objeto perquirir se a operação de aluguel de ações, bem como sua regulamentação infralegal (pela CVM e B3), pode trazer limitações aos direitos dos acionistas titulares das açoes objeto desses contratos.

Assim, por meio deste trabalho, ainda inconclusivo, tenta-se confirmar ou refutar a possibilidade de haver limitações aos direitos essenciais dos acionistas de sociedades abertas que realizam tais contratos, notadamente, quanto às normatizações infralegais a esse respeito, e se ocorre violação à Lei das Sociedades Anônimas (LSA).

Em termos de metodologia, optou-se, em primeiro plano, pela pesquisa dogmática jurídica com feições teóricas, para lançar um olhar crítico sobre os referidos diplomas regentes dos interesses públicos e privados norteadores das sociedades anônimas.

Quanto aos raciocínios a serem adotados, sobressaem o indutivo-dedutivo e o dialético, que permitirão a adequada conjugação dos dados obtidos nos diversos setores do conhecimento que serão analisados.

1. Da operação denominada “Aluguel de Ações” e sua normatização

Primeiramente, é importante trazer à baila a interdisciplinaridade do tema, haja vista que, necessariamente, o tema perpassa o direito civil, empresarial, mercado de capitais e até a administração e contabilidade.

Partindo de estudos de Leutewiler (2012, p. 172), tem-se a definição de empréstimo ou “aluguel” de ações como:

Em linhas gerais, a operação de empréstimo de ações regulada pelo CNM e pela CVM consiste na transferência do valor mobiliário pelo seu titular a terceiro, por intermédio de sociedades corretoras ou distribuidoras de títulos e valores mobiliários, sendo a operação cursada no âmbito da câmara ou prestador de serviços de compensação e de liquidação onde o valor mobiliário estiver custodiado, que garantirá a liquidação do negócio, agindo como contraparte central garantidora. Findo o prazo estipulado pelas partes, ações de mesma espécie e qualidade deverão retornar à titularidade de quem emprestou.

No que diz respeito à denominação “aluguel de ações”, conforme elucida Eizirik (2015, p. 596) não seria a mais adequada para a referida operação, uma vez que, em verdade, há um verdadeiro contrato de mútuo das ações, sendo que a praxe de marcado adota terminologias ainda mais imprecisas como a designação do mutuante como “doador” e do mutuário como o “tomador”. E, ainda, para operacionalização dessas operações tem-se como intermediário corretoras e distribuidoras de valores mobiliários.

Entendemos que, pelas características peculiares do contrato a ser firmado, a denominação mais adequada para tal operação seria a “mútuo de valores mobiliários” ou “mútuo de ativos”, tendo sua normatização regida pelo art. 586 do Código Civil.

A própria B3 se vale da denominação não tão adequada para definir a operação de “mútuo de valores mobiliários” ou “mútuo de ativos” como empréstimo de ativos.

O mútuo de ativos, em regra, é operacionalizado da seguinte forma: de um lado, tem-se o mutuante que é o proprietário das ações de companhia aberta listada na B3 e que tem o interesse de transferir temporariamente a titularidade de seus papéis em troca de certa remuneração ajustada, e de outro, o mutuário que é quem deseja ser titular temporário dessas ações para dar lastro a operações financeiras realizadas no mercado de capitais, que são muito características em “vendas a descoberto”, sendo que a B3 garante a devolução dos ativos ao mutuante.

Conceitos importantes são os de custódia e depósito de ações, os quais são tidos como requisitos para a operação de mútuo de valores mobiliários. A custódia e o depósito de ações são normatizados pelas resoluções CVM 31, 32 e 33 de 2021.

De acordo com a Resolução CVM 34, de 19 de maio de 2021, em seu art. 2º: “somente as câmaras e prestadores de serviço de compensação e liquidação de operações com valores mobiliários autorizadas pela CVM podem manter serviço de empréstimo de valores mobiliários”.

Com o escopo de garantir o cumprimento das obrigações, as câmaras prestadoras de serviços de compensação e liquidação de operações com valores mobiliários devem exigir garantias que assegurem a liquidação do mútuo no futuro, ou seja, no vencimento do contrato, promovendo segurança e efetividade à operação suficiente para dar liquidez ao mercado.

Oportuno ressaltar que a própria LSA, em seu art. 41, prevê que:“a instituição autorizada pela Comissão de Valores Mobiliários a prestar serviços de custódia de ações fungíveis pode contratar custódia em que as ações de cada espécie e classe da companhia sejam recebidas em depósito como valores fungíveis, adquirindo a instituição depositária a propriedade fiduciária das ações”.

Pertinente, outrossim, é a análise das normas de disclosure e de condições de negociação que devem ser seguidas pelas companhias abertas e pessoas vinculadas, consoante se depreende das Instruções CVM 590 e 596, que afetam sobremaneira a temática. Isso porque preconizam acerca da divulgação e uso de informações sobre ato ou fato relativo às companhias abertas, trazendo ainda vedações e condições para negociação de ações de companhias abertas na pendência de fato relevante não divulgado ao mercado. Demonstra-se que a normatização infralegal por parte da CVM tem como finalidade cercar pelas mais variadas formas de abusos e excessos por parte dos controladores e insiders que podem prejudicar a confiabilidade do mercado de capitais.

Para impedir a atuação de insiders, a CVM editou a Instrução 530, que em seu art. 1º traz a previsão expressa de vedação de “aquisição de ações, no âmbito de ofertas públicas de distribuição de ações, por investidores que tenham realizado vendas a descoberto da ação objeto na data da fixação do preço da oferta e nos 5 (cinco) pregões que a antecedem”.

Infere-se da referida previsão normativa, ainda, uma efetiva prevenção à atuação de pessoas que, detendo informações relevantes desconhecidas do mercado, realizem “vendas a descoberto de ações por investidores que não sejam titulares das ações, ou cuja titularidade resulte de empréstimo ou outro contrato de efeito equivalente”, obtendo assim lucros indevidos, eventualmente, com o mútuo de valores mobiliários.

Mesmo diante de tantas previsões normativas acerca do mútuo de valores mobiliários, exsurgem questões extremamente controvertidas sobre a temática, notadamente, no que diz respeito aos direitos essenciais dos acionistas previstos no art. 109 da Lei 6.404/1976 na hipótese de operações envolvendo a operação denominada aluguel de ações oriunda do jargão de mercado. Isso porque a LSA em seu art. 109 prevê que os direitos dos acionistas que não podem ser suprimidos, renunciados ou derrogados, os quais, em caso de mútuo de valores mobiliários, despertam dúvidas quanto ao exercício dos referidos direitos essenciais.

Coelho (2012, p. 318) assim leciona sobre os direitos essenciais dos acionistas:

A lei assegura aos acionistas certos direitos essenciais, e o faz de forma definitiva e absoluta, com o objetivo de garantir a estabilização nas relações de poder internas às companhias (art. 109). Não se devem considerar os direitos essenciais apenas pela perspectiva da tutela dos minoritários, porque eles, em certo sentido, também asseguram a conservação do poder de controle como no caso do direito de preferência na subscrição de novas ações.

Muito se discute sobre o exercício dos direitos previstos no art. 109 da LSA, em decorrência da opção de aluguel ou mútuo de valores mobiliários, se seriam de direito do mutuante ou do mutuário dos papéis.

1.1 Transmissibilidade dos direitos do acionista mutuante

Esse ponto é de extrema relevância no que diz respeito aos direitos que são transferidos pela autonomia da vontade das partes que firmam o contrato que lastreia a opção e quais direitos não poderiam ser objeto de transação. Aliás, pode-se levantar a questão de se as normas da CVM que dispõem sobre o assunto poderiam transpor os limites da LSA.

Entretanto, pela natureza da operação deve-se ter em mente que, em regra, o mutuante não mais dispõe das ações da companhia, as quais foram transferidas (ou emprestadas por meio de contrato de mútuo) para o mutuário, ou seja, esse será o titular dos referidos direitos essenciais.

Diz-se “em regra”, uma vez que pela autonomia da vontade das partes podem ser firmados contratos que dispõem sobre o exercício de direitos políticos e direitos pecuniários ou financeiros pelas partes, versando sobre, inclusive, distribuição de dividendos, prioridade no reembolso do capital, ou na cumulação de ambas prerrogativas. Pode-se versar, ainda, em contratos de empréstimo de ações ou mútuo de valores mobiliários em que as partes podem estipular direito de voto restrito, que consiste na limitação do exercício de direito de voto ao acionista preferencialista em comparação com os titulares de ações ordinárias, respeitando-se sempre os ditames do art. 109 da LSA (direitos essenciais).

Outro ponto de relevo é o fato de que os direitos dos acionistas, independentemente das classes, têm previsão estatutária e deve-se levar em consideração em quais limites a autonomia de vontade das partes pode influenciar em direitos preconizados nos estatutos sociais com respaldo na LSA.

Como é cediço, a condição de acionista de uma sociedade anônima implica a obtenção de uma série de direitos e deveres. Os direitos que lhe são conferidos, por sua vez, poderão ser essenciais ou modificáveis, inclusive, a ausência de exercício de tais direito não importa em sua renúncia. 

Por se tratar em sua essência de um contrato de mútuo, ou seja, um empréstimo de coisas fungíveis, há a transferência da propriedade das ações (mesmo que temporária), tidas como bens fungíveis, o que transfere os direitos a elas inerentes, a não ser que diversamente preveja o contrato que lastreia tal operação.

De acordo com descrição apontada pela B3 em seu site, no momento em que é realizado o mútuo de valores mobiliários, o mutuante ficará ausente da base acionária, o que decorre de ser o pleno proprietário do ativo enquanto durar o empréstimo do ativo. Em regra, o mutuante não disporá de direitos políticos como o de voto em assembleias, mas permanecem inalterados os direitos financeiros sobre os ativos, tais como: dividendos, juros sobre capital próprio, bonificações, subscrições de ações etc. Para operacionalizar os pagamentos dos direitos do mutuante, ocorre o reembolso dos valores que são direcionados ao mutuário, que por obrigação contratual são de titularidade do mutuante, sendo que a B3 é responsável pelo mecanismo de compensação, garantindo ao doador do empréstimo o mesmo tratamento que teria caso estivesse com seus ativos.

Ressalva pertinente é a de que os direitos essenciais não se confundem com os direitos dos acionistas minoritários, haja vista que são prerrogativas asseguradas legalmente a todo e qualquer acionista, o que se afigura uma representação do Estado Democrático de Direito no direito societário, que preserva a condição de acionista em condições de isonomia mínima independentemente da classe de ações e do porte do acionista.

Por tal razão, oportuna é a questão referente a transmissibilidade dos direitos essenciais no caso de mútuo de valores mobiliários (aluguel de ações no jargão de mercado) ou até da legitimidade para seu exercício. Assim, pairam dúvidas quanto ao fato de se o mutuário que passa a ser o detentor das ações se sub-rogaria nos direitos essenciais do anterior titular. Ao que tudo indica, há uma cisão dos referidos direitos essenciais, sendo que em parte são exercidos pelo mutuante, e outra parte exercidos pelo mutuário.

Para obter uma resposta mais precisa acerca da referida transmissibilidade, deve-se realizar uma digressão sobre a natureza dos referidos direitos essenciais elencados no art. 109 da LSA.

2. Dos direitos essenciais dos acionistas e sua análise na operação de “Aluguel de Ações”

2.1 Participação nos lucros e o mútuo de ações

Consoante previsão do art. 109, I, da LSA, o direito à participação nos lucros é um direito essencial e se caracteriza como um direito subjetivo de todo acionista, considerando-se dividendos juros sobre o capital próprio e demais distribuições de resultados.

Pela característica do mútuo de valores mobiliários, que transfere a posição acionária temporariamente a outrem, entendemos que não se inviabiliza a percepção de dividendos (e demais proventos) pelo mutuário, ou seja, em razão de sua condição de acionista, pode usar, gozar e dispor da coisa (ações), devendo restituí-las ao mutuante ao termo do contrato.

Deve-se, ainda, ter em mente que também não há imposição legal de que as partes pela autonomia da vontade pactuem que os frutos oriundos da posição acionária temporariamente transferida fiquem com o mutuante, desde que expressamente previsto.

Todavia, caso o mútuo de valores mobiliários seja realizado no ambiente da B3 os valores referentes aos frutos dos papéis objeto do contrato serão reembolsados ao mutuante pelo sistema da B3, o que traz um ambiente favorável à essa prática por grandes acionistas, fundos de pensão e demais investidores institucionais de longo prazo, uma vez que são remunerados pelo mútuo da ação e, também, pelos frutos dela advindos.

Parece-nos um tanto contraditória a posição da B3 para fomentar o mercado, haja vista que em seu próprio regramento há o reconhecimento de que o mutuante deixa os quadros societários, mas, em sentido oposto, permanece com os direitos de perceber dividendos e juros do capital próprio sobre os ativos “emprestados”.

2.2 Da participação no acervo em caso de liquidação 

Outro ponto que merece atenção quanto aos direitos essenciais é a participação no acervo societário no caso de liquidação da companhia, prevista no inciso II do art. 109 da LSA.

Novamente, analisando as caraterísticas do contrato de mútuo de valores mobiliários, tem-se que a posição acionária é transferida ao mutuário ao qual cabem, na teoria, os direitos ao reembolso das ações preconizado no dispositivo legal.

Entretanto, na prática, parece-nos que, se o mutuário perceber tais valores à título de reembolso pelo acervo societário, não terá como cumprir o contrato de mútuo de valores mobiliários com a devolução obrigatória das ações percebidas. E diante dessa impossibilidade de cumprimento, caso a operação seja realizada tendo a B3 como intermediária, ela mesma se encarregará da realização da liquidação financeira da operação para dar liquidez e efetividade ao contrato firmado. Caso o contrato de mútuo seja realizado entre particulares, ou seja, sem a participação da B3, as partes são livres para pactuar o que lhes for conveniente, inclusive com cláusula de liquidação antecipada, lastreando a referida antecipação à aprovação da assembleia que decide pela dissolução da sociedade.

2.3 Do direito de fiscalização

Noutra ponta, tem-se como direito essencial do acionista o direito de fiscalização, no inciso III, do art. 109 da LSA, o qual é transferido ao mutuário no caso de mútuo de ações ou valores mobiliários, haja vista que há a transferência da titularidade da posição acionária perante a companhia. 

Entretanto, a despeito de ter havido a transferência da posição acionária para o mutuário, pode-se concluir que o mutuante também permanece com o interesse de fiscalizar as contas da companhia, uma vez que no longo prazo ele é o acionista daquela sociedade, tendo, inclusive, interesse mais fidedigno quanto à perenidade da atividade empresarial da sociedade cujas ações foram objeto de mútuo.

Assim, num primeiro momento, conclui-se que o mutuante perdeu o direito essencial de fiscalização da companhia, mas não se pode olvidar, nem relegar a um segundo plano em que, embora seja a titularidade do mutuário tal direito subjetivo, o mutuante permanece com inegável interesse em realizar a fiscalização.

Como limitador de tal direito de fiscalização é o mutuário que, sendo o titular, tem a legitimidade para dar efetividade à referida fiscalização, exigindo documentos contábeis e outras demonstrações financeiras da companhia, cabendo ao mutuante acompanhar a divulgação de resultados e demais divulgações públicas das finanças da sociedade. Oportuno frisar que nada impede que o mutuário outorgue tais poderes de fiscalização ao mutuante, a fim de dar efetividade ao poder fiscalizador, restando no âmbito da autonomia de vontade das partes envolvidas.

2.4 Direito de preferência

Como penúltimo direito essencial do acionista, tem-se o direito de preferência previsto no inciso IV do art. 109 da LSA, consistente na “preferência para a subscrição de ações, partes beneficiárias conversíveis em ações, debêntures conversíveis em ações e bônus de subscrição, observado o disposto nos artigos 171 e 172”.

Assim como no caso do inciso anteriormente mencionado, mesmo tendo havido a transferência da posição acionária para o mutuário, o mutuante também permanece com inegável interesse em manter o direito de preferência preconizado no inciso IV do art. 109. Isso porque poderá haver uma emissão primária ou secundária de ações com aumento significativo de capital, capaz de fazer com que a posição acionária do mutuante se dilua, o que poderá lhe trazer diversos prejuízos e inconvenientes.

A B3, em seu site, aponta que a normatização do direito de subscrição permanece inalterada, mesmo no caso de mútuo de valores mobiliários (aluguel de ações), sendo que as subscrições de ações serão asseguradas por ela.

Entretanto, o que se verifica, ao menos perfunctoriamente, é que há um tratamento de forma rasa para um problema extremamente complexo. Isso porque a B3 não especifica a forma como se operacionalizará a subscrição de ações de modo a assegurar que o mutuante tenha, ao menos, a prerrogativa e a preferência de não ter sua participação acionária diluída em decorrência de aumento de capital em sociedade aberta.

O que se verifica é a afirmação de que o mutuante terá o mesmo tratamento que teria caso estivesse com seus ativos em carteira, afirmação essa que não aponta fundamentação que imprima segurança jurídica às partes nem, muito menos, que se assegure às partes paridade de armas numa operação que pode prejudicar sobremaneira o mutuante.

Em esclarecimento às “perguntas frequentes” sobre renda variável, a B3 se posicionou acerca dos direitos de subscrição da seguinte maneira:

No caso de um provento em ativos (bonificação, grupamento etc.), o investidor doador recebe os ativos-objeto do empréstimo com as quantidades ajustadas.
Se houver opção de subscrição no período de empréstimo, o sistema empréstimo de ativos permite ao doador subscrever as ações a que tem direito sob as mesmas condições que teria caso estivesse com as ações em custódia (valores financeiros e datas). É importante ressaltar que durante o empréstimo, pelo fato do doador deixar de ser acionista formal da companhia, os direitos de subscrição não serão gerados em sua conta de custódia. Caberá ao tomador optar em devolver os direitos ou recibos de subscrição ou ações correspondentes à subscrição. No caso do recibo de subscrição ou novas ações o doador arcará com os custos relativos à subscrição. O acompanhamento do processo de subscrição através do sistema de empréstimos é realizado por sua equipe de monitoramento juntamente com a equipe da corretora ou agente de custódia responsável pelas operações de empréstimo de ações do investidor.

Com efeito, analisando o posicionamento da B3 sobre a situação posta, verifica-se que é louvável sua conduta, enquanto intermediadora da operação, consistente em assegurar ao mutuante o direito a subscrição de ativos nas mesmas condições em que se fosse acionista, mesmo no caso de mútuo de valores mobiliários, o que dá uma maior segurança ao investidor que poderá ter a certeza de que seu capital acionário não será diluído sem que tenha a oportunidade de aportar numerário correspondente para elidir tais consequências.

Portanto, o que se pode concluir da postura da B3 no papel de autorreguladora do mercado de capitais, é que há uma busca pelo respeito e pela conservação dos direitos essenciais dos acionistas, notadamente, no caso de operações de mútuo de valores mobiliários.

2.5 Direito de recesso

Por fim, no que tange aos direitos essenciais dos acionistas, existe o direito recesso, preconizado no inciso V do art. 109 da LSA, que estatui que: “Nem o estatuto social nem a assembleia-geral poderão privar o acionista dos direitos de retirar-se da sociedade nos casos previstos nesta Lei”.

Nesse particular, é importante elucidar que direito de recesso se caracteriza pelo direito de o acionista deixar os quadros societários quando ocorrerem alterações estatutárias que alterem a normatização que atendia a seus interesses e, também, que afetem as estruturas da própria sociedade.

No que concerne a posição de mutuante que deixa os quadros societários por determinado tempo, em decorrência de contrato de mútuo de valores mobiliários, há uma situação sui generis. Diz-se sui generis por buscar atribuir-se o tratamento de acionista àquele que nem sequer faz parte do quadro de acionistas naquele momento em decorrência de contrato de mútuo de ações ou valores mobiliários.

Importante salientar que o direito de recesso não se dá a partir de qualquer insurgência ou discordância do acionista, mas que dizem respeito a modificações capazes de alterar sobremaneira o estatuto de modo que o acionista dissidente entende que sua permanência nos quadros societários não faz mais sentido, seja por desinteresse ou até por alteração significativa do próprio objeto social, inclusive, no caso de fusão, cisão ou incorporação.

Eizirik (2015, p. 605) salienta que para o exercício do direito de recesso, notadamente, quanto ao mutuante que realizou contrato de mútuo dos respectivos valores mobiliários, não haveria a exigência da posse ininterrupta dos ativos, e que entendimento sem sentido inverso se afiguraria como violação ao § 6º do art. 141 da LSA, uma vez que o “legislador quando quis estabelecer a necessidade da titularidade ininterrupta, assim o fez claramente”. Oportuno ainda destacar lição do renomado jurista:

Deste modo, verifica-se que a Lei das S.A. determina claramente quem é o titular do recesso e quando ele poderá exercer o direito de se desligar da sociedade, recebendo o valor de reembolso das suas ações. 

Em momento algum a Lei das S.A. estabelece que para exercer o direito de retirada, além de ser comprovadamente titular das ações no momento da divulgação do fato relevante ou da publicação da convocação da assembleia geral, deverá o acionista conservar a posse dessas ações até o efetivo exercício desse direito ou o recebimento do valor de reembolso.

Não há exigência de posse ininterrupta nas hipóteses de recesso. Qualquer interpretação nesse sentido amplia o texto da lei, inovando-o, e restringe a possibilidade do exercício do direito de retirada para muitos acionistas, contrariando os princípios da legalidade e da segurança jurídica.

Nessa hipótese, verifica-se que os órgãos reguladores (B3 e CVM) não poderiam criar uma nova regra inovando o ordenamento jurídico em manifesta restrição a direito essencial do acionista, violando a legislação societária vigente.

Conclusão

A temática da transmissibilidade dos direitos do acionista mutuante para o mutuário no caso de contrato de “aluguel de ações” é assunto de extrema relevância e invariável objeto de discussão entre as partes contratantes. 

Ao analisar a questão sobre a possibilidade ou impossibilidade de normas infralegais, podem ou devem se estabelecer limitações aos direitos essenciais dos acionistas no caso do “aluguel de ações”, tanto para o mutuante quanto o mutuário, e levar em consideração a autonomia da vontade das partes, a legislação societária e o próprio Estado Democrático de Direito.

Portanto, parece-nos mais consentâneo com os ditames do Estado Democrático de Direito a adoção do entendimento de que, muito embora a CMV e a B3 por meio de suas resoluções e regulamentos de natureza infralegal, em regra, disponham de força cogente apta a limitar o exercício dos direitos essenciais de acionistas, deve ser respeitada legislação societária vigente. Conclui-se que em diversas oportunidades as regulamentações infralegais respeitam as limitações legais aos direitos essenciais, entretanto, em alguns pontos, tangenciam a extrapolação aos limites legais, notadamente, quanto ao direito de recesso do acionista (tanto mutuante quanto mutuário).

Bruno Freixo Nagem

Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre em Direito nas Relações Econômicas e Sociais. Especialista em Mercado de Capitais e Derivativos Especialista em Direito Processual. Ex-Professor de Direito da PUC Minas. Advogado.

brunonagem@gmail.com

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  6. As notas de rodapé devem ser colocadas no corpo do texto.

II) Normas Editoriais

Todas as colaborações devem ser enviadas, exclusivamente por meio eletrônico, para o endereço: revista.forense@grupogen.com.br

Os artigos devem ser inéditos (os artigos submetidos não podem ter sido publicados em nenhum outro lugar). Não devem ser submetidos, simultaneamente, a mais do que uma publicação.

Devem ser originais (qualquer trabalho ou palavras provenientes de outros autores ou fontes devem ter sido devidamente acreditados e referenciados).

Serão aceitos artigos em português, inglês, francês, italiano e espanhol.

Os textos serão avaliados previamente pela Comissão Editorial da Revista Forense, que verificará a compatibilidade do conteúdo com a proposta da publicação, bem como a adequação quanto às normas técnicas para a formatação do trabalho. Os artigos que não estiverem de acordo com o regulamento serão devolvidos, com possibilidade de reapresentação nas próximas edições.

Os artigos aprovados na primeira etapa serão apreciados pelos membros da Equipe Editorial da Revista Forense, com sistema de avaliação Double Blind Peer Review, preservando a identidade de autores e avaliadores e garantindo a impessoalidade e o rigor científico necessários para a avaliação de um artigo.

Os membros da Equipe Editorial opinarão pela aceitação, com ou sem ressalvas, ou rejeição do artigo e observarão os seguintes critérios:

  1. adequação à linha editorial;
  2. contribuição do trabalho para o conhecimento científico;
  3. qualidade da abordagem;
  4. qualidade do texto;
  5. qualidade da pesquisa;
  6. consistência dos resultados e conclusões apresentadas no artigo;
  7. caráter inovador do artigo científico apresentado.

Observações gerais:

  1. A Revista Forense se reserva o direito de efetuar, nos originais, alterações de ordem normativa, ortográfica e gramatical, com vistas a manter o padrão culto da língua, respeitando, porém, o estilo dos autores.
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  4. Uma vez aprovados os artigos, a Revista Forense fica autorizada a proceder à publicação. Para tanto, os autores cedem, a título gratuito e em caráter definitivo, os direitos autorais patrimoniais decorrentes da publicação.
  5. Em caso de negativa de publicação, a Revista Forense enviará uma carta aos autores, explicando os motivos da rejeição.
  6. A Comissão Editorial da Revista Forense não se compromete a devolver as colaborações recebidas.

III) Política de Privacidade

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