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O Regime Jurídico Único e a Mudança Normativa: Uma Análise da EC nº 19/1998 e a Jurisprudência do STF.

EC Nº 19/1998

JURISPRUDÊNCIA DO STF

O REGIME JURÍDICO ÚNICO E A MUDANÇA NORMATIVA

Bruno Betti Costa

Bruno Betti Costa

08/11/2024

Artigo escrito por Bruno Betti

O presente artigo examina a evolução normativa e jurisprudencial acerca do Regime Jurídico Único (RJU) aplicável aos servidores públicos no Brasil, destacando a Emenda Constitucional nº 19/1998 e o julgamento recente da ADI 2135 pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Aborda as interpretações sobre o RJU, a flexibilização permitida pela EC nº 19/1998 e o entendimento do STF que, inicialmente, suspendeu a alteração e, posteriormente, declarou sua constitucionalidade. A decisão da Suprema Corte marca a possibilidade de coexistência de múltiplos regimes jurídicos no setor público brasileiro, consolidando a opção dos entes federados em contratar servidores tanto sob regime estatutário quanto celetista, com implicações para a administração pública e a gestão de pessoal.

1. Introdução

A Constituição de 1988, em sua redação original, previa no art. 39, caput, que os entes federados (União, estados, Distrito Federal e municípios) instituiriam um Regime Jurídico Único (RJU) para os servidores da Administração Pública direta, suas autarquias e fundações, estabelecendo um regime padronizado de direitos e deveres para o funcionalismo público. No entanto, o cenário começou a se transformar com a Proposta de Emenda à Constituição nº 173/1995 (PEC 173/95), que resultaria, posteriormente, na Emenda Constitucional nº 19/1998 (EC 19).

Durante o curso dos debates em torno da PEC 173/95, surgiram eventos que lançaram dúvidas sobre a regularidade de seu trâmite. Em um dos momentos críticos, a Câmara dos Deputados, ao votar um destaque para votação em separado, rejeitou a proposta de alteração ao caput do art. 39 da Constituição, que inicialmente mantinha a exigência de um regime jurídico único e planos de carreira para servidores da administração direta, autárquica e fundacional. Essa rejeição, seguida de uma manobra legislativa, permitiu que o dispositivo fosse modificado, o que causou insatisfação imediata entre os deputados da oposição, que questionaram a decisão em plenário.

Na sequência, a questão de ordem apresentada pelos opositores foi indeferida pelo então presidente da Câmara, Michel Temer, em 19 de outubro de 1997. Em resposta, foi ajuizado um mandado de segurança para barrar a votação em segundo turno do texto já modificado, mas o Supremo Tribunal Federal (STF) negou a liminar com o argumento de que a discussão ainda estava em trâmite na Câmara dos Deputados.

Quando finalmente votada em segundo turno, a matéria, já alterada pelo relator, foi aprovada por 3/5 dos votos e confirmada pelo Senado Federal, também em dois turnos de votação e com a mesma margem de aprovação, consolidando a mudança pretendida pela EC 19/1998. Esses potenciais vícios no processo legislativo da emenda permaneceram como pontos de controvérsia, o que levou ao questionamento de sua constitucionalidade perante o STF, configurando-se, assim, uma questão jurídica complexa e relevante para o regime jurídico dos servidores públicos no Brasil.

A EC 19/1998 possibilitou que os entes federados adotassem múltiplos regimes jurídicos para contratação de servidores, e o questionamento sobre sua constitucionalidade chegou ao STF, que inicialmente suspendeu a sua aplicação. Contudo, em decisão recente, o STF declarou a constitucionalidade do dispositivo, consolidando a permissibilidade de regimes jurídicos variados no setor público.

2. O Conceito de Regime Jurídico Único

Historicamente, o Regime Jurídico Único (RJU) tinha por objetivo estabelecer um único regime normativo para os servidores de cada ente federado, seja ele estatutário ou celetista. Essa imposição gerou divergências doutrinárias sobre a natureza do RJU, dividindo-se em duas correntes principais:

  • Primeira corrente: O RJU permitiria aos entes federados escolher entre o regime estatutário e o regime celetista, ambos válidos desde que fossem aplicados exclusivamente e de forma unificada a todos os servidores de determinada administração.
  • Segunda corrente: O RJU seria necessariamente estatutário, ou seja, um regime especial que asseguraria estabilidade e outras garantias específicas aos servidores públicos.

A aprovação da EC nº 19/1998 suprimiu essa obrigatoriedade, permitindo que os entes federados contratassem servidores sob múltiplos regimes jurídicos.

3. A EC nº 19/1998 e a Flexibilização do RJU

A Emenda Constitucional nº 19/1998 alterou o art. 39 da Constituição ao abolir a exigência de um Regime Jurídico Único, autorizando os entes federados a adotar regimes diversos de contratação. Assim, passou a ser possível que as administrações públicas diretas, autarquias e fundações mantivessem vínculos tanto estatutários quanto celetistas com seus servidores, permitindo maior flexibilidade e ajustando a contratação às especificidades de cada função ou necessidade administrativa.

A União, por exemplo, instituiu o regime de empregados públicos com a Lei nº 9.962/2000, permitindo que servidores fossem contratados por meio de concurso público sob o regime da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

4. A Suspensão do Novo Regime Jurídico pela ADI 2135

Em 2007, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi instado a se pronunciar sobre a validade do art. 39, caput, da Constituição, em sua redação dada pela Emenda Constitucional nº 19/1998, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 2135. Em sede liminar, o STF deferiu medida para suspender temporariamente a eficácia da emenda, restabelecendo provisoriamente o regime jurídico único até o julgamento definitivo da questão.

O entendimento preliminar do STF, ao conceder a liminar, foi de que havia elementos suficientes para questionar a conformidade constitucional da EC 19/1998, dado que a modificação do art. 39 poderia ter sido aprovada sem a devida observância ao processo legislativo. Nesse sentido, a liminar visava manter o regime jurídico único até que se pudesse examinar mais profundamente as alegações de vício formal, evitando uma mudança de grande impacto nos regimes de contratação da administração pública antes da decisão final.

É relevante destacar que a decisão liminar teve eficácia ex nunc, produzindo efeitos apenas a partir da concessão da medida e sem efeito retroativo. Assim, leis e atos administrativos editados durante a vigência do novo dispositivo, ainda que posteriormente suspenso, permaneceram válidos até nova deliberação.

Essa decisão liminar do STF representou, portanto, uma suspensão temporária da aplicação do regime jurídico múltiplo, aguardando-se o julgamento do mérito. Ela permitiu que os entes federados continuassem com o regime jurídico único até que a questão fosse definitivamente solucionada.

5. A Decisão Final do STF sobre o RJU e a ADI 2135

Recentemente, o STF concluiu o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 2135, alterando seu entendimento inicial e declarando a constitucionalidade do art. 39, caput, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 19/1998. A decisão foi tomada por maioria, prevalecendo o voto divergente do ministro Gilmar Mendes sobre o entendimento da relatora, ministra Cármen Lúcia, que havia votado pela inconstitucionalidade da emenda.

O cerne do debate residiu na alegação de vício formal no processo legislativo que culminou na aprovação da EC 19/1998. Críticos sustentavam que a alteração da redação do caput do art. 39 havia ocorrido mediante uma manobra legislativa, que teria alterado a essência do texto original e, assim, comprometido a validade do procedimento. No entanto, para o ministro Gilmar Mendes, o deslocamento do dispositivo no curso do processo legislativo não configurou uma irregularidade material ou formal. Segundo ele, a alteração de posição de um dispositivo dentro da proposta legislativa, sem alteração substancial, não descaracteriza a emenda nem viola os requisitos constitucionais.

O Tribunal concluiu que o processo de votação da EC 19/1998 seguiu as exigências constitucionais, uma vez que a emenda foi aprovada em dois turnos por 3/5 dos votos tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado Federal. Para a corrente majoritária, não houve violação do devido processo legislativo, pois o texto foi aprovado regularmente, ainda que em uma ordem diferente daquela adotada no primeiro turno na Câmara.

A decisão do STF foi acompanhada da revogação da medida liminar anteriormente concedida, que havia suspendido a eficácia da redação dada pela EC 19/1998 ao art. 39, caput. Com a declaração de constitucionalidade, a possibilidade de coexistência de regimes jurídicos no setor público foi consolidada, permitindo que os entes federados optem pela adoção de regimes jurídicos variados para seus servidores, seja o regime estatutário, seja o celetista.

Essa decisão encerra, portanto, a controvérsia sobre a obrigatoriedade do Regime Jurídico Único, restabelecendo a autonomia dos entes federados para organizar a contratação de seus servidores conforme melhor se adeque às suas necessidades administrativas e operacionais.

6. Implicações da Decisão do STF e a Necessidade de Regulamentação por Lei

A decisão do STF que consolidou o fim da obrigatoriedade do Regime Jurídico Único e a possibilidade de coexistência de regimes jurídicos diversos para os servidores públicos impõe, no entanto, uma série de desafios para a administração pública direta. Para a efetiva implementação do regime celetista, exige-se a edição de lei específica que regule a aplicação desse regime no âmbito da administração direta de cada ente federativo. Essa regulamentação deve estabelecer as condições e diretrizes para a contratação de empregados públicos, adaptando o regime trabalhista às peculiaridades da administração pública e assegurando a conformidade com os princípios constitucionais. Ademais, na legislação será necessária a criação de empregos públicos para provimento.

Além disso, a exigência de concurso público para o ingresso dos empregados públicos permanece inalterada, conforme dispõe o art. 37, II, da Constituição Federal de 1988. A observância desse dispositivo é imprescindível para garantir a isonomia e a impessoalidade na contratação de servidores, assegurando que o acesso ao serviço público ocorra mediante processo seletivo objetivo e transparente.

Ainda que o regime celetista tenha sido autorizado, ele não pode e não deve ser aplicado a carreiras típicas de Estado, como as carreiras policiais, a magistratura, o Ministério Público, as procuradorias e a defensoria pública. Estes cargos exigem independência funcional, estabilidade e garantias específicas para o exercício de funções essenciais ao Estado, incompatíveis com o regime celetista. Dessa forma, os entes federativos deverão limitar a aplicação do regime trabalhista a cargos de natureza administrativa ou técnica que não envolvam as atividades exclusivas de Estado.

Ademais, a questão das carreiras compatíveis com o regime celetista deverá ser apreciada pelo STF em algum momento, dada a relevância da matéria e a necessidade de definição sobre quais atividades podem ou não ser exercidas sob o regime trabalhista. Provavelmente, a Corte será chamada a manifestar-se sobre a compatibilidade do regime celetista com determinadas carreiras, consolidando um entendimento sobre a limitação do regime trabalhista para cargos exclusivamente administrativos e que não envolvem as prerrogativas típicas de funções de Estado.

Outro aspecto relevante refere-se à questão da estabilidade dos empregados públicos contratados sob o regime celetista. O tema ainda suscita debates na doutrina e na jurisprudência, especialmente no que diz respeito à aplicabilidade dos princípios e direitos assegurados aos servidores estatutários aos empregados celetistas da administração pública direta. A opinião do autor deste artigo alinha-se ao entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário nº 688.267, que, ao examinar a estabilidade e os requisitos para a demissão de empregados concursados em empresas estatais, estabeleceu parâmetros relevantes.

Conforme o entendimento do STF no referido recurso, as empresas públicas e sociedades de economia mista, independentemente de serem prestadoras de serviços públicos ou exploradoras de atividade econômica em regime de concorrência, devem motivar formalmente a demissão de seus empregados concursados. Esse dever de motivação, contudo, não exige a instauração de um processo administrativo nem a tipificação da conduta nas hipóteses de justa causa previstas na legislação trabalhista. Basta que a motivação apresentada seja razoável e suficiente para justificar o ato de desligamento, atendendo ao princípio da transparência e à necessidade de fundamentação dos atos administrativos.

Portanto, ainda que a estabilidade típica do regime estatutário não se aplique automaticamente aos empregados públicos celetistas, o dever de motivação para a demissão de empregados concursados na administração pública direta e indireta emerge como uma garantia mínima. Tal entendimento promove um equilíbrio entre a necessidade de eficiência administrativa e a proteção dos direitos dos empregados concursados, exigindo que a administração fundamente suas decisões de desligamento, ainda que sem a necessidade de justa causa.

7. Conclusão

A flexibilização trazida pela Emenda Constitucional nº 19/1998 e confirmada pela decisão do STF representa uma mudança significativa no regime de contratação de servidores públicos no Brasil, permitindo que os entes federados optem pela coexistência de regimes jurídicos conforme suas necessidades administrativas. Com essa decisão, a administração pública ganha maior autonomia para organizar suas contratações, ajustando o regime de trabalho às especificidades de cada função.

No entanto, a decisão do STF não encerra todas as questões sobre o tema. Alguns aspectos fundamentais ainda demandam aprofundamento e regulamentação, como a definição dos cargos que poderão ser abrangidos pelo regime celetista e a extensão da proteção contra demissões arbitrárias para empregados concursados. A delimitação de quais cargos são compatíveis com o regime trabalhista é especialmente relevante, pois cargos típicos de Estado — como as carreiras policiais, magistratura, Ministério Público, procuradorias e defensoria pública — possuem características essenciais e prerrogativas que exigem o regime estatutário para preservar sua autonomia e independência. A definição desses limites será crucial para assegurar que a flexibilização dos regimes jurídicos atenda aos interesses da administração sem comprometer a qualidade e imparcialidade dos serviços essenciais ao Estado.

Outro ponto que demandará atenção legislativa e, provavelmente, nova manifestação do STF é a questão da estabilidade dos empregados públicos celetistas. Embora o entendimento atual do STF, exposto no RE nº 688.267, exija uma motivação formal e razoável para a demissão de empregados concursados, ainda resta definir se a estabilidade conferida a esses empregados será equiparada à dos servidores estatutários ou se haverá um regime próprio, adequado às características do vínculo celetista.

Assim, a decisão do STF, ao confirmar a constitucionalidade da EC nº 19/1998, inicia uma nova fase na contratação pública, porém impõe desafios interpretativos e de regulamentação que deverão ser enfrentados nos próximos anos. As próximas discussões sobre a matéria serão fundamentais para consolidar o novo modelo de relações de trabalho na administração pública, harmonizando-o com os princípios constitucionais e com as exigências do serviço público.

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