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Sistema Colegiado Suíço, de A. Machado Paupério De A. Machado Paupério

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18/03/2024

SUMÁRIO: A Suíça como país. Sua autêntica democracia. A autonomia local. A soberania dos cantões. As landsgemeinde. Organização bicameral do Legislativo no âmbito federal. O Conselho Federal (bundesrat) como Executivo colegiado. O Tribunal Federal: seu papelmais modesto em relação à Suprema Côrte americana. Originalidade e excelência do regime. Repercussão entre nós do modêlo político suíço.

A Suíça, apesar de compreender três raças, três ou mesmo quatro línguas e duas religiões, e, por isso, exatamente, não apresentar unidade étnica, nem lingüística, nem religiosa, é, todavia, nação das mais unificadas e das mais nacionais.

Tanto basta para se demonstrar não serem aquêles fatôres únicos e decisivos na formação das nacionalidades.

A Suíça como país. Sua autêntica democracia

A Suíça é, aliás, ao mesmo tempo, o país mais nacional e mais internacional do Universo, o que parece, sem dúvida, verdadeiramente paradoxal.

Para WILLIAM RAPPARD, isso é devido a que “tôda sua política exterior é dominada por duas tendências contrarias, das quais uma é favorável ao isolamento internacional e outra à solidariedade humana”, a primeira fruto de longa tradição histórica e a segunda de uma concepção altamente social.

Com a diversidade de raças, de língua, de religião e de cultura que a Suíça apresenta, não podia ela acompanhar a política externa praticada pelas outras potências: seria bem difícil, com tal diversidade, escolher um sistema de aliança internacional que lhe conviesse plenamente.

Isso levou, talvez, a Suíça a constante e tradicional neutralidade. Tal neutralidade, porém, que se impõe ao Estado, não se impõe do mesmo modo aos particulares, como se poderia desavisadamente pensar. Escritores, oradores, jornalistas, não estão, de modo geral, sujeitos a abdicar de suas próprias convicções e opiniões. O próprio Conselho Federal manteve com firmeza essa distinção entre a neutralidade política e a neutralidade moral. Se assim não fôsse, transformar-se-iam os suíços em verdadeiros eunucos políticos, êles que sempre pretenderam conservar altivamente sua liberdade de julgar, de preferir, de condenar.

Essa neutralidade não lhes impediu, contudo, que aderissem ao estatuto da nova Côrte internacional de Justiça, criada sob a égide das Nações Unidas, depois, embora, de bem assegurados – e o debate no Conselho Nacional esclareceu bastante o assunto – da garantia e da intangibilidade de sua tradicional neutralidade.

Por isso mesmo, não tem a Suíça Exército nem quadros militares permanentes, a não ser um quadro de carreira especializado, de 350 oficiais e 200 suboficiais, com a função de instrutores. Os demais oficiais e soldados fazem parte da milícia. A princípio, os homens passam 17 semanas numa escola de recrutas, sujeitando-se, depois, periòdicamente, a exercícios militares (v. ANDRÉ SIEGFRIED, “La Suisse démocratie-témoin”, Paris, 1948, pág. 198).

Ao se entrar, porém, na Suíça, como faz notar o mesmo SIEGFRIED, “tem-se a impressão de entrar num outro mundo, em que as leis são aplicadas, em que os regulamentos são respeitados, em que as engrenagens sociais são convenientemente lubrificadas, em que o fim da política é assegurar aos homens mais bem-estar, mais vantagens sociais…” (ob. cit., pág. 215).

Mas é, sobretudo, sob o ângulo político que a Suíça se tornou impar e original por excelência, no conceito das nações civilizadas. Lá, não se conhece a concepção romano-latina do Estado, cujos detentores do poder procuram, a todo preço, dominar.

Com a diversidade de línguas, de religião e de cultura, o regime político suíço havia de caminhar, sem dúvida, como de fato caminhou, em direção da descentralização mais acentuada. Daí a base cantonal necessária do regime helvético.

O princípio dessa democracia sui generis está, deveras, em ser comunal antes de ser cantonal e cantonal antes de ser federal. Sua base é, assim, a da autonomia local.

Muito mais que antiestatista, a Suíça é anticentralista.

A soberania dos cantões

A administração comunal é muito variada: em alguns cantões, o prefeito, que também se chama presidente ou síndico, é eleito por um conselho municipal, como na França, mas freqüentemente é nomeado de maneira direta pelo povo, que se reúne periòdicamente assembléia plenária e exerce as funções de conselho municipal. Dentro da comuna municipal, existem, por sua vez, várias comunas distintas: a comuna burguesa, a comuna escolar, a comuna de assistência, a comuna eclesiástica. Esta última escolhe o pastor ou mesmo o cura, de uma lista tríplice apresentada pelo arcebispo (v. SIEGFRIED, ob. cit., pág. 139).

O suíço, antes de ser suíço, é de Zurique, de Glaris ou de qualquer outra região.

A Suíça compõe-se de partes semelhantes entre si, mas com fisionomia própria. Uri, Schiwyz, os dois Unterwald, Zoug, Glaris, os dois Appenzell eram cantões democráticos; os Grisões, o Valais, eram, sobretudo, federações de comunas autônomas; Zurique, Basiléia, Schaffhouse, Saint-Gall e em menor escala Bienne, Mulhouse e Genebra, baseando-se sôbre corporações, eram verdadeiras oligarquias; Berna, Lucerna, Friburgo, Soleure, Estados aristocráticos, com a soberania corporificada num patriciado exclusivo; finalmente, o principado de Neuchâtel, o arcebispado de Basiléia, as abadias de Saint-Gall e de Endelberg apresentavam regime monárquico. Nos diversos territórios suíços longe estava o Estado de ter igualdade de estatuto político.

Ainda hoje pode-se dizer que o cantão, em tudo em que a Constituição federal não lhe limita os poderes, é verdadeiramente soberano. O direito federal é, assim, quase verdadeiro direito internacional, semelhante ao direito internacional, que se formou entre os Estados (v. DU PASQUIER, “Introduction à la théorie générale et à la philosophie du Droit”, 1948, pág. 43).

De fato, pode-se dizer que a Federação administra e os cantões governam. Mesmo ùltimamente, com certa tendência à centralização, caracterizada pela hipertrofia do pessoal administrativo, que passou de 10.842 funcionários em 1939 a 29.630 em 1945 (v. SIEGFRIED, ob. citada, pág. 174), os cantões continuam com larga base autonômica.

Mas é na Suíça oriental, especialmente em alguns cantões católicos primitivos, que o govêrno direto do povo pelo povo chegou às conseqüências lógicas mais radicais.

Na França, nos Estados Unidos e nos demais países que se inspiraram polìticamente naqueles Estados, delegou-se sempre a soberania popular; na Suíça, porém, a democracia mantém-se quase direta e o povo não abdica, assim, de seus próprios poderes, reservando-se o direito não só de dizer a primeira palavra, pela iniciativa, como a última, pelo referendum.

Dentro dos próprios têrmos da Constituição, qualquer lei votada pela Assembléia federal só pode entrar em vigor se, dentro do prazo de 90 dias, não se pedir para ela a votação popular; se 30.000 cidadãos, pelo menos, requererem o referendum, caberá ao povo decidir sôbre a adoção ou a rejeição da lei.

A iniciativa, que pode ser legislativa e constitucional nos cantões, no âmbito federal apenas pode ser constitucional. Nesse caso, 50.000 cidadãos podem não só requerer a adoção de um novo artigo constitucional como a reforma ou mesmo a revisão total da Constituição.

Em virtude dêsse regime, é o próprio povo que, reunido em assembléia plenária, exerce, sem qualquer intermediário, o Poder Legislativo e escolhe por eleição os magistrados.

As landsgemeinde

As landsgemeinde, nome pelo qual se designam essas assembléias, remontam, como diz SIEGFRIED, ao pacto histórico que uniu, no século XIII, os três primitivos cantões, Schwyz, Uri, Unterwald. Pouco depois, por volta de 1387, tinha Glaris a primeira assembléia dêsse tipo (ob. cit., pág. 142).

A Constituição cantonal compreende um parlamento ou grande conselho (landrat), eleito pelo prazo de quatro anos, e um Executivo ou Conselho de Estado, sob a chefia de um landamman, eleito, também, de três em três anos.

Não é, contudo, ao landrat que pertence o Poder Legislativo. Àquele cabe apenas apresentar os projetos de lei; quem os vota, realmente, é a landsgemeinde, a quem cabe também eleger não só os membros do Executivo como os juízes.

Estamos em presença de uma democracia integral: o povo elege um grande conselho e um conselho executivo. Mas não só. Designa também, de modo direto, os juízes e até mesmo numerosos funcionários cantonais.

Os cantões, está claro, são anteriores à Confederação, que foi resultado de agregação e não de unificação. A Confederação, que se transformou hoje em Federação, é uma República democrática, composta de 22 cantões, que conservam, como vimos, de maneira geral, em virtude da grande descentralização, sua verdadeira soberania.

Estamos, assim, diante de um regime representativo, em que as assembléias sofrem não só o contrôle do povo, através do referendum, como a sua própria inspiração, através do instituto da iniciativa.

Êsse regime caracteriza-se, porém, sobretudo, porque o Executivo é estritamente colegial, sem, portanto, os caracteres e os elementos pessoais que informam o regime monárquico ou o republicano presidencial.

O regime colegial, também chamado de executivo plural ou sistema diretorial, caracteriza-se, como sabemos, pela encarnação do Poder Executivo nas mãos de um grupo ou comissão de cidadãos, encarregados da direção da vida do Estado.

Foi pôsto em prática, na Europa, inicialmente, pela Constituição francesa de 1795, vingando em França, em vários períodos constituintes. Sem dúvida, porém, só alcançou definitiva estabilidade e relêvo ímpar com a prática política suíça, regulada tècnicamente pela Constituição de 1848, que, apesar das importantes revisões sofridas em 1874 e 1931, vigora até hoje.

A autoridade legislativa nacional é encarnada pela Assembléia federal; e o govêrno, pròpriamente, pelo Conselho Federal.

A Assembléia federal constitui-se de duas Câmaras: o Conselho Nacional e o Conselho dos Estados.

A primeira dessas Câmaras representa o povo, que elege, em cada cantão, um número de deputados proporcional à sua população, tendo, cada cantão, por pequeno que seja, a representação de, pelo menos, um deputado.

A segunda Câmara, que corresponda ao nosso Senado, já não representa a população mas as próprias unidades cantonais, na proporção de dois membros por cantão, seja de que tamanho e de que população fôr. Êsses conselheiros são nomeados segundo os costumes e leis locais, às vêzes pelas autoridades cantonais, às vêzes pelo próprio povo.

Os poderes de ambas as Câmaras são idênticos: a Assembléia federal só pode tomar decisões pela maioria concordante das duas Casas. Só se reúnem, porém, para deliberar em comum, em face de um pequeníssimo número de casos: a eleição do Conselho Federal, dos juízes federais, dos membros do Tribunal Federal de Segurança; em tempo de guerra, do general-comandante em chefe do Exército.

O Conselho Federal (bundesrat) como Executivo colegiado

O Conselho Federal (bundesrat), finalmente, compõe-se de sete membros, (ministros), eleitos por três anos pela Assembléia federal, geralmente dentre os membros do Legislativo, de modo que não se escolha mais de um por cantão, atribuindo-se tradicionalmente sempre um conselheiro aos cantões de Berna, Zurique e Valais (v. PAOLO BISCARETTI DI RUFFIA, “Lo stato democratico moderno”, Milão, 1946, pág. 151).

Êsse Conselho Federal, em última análise, não é mais que um Conselho de Ministros, em que cada um dêles é responsável por um departamento determinado (v. ESMEIN, “Eléments de Droit Constitutionnel”, 8ª ed., Paris, 1927; tomo 1, pág. 534).

Apesar de as decisões dêsse Conselho Federal serem tomadas por maioria, é comum ver-se um conselheiro lazer oposição a outro, ao discutir qualquer assunto na Assembléia.

Por isso mesmo, não concorda ESMEIN que se possa dar a essa forma de govêrno o nome de govêrno diretorial, mais aplicável ao da Constituição do ano III, em França, em que a direção suprema dos negócios públicos pertence a um Conselho que tem sob suas ordens ministros. O regime suíço, porém, em que os membros do Conselho de govêrno são colocados à frente dos vários departamentos ministeriais, é, de fato, mais colegial que diretorial (v. ESMEIN, ob. cit., página 536).

Êsse Conselho é um autêntico órgão colegiado, um colégio, mas não é responsável, no sentido parlamentarista, perante as Câmaras. Ainda que colocado em minoria, sem o voto de confiança do Parlamento, não se demite. De outro lado, não pode também dissolver o Conselho Nacional.

Com relação ao Parlamento, tornou-se o Conselho Federal mais poderoso e de modo especial mais independente, pois, pràticamente inamovível, difìcilmente pode ser controlado em virtude da grande complexidade técnica dos assuntos de govêrno.

O Tribunal Federal: seu papel mais modesto em relação à Suprema Côrte americana

Com as emendas à Constituição, de 1874, criou-se um Tribunal Federal, pôsto no ápice do Poder Judiciário, composto de 14 membros eleitos pela Assembléia

federal por seis anos, com a competência específica de anular as leis cantonais contrárias à Constituição federal ou à do respectivo cantão. A declaração, porém, da inaplicabilidade das leis federais escapa à sua alçada, sendo-lhes único árbitro a Assembléia federal (v. RUFFIA, ob. cit., pág. 152).

O que há de original neste regime, máxime em relação ao das democracias ocidentais, é, entretanto, o que diz respeito à eliminação sistemática do personalismo. Nesse sentido, pode-se dizer que a eleição anual do presidente e do vice-presidente do Estado pela Assembléia federal é mera formalidade. Apesar de primus inter pares, o presidente do Estado, que preside também às reuniões do Conselho Federal, não desempenha qualquer função de importância especial: incumbem-lhe apenas algumas obrigações de representação no exterior. Em virtude, porém, da rotatividade estatuída pela Constituição, o presidente muda de ano em ano: desconhece-se, assim, ali, o tipo de presidente habitual, na França, nos Estados Unidos ou entre nós.

Vê-se, por aqui, estar de todo afastado de semelhante clima político, com o qual é incompatível, o personalismo próprio dos governos da América latina.

As decisões do Conselho Federal são tomadas sempre coletivamente, como se se tratasse de um gabinete. Via de regra, seus membros são sempre reeleitos. No seu departamento ministerial, cada um dêles é não só o chefe político como o chefe administrativo, adstrito, como primeiro funcionário que é em seu setor próprio, à mesma pontualidade de qualquer de seus mais humildes colaboradores (v. SIEGFRIED, ob. cit., pág. 152).

É verdade que, se tudo isso é possível, se deve, sobretudo, às condições peculiares dêste país admirável, onde um povo, ordeiro e trabalhador, devotado às atividades agrícolas e industriais, não conhece a miséria nem o analfabetismo.

Por isso mesmo, aí se pôde praticar a democracia através de seu princípio por excelência que é o da “igual oportunidade para todos”.

Os prefeitos, os conselheiros de Estado, etc. saem de tôdas as categorias econômicas e se entre êles se encontram muitos homens importantes por sua situação social, é porque, de qualquer modo, revelaram mérito ou apresentaram relevantes serviços prestados à coletividade. A política não existe, assim, em função da fortuna ou do nascimento: não se conhece, aí, o fator hereditariedade para a constituição da classe dirigente.

*

O regime colegiado suíço já suscitou na América o exemplo uruguaio e inspira no Brasil, de certo modo, contemporâneamente, uma corrente doutrinária iniciada pelo Prof. FERNANDO NOBRE e continuada pelo brigadeiro GUEDES MUNIZ.

Como diz o Prof. LEO MAGNINO, da Universidade de Roma, “para disciplinar os Estados e estabelecer entre êles uma vida comum, é necessário que se estabeleça por tôda parte leis aptas a frear as ambições nacionalistas e, no limite de cada Estado, as ambições pessoais” (apud “Revue de l’Institut de Démophilocratie pour la Paix Universelle”, página 17).

E nada melhor para frear as ambições pessoais que o Executivo plural, dizem os adeptos do regime colegiado. Com uma vantagem, a de reunir as qualidades porventura existentes em cada membro do colégio.

No sistema do Prof. NOBRE, caberia aos conselheiros municipais, na qualidade de diretos representantes do povo, eleger a Câmara dos Deputados de cada região. Êsses deputados, por sua vez, é que elegeriam o Conselho Administrativo Regional e o Parlamento Nacional. Finalmente, os membros dêsse Parlamento elegeriam o Conselho Nacional Administrativo Supremo, composto de nove membros vitalícios, sendo os demais mandatos eletivos temporários, com uma duração geral de quatro anos.

O julgamento dos conselheiros supremos, como é óbvio, caberia à Côrte Suprema de Justiça, a quem competiria igualmente não só o contrôle das atividades dos membros do govêrno como a observância das leis e da própria Constituição.

O govêrno colegiado proposto envolve, como vemos, eleições indiretas, de segundo e terceiro graus. Sob êsse ponto de vista, porém, o sistema não é totalmente desconhecido entre nós, pois aparece pregado na extensa bibliografia integralista, que defende a substituição dos partidos políticos, sistema profundamente artificial e inorgânico, pelas corporações.

Dentro de tal concepção, elegeriam as corporações os deputados à Câmara Nacional, que passaria, então, a eleger o presidente da República.

O mesmo se daria, analògicamente, no âmbito estadual e municipal, com relação ao Legislativo e Executivo, por parte, respectivamente, das federações e dos sindicatos.

Como única observação, releva notar, aqui como lá, a superioridade do voto sindical ou municipal sôbre o voto comum entre nós.

De fato, um cidadão ignorante das regiões menos civilizadas de um país é incapaz de voar conscienciosamente para escolher um candidato a pôsto eletivo nacional, cujo nome jamais ouviu, direta ou indiretamente que fôsse. De outro lado, porém, por iletrado e humilde que seja êsse cidadão, é sempre capaz de eleger, e de eleger bem, para representante à Câmara Municipal, pessoa de sua categoria profissional, de seu distrito, de seu município, que conhece pessoalmente e lhe inspira maior confiança.

A. MACHADO PAUPÉRIO, Professor da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica

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