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O costume jurídico no Direito brasileiro, de Alípio Silveira

REVISTA FORENSE 164

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10/06/2024

SUMÁRIO (continuação): IV. O costume no direito brasileiro. A questão do costume contralegem. V. Prova do costume. VI. O costume no direito comercial brasileiro. VII. O costume no direito civil brasileiro. VIII. O costume no direito internacional público.

IV. O COSTUME NO DIREITO BRASILEIRO

Já nos tempos coloniais, os costumes surgiram no direito luso-brasileiro. Alguns dêles violavam a letra das Ordenações. Assim é que o alvará de 30 de outubro de 1793 confirmou o costume introduzido no Brasil, em oposição à Ordenação do Livro III, t. 59, de valerem como escritura pública os escritos e assinados particulares, e de se provarem, por testemunhas, quaisquer contratos, sem distinção de pessoas e quantias, à exceção dos que forem celebrados nas cidades, vilas ou arraiais, onde haja tabeliães, etc. etc. (v. PONTES DE MIRANDA, “Fontes e Evolução do Direito Civil Brasileiro”, páginas 71 e segs., e BORGES CARNEIRO, “Direito Civil de Portugal”, t. I, pág. 49, nota 2).

Em matéria de direito comercial, existe entre nós número relativamente avultado de costumes, quer de costumes referidos pelo Cód. Comercial (secundumlegem), quer de costumes supletivos. Assim, pertencem a esta última categoria os usos comerciais que surgem na compra e venda mercantil, à falta de disposições do Cód. Civil (CARVALHO DE MENDONÇA, ob. cit., vol. 6, III, número 1.429).

Para citarmos um exemplo recente a propósito da venda de automóvel, uma decisão recorreu aos usos estabelecidos na praça (acórdão da 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, de 28-11-50, no “Arq. Judiciário”, de 5 de novembro de 1951, pág. 239, segunda coluna).

Em matéria de direito civil, vários artigos de nosso Código se referem ao costume do lugar; o Cód. de Águas (decreto nº 24.643, de 10 de julho de 1934) se refere, nos arts. 38, 57 e 60, aos usos locais. A lei nº 492, de 30 de agôsto de 1937 (Penhor Rural), se refere, em seu art. 8º, aos usos e costumes da praça. Por outro lado, existem, em matéria de águas zonas de nosso país nas quais vigoram até hoje costumes tradicionais.

Assim, na Chapada Diamantina (Estado da Bahia), em que há certa escassez de águas, existe a irrigação artificial, sujeita a um regime costumeiro que a boa tradição tem feito respeitar. A captação, o desvio, a, repartição, estão sujeitos a usos tradicionais (TEODORO SAWAIO, “O Rio de São Francisco”, pág. 120).

Também na Chapada do Araripe dá-se o mesmo. Informa o engenheiro ALCEU DE LELLIS, em sua monografia “O Nordeste Brasileiro”:

“Ali, onde a borda aprumada se transformou em colina úmida, o homem destruiu a floresta, estabeleceu-se e amoldou-se à terra. Adquiriu costumes originais, criou individualidade, inventou uma irrigação parca para o solo inclinado, estabeleceu uma onerosa vida agrícola, até fêz leis impondo o seu direito costumeiro, que regula o uso agrícola da água. Precisamos dizer que êle é mais respeitado que as nossas leis custosamente elaboradas aqui?”

E, pouco adiante, faz mais ampla referência a êsse direito de águas:

“Não se pode negar que existe verdadeira tendência para o espírito de cooperação no homem do nordeste. Êle se manifesta francamente nas fraldas da Chapada do Araripe, onde brotam, de falhas da rocha, fontes poderosas. Nesse singular altiplano, um uso tradicional, que regula a distribuição d’água para a irrigação, é rigorosamente mantido sem o prestígio de autoridade alguma. De cada fonte saem regos e canais que, subdivididos, se espalham pelas múltiplas e pequenas propriedades das encostas. A cada lote de terra cabe, no mês, determinado número de dias, dois ou três, para o uso da água. As terras se transmitem com êsse direito, que também é objeto de comércio, quando o proprietário, não fazendo a cultura, pode dispensar a água em proveito do vizinho. E todo êsse complicado mecanismo de distribuição,- d’água para as culturas move-se espontaneamente e metòdicamente, ao único impulso do interêsse coletivo, sem lei escrita, tradicionalmente” (“O Nordeste Brasileiro”, na “Geografia do Brasil”, editada pela Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, 1922, vol. I, págs. 6, 7 e 17).

Releva acrescentar que, em vasta região semiárida da República Argentina, dá-se o mesmo, em matéria de costumes (P. DENIS, “La Republique Argentine”, 1920, págs. 33-37).

Ainda quanto aos costumes do Brasil, em muitas zonas criadeiras, especialmente, é costume se fazer negócio de gado de grande valor, sem qualquer documento escrito, isto é, sem observância das regras da prova contidas nos Códs. Civil e Comercial. O mesmo se diga em relação aos negócios locais provenientes das nossas várias indústrias extrativas (garimpeiros, poiaeiros, etc.).

O conceituado jornal “O Diário”, de Belo Horizonte, informa que em Teófilo Otôni, centro de uma das maiores riquezas mundiais em pedras semipreciosas, o comércio de pedras se faz na base de confiança. Grandes somas de dinheiro são empatadas pelos pedristas sem que se passe um único documento legal (edição de 24 de setembro de 1953, pág. 6).

*

Já foi visto anteriormente que o costume se apresenta sob três formas: secundumlegem, praeterlegem e contralegem.

A maioria das legislações faz referência às duas primeiras formas, afirmando a respeito o Prof. RECASENS SICHES:

“Embora a codificação tenha diminuído enormemente a importância do costume e tenha restringido em grande medida seu campo de ação, não obstante subsiste êle no campo do Direito Privado, pois a maior parte dos Códs. Civis – assim como também mercantis – concedem-lhe vigência como fonte subsidiária do direito, quando não existe lei aplicável ao caso a resolver; e também em outros casos completam sua própria normação com a referência a uma regra consuetudinária (por exemplo, quando a lei diz que o pagamento de um arrendamento rural verificar-se-á na data que determine o costume do lugar)” (“Vida Humana, Sociedad y Derecho”, 2ª ed., pág. 284).

A primeira forma citada por SICHES é o costume praeterlegem, e a segunda o secundumlegem.

Quanto ao costume contralegem, as legislações não lhe fazem referência direta.

O costume jurídico, no direito brasileiro, se manifesta sob estas várias formas:

1º) Costume secundumlegem. Serve êle, em primeiro lugar, ao preenchimento do texto legal, nos casos expressamente indicados pelo legislador, de que temos exemplos nos Códs. Civil e Comercial, e o exemplo único do art. 458 da Consolidação das Leis do Trabalho: Também o costume secundumlegem aparece sob outra forma, a saber, na interpretação da lei. O Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu a respeito:

“No direito, e especialmente no ramo comercial, o costume é um elemento fixador da interpretação legal” (acórdão de 22 de julho de 1940, na “Rev. dos Tribunais”, vol. 130; pág. 131).

Ainda serve êle para a interpretação dos contratos e convenções mercantis, como preceituam os arts. 130 e 131 do Cód. Comercial brasileiro.

2º) Costume praeterlegem. Destina-se êle à integração dos casos omissos, isto é, dos casos não previstos pelo legislador. Tal é aquêle a que se refere o artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil e o art. 8º da Consolidação das Leis do Trabalho.

Preceitua o art. 4º da Lei de Introdução:

“Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.

E o art. 8º da Consolidação é dêste teor:

“As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por eqüidade e outros princípios e normas gerais do direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acôrdo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interêsse de classe ou particular prevaleça sôbre o interêsse público”.

O juiz, antes de considerar o caso como omisso, é obrigado a lançar mão dos recursos da interpretação pròpriamente dita, a qual, na recente Lei de Introdução ao Cód. Civil, é encarada nestes têrmos:

“Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige, e às exigências do bem comum”.

Êste artigo, em nossa opinião, não permite a interpretação contralegem a qual, se realmente tivesse sido admitida, daria salvo-conduto ao discutido costume contralegem.

Vejamos outra questão. Em nossa legislação, são empregados indiferentemente os têrmos e expressões – usos, costumes, usos e costumes: Escreve a respeito o Prof. VALDEMAR FERREIRA:

“Distinguiram-se, por muito tempo, usos e costumes: eram aquêles a reiteração continuada de certos atos ou fatos, e êstes as normas jurídicas dêles oriundas e que passaram a regê-los. O direito não escrito, desde os romanos, prova-se pelos usos; porquanto os costumes diuturnos e aprovados pelo consentimento dos que os praticam equivalem às leis. Ex non scripto jus venit quod usus comprobavit. Nam diuturni mores consensu utentium comprobati, legem imitantur”.

“Assim foi em tempos antigos. Assim ainda é mesmo nos países de direito legislado ou escrito. O povo também faz leis. Não sòmente as faz, coma as executa. Como êles, os comerciantes: êstes, em todos os tempos. Os seus usos e costumes como leis sempre se observaram. “Nem há distinguir uns dos outros. Os dois vocábulos se unificam no significado.

“Topam-se, por isso, no Código juntamente, ou separadamente, bem assim nas leis e regulamentos. E também, palavras quase com o mesmo sentido, indiferentemente, sem a observância de técnica, senão rigorosa, ao menos razoável. Usos. Costumes. Prática. Estilo” (“Tratado de Direito Mercantil Brasileiro”, vol. I, 2ª ed., 1946, págs. 308-309). Acrescente-se que no Direito espanhol, essa equivalência é reconhecida pelos melhores autores (RAFAEL ALTAMIRA, “La Costumbre Jurídica en la Colonización Espanola”, na “Rev. de la Escuela Nacional de Jurisprudencia”, México, julho-setembro de 1946, nº 31, páginas 146-147).

Ainda é mister observar que, em alguns casos, a falta de precisão do legislador faz com que êle denomine costume (exemplo, o do art. 1.218 do Cód. Civil, que adiante analisaremos) um verdadeiro uso social, isto é, um simples uso social (v. a seção relativa à diferenciação entre êles).

O que não sofre dúvidas é que os artigos 4º da Lei de Introdução e o 8º da Consolidação das Leis do Trabalho, ao se referirem respectivamente a “costumes” e a “usos e costumes”, exprimem conceitos perfeitamente idênticos.

Questão de certa importância, é a seguinte: em face dos têrmos do art. 4º da Lei de Introdução, deve a ordem das fontes, tal como é enunciada pelo legislador, ser respeitada pelo juiz?

O desembargador MIGUEL MARIA DE SERPA LOPES, entre outros, parece inclinar-se pela afirmativa (“Comentários à Lei de Introdução ao Código Civil”, vol. 1º, pág. 80). A questão, pràticamente, é a seguinte: quando o juiz, ao decidir um caso concreto, tem diante de si não só uma lei aplicável por analogia, como também um costume devidamente caracterizado, a qual deve dar preferência?

Nos estritos têrmos do art. 4º, isto é, em seu sentido literal, caberia o predomínio à analogia. Mas, é o próprio legislador quem repele a interpretação literal, ao estabelecer, no art. 5º da mesma lei, que o juiz deve atender aos fins sociais da lei e às exigências do bem comum. Assim, pois, se o costume, em dado caso, se apresentar mais conforme à utilidade social e às exigências do bem comum do que a analogia; deverá êle, em nossa opinião, ser preferido.

3º) Costume contralegem. O costume contralegem permite, em casos excepcionais, resolver contra as disposições legais.

Em face do Direito Positivo dos vários países, inclusive do nosso, as opiniões estão separadas: uma corrente, na qual se encontram COLIN et CAPITANT, N. COVIELLO, DE RUGGIERO, FADDA e BENSA, EDUARDO ESPÍNOLA e outros, não admite o costume contra legem.

Outra corrente, na qual deparamos com ENNECERUS-KIPP-WOLF, WINDSCHEID, DERNBURG, G. RÉNARD, CLÓVIS BEVILÁQUA e outros, admite a eficácia do costume contralegem, desde que ocorram determinadas circunstâncias (cf. SERPA LOPES, ob. cit., I, pág, 75; EDUARDO ESPÍNOLA e FILHO, “A Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro”, vol. 1º, págs. 121-122).

Em outra seção dêste trabalho, baseando-nos em RÉNARD, DU PASQUIER é RAFAEL ALTAMIRA, mostramos alguns argumentos e particularidades da corrente favorável ao costume contra legem (v. “As formas do costume em face da lei”).

Os da corrente adversa ao costume contra legem alegam que a lei só se revoga ou derroga por outra lei (argumento do art. 2º da Lei de Introdução ao Código Civil) e que o costume só serve à integração dos casos omissos (costume supletivo, admitido pelo art. 4º da referida Lei de Introdução) e à complementação de certos artigos da lei (costume casuístico, que reponta em vários dispositivos dos Códs. Civil e Comercial).

Também a Lei da Boa Razão exigia que os costumes não fôssem contrários à lei escrita, e o regul. nº 737 também exigia que os usos e costumes comerciais não fôssem contrários à lei. A jurisprudência assim o aplicou: “O uso não pode vencer ou contrariar lei escrita” (Tribunal de São Paulo, acórdãos de 20-4-1898 e 12-11-1898, na “Gazeta Jurídica de São Paulo”, volume 18, pág. 297).

Outra posterior decisão dêste mesmo Tribunal sentenciou: “Os assentos sòmente devem ser tomados pela Junta Comercial quando os usos não sejam contrários a alguma disposição do Cód. Comercial” (acórdãos de 25-11-1909 e 5-10-1911, no “São Paulo Judiciário”, volume 24, pág. 200).

A corrente oposta, ao admitir excepcionalmente o costume contralegem, se escuda nos seguintes argumentos, expedidos por CLÓVIS BEVILÁQUA:

“É bem certo que, nas relações de direito, prevalecem a justiça, a razão e a conveniência sôbre quaisquer outras considerações. Tendo por si êstes predicamentos, o costume erigiu-se, muitas vêzes, em direito, apesar da lei escrita, que deixava, então, de ser a expressão verdadeira da harmonia entre as necessidades do indivíduo e as da sociedade, que era órgão morto, sem função na vida social”.

E, páginas adiante, acrescenta o grande civilista, em corroboração:

“Se o legislador fôr imprevidente em desenvolver a legislação nacional de harmonia com as transformações econômicas, intelectuais e morais operadas no país, casos excepcionais haverá em que, apesar da declaração peremptória da ineficácia ab-rogatória do costume, êste prevaleça contra legem, porque a desídia ou a incapacidade do Poder Legislativo determinou um regresso parcial da sociedade à época em que o costume exercia, em sua plenitude, a função de revelar o direito, e porque as fôrças vivas da nação se divorciam, nesse caso, das normas estabelecidas na lei escrita” (“Teoria Geral do Direito Civil”, 2ª ed., 1929, págs. 34 e 39).

O douto desembargador SERPA LOPES manifesta-se de inteiro acôrdo com o ponto de vista de CLÓVIS, e acrescenta:

“Uma lei pode impor tudo, menos a sua própria irrevogabilidade, e, embora ela prescreva, como medida de segurança, que a sua revogação só se, pode dar em razão de outra lei escrita, a realidade entretanto é mais forte do que os preceitos; e a realidade, através de um costume reiterado, enraizado nos dados sociológicos, em harmonia com as necessidades econômicas e morais de um determinado novo, é demasiado poderosa e capaz, portanto, de romper os diques de uma norma, justa em regra, mas que excepcionalmente pode se converter num mero artifício, respeitada à semelhança de um filho que seguisse o paganismo paterno sòmente para manter uma tradição, e não escutando um apêlo de sua própria consciência” (obra e vol. cits., pág. 80).

Recentemente, um importante acórdão do Tribunal de São Paulo, ao se haver com um costume local contrário à lei escrita, não deixou de admiti-lo, assim decidindo, nos próprios têrmos da sentença confirmada e adotada:

“Segundo os usos e costumes dominantes no mercado de Barretos, os negócios de gado, por mais avultados que sejam, celebram-se dentro da maior confiança, verbalmente, sem que entre os contratantes haja troca de qualquer documento. Exigi-lo agora seria, além de introduzir nos meios pecuaristas locais um fator de dissociação, condenar de antemão, ao malôgro, todos os processos judiciais que acaso se viessem a intentar e relativos à compra e venda de gado” (acórdão de 15 de maio de 1941, na “Revista dos Tribunais”, vol. 132, páginas 660 e 662).

Esta decisão, evidentemente, desprezou o art. 123 do Cód. Comercial e o artigo 141 do Cód., Civil, que preceitua:

“Salvo os casos expressos, a prova exclusivamente testemunhal só se admite nos contratos, cujo valor não passe de um conto de réis”.

Convém acrescentar que a lei nº 1.768, de 18 de dezembro de 1952, modificou êste dispositivo do Cód. Civil. O art. 141 passou a ter a seguinte redação:

“Salvo os casos expressos, a prova exclusivamente testemunhal só se admite nos contratos cujo valor não passe de Cr$ 10.000,00 (dez mil cruzeiros)” (“Diário Oficial” da União, de 23 de dezembro de 1952).

Tais dispositivos legais são de ordem pública no sentido de – que não é possível às partes renunciar de modo prévio e geral a essa regra; mas apenas poderão dispensá-la uma vez realizado o ato ou contrato. Se uma das partes confessa a existência de um contrato verbal de valor superior à taxa legal, a prova é perfeita.

Sòmente naqueles contratos nos quais a escritura pública é da substância, é que a simples confissão não terá valor probante.

Em relação ao art. 141 do Código (na redação original de 1916), tanto as necessidades da vida prática como a jurisprudência que procura atender a elas, têm modificado, em grau muito sensível, o rigorismo de sua aplicação.

O professor e ministro FILADELFO AZEVEDO, em acórdão vencedor, acentua:

“É que, dentro da técnica comum, êle (o art. 141) é impotente para atender aos reclamos sociais, no tocante à própria formação do vinculo, pois, além das exceções que, de início, consigna, o artigo 141 é arrombado diàriamente pelas necessidades da vida, que os tribunais não podem desconhecer”.

“Ontem PONTES DE MIRANDA (“Arquivo Judiciário”, vol. 39, pág. 194), como hoje OROZIMBO NONATO (“Diário da Justiça”, 1944, supl., págs. 1.279 e 2.580), têm sancionado vários temperamentos ao rigor do art. 141″.

“Assim, diàriamente, os tribunais, inclusive com o meu modesto voto e repetidamente (“Diário da Justiça”, supl., 1943, págs. 970, 2.721 e 4.264), o esquecem no prestigiar conseqüências de contratos verbais, especialmente nas locações de coisas e serviços; por outro lado, as compras se fazem na vida ordinária sem a menor prova escrita (“Rev. de Crítica Judiciária”, vol. 20, pág. 100); a despeito de excedida a taxa fixada nos Códs. Civil e Comercial; por isso, o artigo 11 do Anteprojeto de Obrigações não fêz mais do que recolher um precipitado da jurisprudência (“Exposição de Motivos”, pág. 10), substituída a expressão contratos por obrigações” (acórdão de 16 de maio de 1945, em “Direito”, setembro-outubro de 1945, pág. 188).

*

Admitindo, pois, que, excepcionalmente, o costume pode ir contra a lei, vejamos outro importante ponto, na vida normal do costume.

As leis podem ser de ordem pública, rigorosamente obrigatórias ou leis imperativas, de um lado, e leis dispositivas, supletivas ou permissivas, do outro. Há quem, como GÉNY, faça distinção entre, leis supletivas e dispositivas, de sorte que, para êle, existem três categorias de leis: imperativas, dispositivas e supletivas (“Méthode”, II, pág. 151).

Evidentemente, o costume jurídico só excepcionalmente poderá contrariar disposições imperativas de lei.

Mas poderá êle contravir, normalmente, a disposições supletivas ou permissivas? GÉNY, estudando com profundeza, a matéria, afirma sem vacilação que o uso pode contrariar as disposições supletivas ou interpretativas da vontade:

“De um lado, quando se tratar de leis simplesmente interpretativas, ou supletivas da vontade, e permitindo tôda derrogação mesmo tácita, se o uso contrário é invocado a título de presunção de uma vontade que legìtimamente contrarie a uma lei, não há dúvida que se deva admitir que prevaleça êle contra a lei supletiva”.

Da mesma forma, DANZ afirma que os usos e costumes sociais se sobrepõem às regras legais de interpretação (ou melhor, supletivas) (“A Interpretação dos Negócios Jurídicos”, pág. 147; id., páginas 173 e segs.). A equivalência prática entre normas interpretativas e supletivas é por êle alhures estabelecida (ob. cit., página 168, nota).

V. PROVA DO COSTUME

O costume jurídico ou direito consuetudinário, embora seja direito positivo, não obedece aos mesmos princípios que a lei escrita no que tange ao seu conhecimento pelo magistrado. Com efeito, o princípio geral de que o juiz conhece de ofício o direito, sofre, no que toca ao costume (assim como a certos outros ramos jurídicos), modificação sensível, ditada pelas necessidades práticas.

O costume prova-se como se fôra matéria de fato. O art. 212 do Cód. de Processo Civil estabelece:

“Aquêle que alegar direito estadual, municipal, costumeiro, singular ou estrangeiro deverá provar-lhe o teor e a vigência, salvo se o juiz dispensar a prova”.

O próprio Cód. de processo consagra, mais adiante, um capítulo à prova dos usos e costumes (arts. 259-262).

O art. 259 estabelece que os usos e costumes, em geral, provar-se-ão pelos meios admissíveis em juízo.

O art. 260 firma que a prova dos usos e costumes comerciais de praça nacional far-se-á por certidão das repartições Incumbidas do respectivo registro.

O art. 261 dispõe que os usos e costumes comerciais estrangeiros provar-se-ão por ato autêntico, devidamente legalizado, do país em que se tenham originado.

E o art. 282 ordena que o juiz ou tribunal, que julgar provado uso ou costume comercial, remeterá cópia dá decisão à repartição competente para ser registrada e arquivada.

Uma observação ao art. 260: êste dispositivo não nos parece firmar uma prova absolutamente indispensável, mas, apenas, uma prova preferencial.

Ao mesmo tempo, quer os assentos feitos pelas Juntas Comerciais, quer os atestados por elas fornecidos, não nos parecem constituir presunção absoluta dá existência do costume. Se o art. 219 do regul. nº 737 estabelecia que era inadmissível qualquer contestação sôbre o assento do Tribunal do Comércio, o art. 1260 do Cód. de Processo já não usa de linguagem da categórica. E o art. 262 parece confirmar êsse poder de contrôle dos tribunais sôbre atos emanados de órgãos administrativos.

No que se refere à prova testemunhal dos costumes, as testemunhas servirão para provar o fato material da repetição. Mas a apreciação dia racionalidade do costume, e a pesquisa da opinionecessitatis; assim como a verificação do elemento ideológico do costume (idéias de segurança e justiça), caberão, não só aos juízes encarregados da aplicação, como também às Juntas Comerciais encarregadas dos assentos dos usos e costumes (cf. FRANÇOIS GÉNY, “Méthode d’Interprétation et Sources”, I, págs. 51-355; MOACIR AMARAL SANTOS, “Prova Judiciária no Cível e Comercial”, vol. I, págs. 193-196 e 202-220).

Todavia, a Justiça tem um poder de contrôle sôbre as determinações das Juntas Comerciais, simples órgãos administrativos; que podem errar e admitir, quer costumes não-razoáveis, quer costume contra a lei.

VI. O COSTUME NO DIREITO COMERCIAL BRASILEIRO

O direito comercial é matéria em que os usos e costumes conservam singular importância.

Em nossa lei comercial, segundo o artigos 2º do regul. nº 737, constituem legislação comercial o Cód. do Comércio e, subsidiàriamente, os usos comerciais, (artigo 291, Código) e as leis civis (arts. 121, 291 e 428, Código).

O art. 2º do regul. nº 737 determina que o costume comercial prefere às leis civis em dois casos: quando se trata de sociedades comerciais, e quando o legislador estabelece nos casos concretos essa preferência.

Surge, então, a indagação: o costume comercial prefere à lei civil de ordem pública?

É sabido (como vimos atrás) que as leis podem ser: de ordem pública, imperativas ou proibitivas, rigorosamente obrigatórias, de um lado, e supletivas ou permissivas, do outro.

Ora, uma vez que o sistema legislativo moderno confere o predomínio da lei escrita sôbre o costume e a eqüidade, e dado que os princípios fundamentais do direito, isto é, aqueles de ordem pública, devem s fixados por escrito, segue-se que o costume comercial não pode ir contra as leis civis que encerram preceitos de ordem público.

No mesmo sentido, ALFREDO ROCCO escreve: para que um uso possa ditar-se legítimo, é preciso que não seja contrário às normas imperativas ou coativas do direito privado, civil ou comercial (ob. cit., pág. 141). Do mesmo modo se manifesta GÉNY (ob. cit., vol. I, págs. 401, 411, 415 e 417).

Acrescente-se que o costume é supletivo da vontade das partes, hoje em dia.

Se, antigamente, o costume (especialmente aquêle confirmado pelos tribunais) podia apresentar-se às vezes com caráter imperativo, hoje, com o desenvolvimento da lei escrita, tornou-se êle supletivo. A vontade concorde das partes pode opor-se-lhe. Escreve CARVALHO DE MENDONÇA que os usos comerciais têm caráter declaratório, e não imperativo: sendo permitido aos contratantes derrogá-los, exprimindo inequìvocameute a sua vontade (“Tratado”, vol. I, nº 126).

A Junta Comercial do Estado de São Paulo publicou, em 1940, em dois pequenos volumes, um assentamento dos Usos Mercantis das praças de São Paulo e Santos

Os usos comerciais, como vimos acima, preferem às leis civis sòmente nas questões sociais (art: 291) e casos expressos no Código.

Tal é a lei que ainda hoje vigora em nosso país. Isto significa que os usos gozam em matéria comercial, nas questões sociais e casos expressos no Cód. Comercial, de uma verdadeira supremacia sôbre a lei civil.

No direito italiano, todavia, ainda mais acentuada é a preponderância dos usos, pois nêle os usos comerciais sempre preferem às leis civis (A. ROCCO, ob. cit., pág. 153).

Ainda os arts. 130 e 131, nº 4, do nosso Cód. Comercial estabelecem que os contratos e convenções mercantis devem entender-se segundo o costume e o uso recebido no comércio e o costume do lugar onde o contrato deverá ter execução, prevalecerá a qualquer inteligência em contrário que se pretenda dar às palavras.

Vejamos mais detidamente a questão do costume comercial em sua aplicação.

“São as leis civis” – escreve o professor VALDEMAR FERREIRA – “as primeiras fontes subsidiárias do direito comercial. Não existindo disposição expressa, nem no Código, nem nas demais leis comerciais, ao caso ocorrente se aplicarão as leis civis”.

“Deixa a lei civil, entretanto, de ser uma fonte subsidiária, para ser fonte primária, quando o Código ou as leis comerciais mandam, expressamente, aplicá-la à matéria comercial, ao ato de comércio, ou às relações dêle oriundas”.

Vimos acima que o regul. nº 737 estabeleceu a predominância das leis civis sôbre os usos e costumes comerciais, deixando, porém, expresso que os usos comerciais preferem às leis civis em duas categorias de hipóteses: nas questões sociais e nos casos expressos no Código. Assim, as dúvidas que surgirem a respeito das sociedades comerciais serão resolvidas, subsidiàriamente, pelos usos comerciais, só se recorrendo ao direito civil na falta daqueles.

Surge, agora, a seguinte questão: caso determinado ponto se apresentar omisso, quer no Cód. Comercial, quer nas leis comerciais posteriores, deverá o aplicador recorrer primeiramente à analogia, ou, ao contrário, deverá aplicar imediatamente a lei civil subsidiária?

VALDEMAR FERREIRA parece inclinar-se pela aplicação imediata da lei civil subsidiária, já que êle enumera a analogia como fonte de categoria inferior às fontes subsidiárias, isto é, a conceitua como fonte complementar (“Curso de Direito Comercial”, I, pág. 74).

Situado em posição oposta, A. ROCCO sustenta que a analogia deve empregar-se de preferência, seja aos usos comerciais, seja ao direito civil, conforme o caso (ob. cit., pág. 155, nº 40).

Vejamos como opinar a respeito: O direito comercial é direito especial e não excepcional, e o uso do processo analógico tem pleno cabimento, segundo a communisopinio dos comercialistas (v. nosso livro “O Fator Político-Social na Interpretação das Leis”, pág. 771). A analogia, preconizada ao aplicador pelo art. 4º da Lei de Introdução ao Cód. Civil, aplica-se às várias disciplinas jurídicas, com raras exceções: em matéria de incriminações e imposições discais, e de leis excepcionais, e restritivas de direitos.

A analogia é a operação em virtude da qual o intérprete aplica, a um caso não previsto, o princípio que inspira determinado dispositivo, quando êle encontrar identidade de razão jurídica entre o caso previsto e o caso omisso.

Em matéria comercial, na qual a adaptação do direito à vida assume particular relêvo, poderá, em muitos casos, ser preferível aplicar uma norma extraída por analogia de uma lei comercial, a aplicar uma lei civil. O direito civil, com efeito, é mais formalista e mais rígido do que o direito comercial. Nada obstante, devido à antiguidade de nosso Cód. Comercial e conseqüente obsoletismo de várias de suas disposições, casos haverá em que seja preferível recorrer subsidiàriamente ao próprio direito civil moderno, do que àquela norma extraída por analogia de um dispositivo obsoleto do Código Comercial.

Porém, êsse recurso ao direito civil moderno, mais ou menos intensamente socializado, pode muitas vêzes resultar antagônico aos interêsses comerciais. Com efeito, o ramo do direito positivo que mais conserva até hoje, e sem dúvida continuará a conservá-lo, o caráter individualista, é o direito comercial. Representa êle a cidadela do individualismo jurídico, do espírito de livre iniciativa individual, do espírito de emprêsa. E êste espírito de emprêsa é tão útil e necessário, que os próprios governos preferem confiar muitos serviços públicos, mediante concessão, a emprêsas particulares. O acicate do lucro, do interêsse individual, produz resultados mais satisfatórios do que o apêlo ao interêsse coletivo. Se hoje em dia se opera a concentração de muitos tipos de emprêsas comerciais, isto vem significar, não a supressão, mas uma melhor organização do espírito de emprêsa.

Em conclusão: não nos parece acertado estabelecer preferência apriorística da extensão analógica da lei comercial sôbre a lei civil, ou vice versa. O juiz deverá decidir, caso por caso, se melhor cabe a analogia de lei comercial, ou um dispositivo de lei civil, para resolver a questão que lhe é submetida.

Outra questão semelhante se levanta: nos casos especiais em que os usos comerciais preferem às leis civis (nas sociedades comerciais e outros casos expressos no Código), deverá o aplicador recorrer em primeira lisa à analogia de lei comercial, ou, ao contrário, deverá aplicar de preferência o uso comercial?

Pensamos que o intérprete deve comparar a norma obtida por analogia da lei comercial com aquela contida no uso comercial, e aplicar a que lhe parecer mais conforme à singularidade da relação sub judice.

VII. O COSTUME NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO

Além de ter função supletiva dos casos omissos (art. 4º da Lei de Introdução ao Cód. Civil), apresenta-se no direito civil a forma casuística do costume, previsto em vários artigos do Código Civil brasileiro: arts. 588, § 2º, 1.192, nº II, 1.210, 1.215, 1.218, 1.219, 1.221 e 1.242.

Êstes artigos se referem todos, menos um, ao costume do lugar, e aquêle discrepante fala em usos do lugar.

Entre êles o art. 1.192, nº II, que determina ser o locatário obrigado a pagar pontualmente o aluguel nos prazos ajustados e, em falta de ajuste, segundo o costume do lugar. Trata-se de costume secundumlegem, de acôrdo com as noções anteriormente expendidas. O professor AGOSTINHO ALVIM acentua que, “entre nós, de acôrdo com o Cód. Civil anterior, o pagamento até os primeiros dias do mês seguinte ao vencido era um costume. Caso típico de costume. Consistia o elemento interno na convicção dos locatários de que havia obrigação (quando não havia), e o elemento externo, na prática de longos anos” (“Notas à Lei do Inquilinato”, pág. 56).

E, em outro trabalho, acentua que se trata de um costume secundumlegem (“Aspectos da Locação Predial”, 1940, página 92).

Quanto ao conjunto dos artigos acima enumerados, nossos civilistas afirmam que todos êstes artigos fazem remissão a um verdadeiro costume jurídico. Tais são: PAULO DE LACERDA (“Manual do Código Civil”, vol. I, pág. 303), CLÓVIS BEVILÁQUA (“Teoria Geral do Direito Civil”, 2ª ed., pág. 38, nota 51, in fine), CARLOS MAXIMILIANO (“Hermenêutica e Aplicação do Direito”, 2ª ed., pág. 206), TITO PRATES DA FONSECA (“Direito Administrativo”; 1939, pág. 118), FERREIRA COELHO (“Código Civil Comentado”, vol. II, pág. 102), ABELARDO LÔBO (“Direito Romano”, vol. III, pág. 255) e A. B. ALVES DA SILVA (“Introdução à Ciência do Direito”, pág. 186, nota 600).

Quanto a EDUARDO ESPÍNOLA e FILHO, êles fazem uma distinção muito acertada, pois afirmam que não constituem direito consuetudinário certos usos locais, ou usos de negócios, a que a lei civil se refere (“Tratado de Direito Civil Brasileiro”, vol. I, pág. 455, e “Comentário à Lei de Introdução ao Código Civil”, volume 1, pág. 113, nota 50, b). No mesmo sentido se manifesta o desembargador MIGUEL MARIA DE SERPA LOPES (“Comentários à Lei de Introdução ao Código Civil”, vol. I, pág. 80).

Na verdade, o exame de cada um dos referidos artigos, nos mostra que a maioria dêles se refere realmente a costumes jurídicos. Nos arts. 1.210, 1.215, 1.218, 1.219, 1.221 e 1.242, o legislador manda recorrer ao costume do lugar, não havendo convenção.

Como argumenta CLEMENTE DE DIEGO para o direito espanhol, análogo ao nosso, pela remissão especial de que são objeto aquêles costumes, ocupam êles o lugar que deixaram vazio a lei e a vontade dos contratantes, tornando-se de certo modo normas dispositivas que se impõem a todos na falta de vontade contrária dos interessados, ainda quando êstes as desconhecessem ou ignorassem (obra cit., pág. 338).

Quanto ao art. 588, § 2º, o costume do lugar contrapõe-se, não às convenções das partes, mas às posturas municipais. Ora, um dos critérios mais seguros para determinar se tal costume do lugar é realmente costume jurídico é fornecido por LABAND, quando sustenta tratar-se de costume jurídico quando junto ao uso invoque a lei as ordenanças locais ou leis territoriais (apud DE DIEGO, ob. citada, pág. 288). E, no caso, as ordenanças locais são representadas pelas posturas municipais.

Há um caso, porém, o do art. 1.218, em que não se trata de costume, isto é, de costumejurídico, mas de simples usosocial, uma vez que a lei remete ao costume juntamente com outros elementos de fato – tempo do serviço e sua qualidade. Na sua argumentação para um artigo análogo do Cód. Civil espanhol, CLEMENTE DE DIEGO (ob. cit., pág. 293) assim se manifesta: Neste caso, e dada esta redação, não pode o costume do lugar ser considerado como regra de Direito, porque a lei não remete o juiz a êsse uso para que supra com êle a prescrição que falta; a decisão fica confiada antes ao prudente arbítrio do juiz. E como o legislador não se apropria da regra do uso local, êste não chega a ser uma norma de Direito; a menção a êle feita é simples menção de um uso social, não uma invocação ou referência a costume pròpriamente dito ou costume jurídico. Trata-se, ali, de uma pura recomendação ao juiz, para que forme sua opinião, entre outros fatôres de fato, com o uso local, uma circunstância a mais a ter em conta. Ao invés, nos outros casos do Cód. Civil, o legislador se apropria do uso social e o erige em regra de Direito objetivo.

Esta argumentação do catedrático da Universidade de Madri tem plena aplicação nosso art. 1.218, tanto mais que, na estimação da retribuição devida aos serviços prestados, o juiz não fica adstrito ao arbitramento feito pelos peritos; não se lhe podendo negar o direito de alterar o arbitramento, se julga-lo sem bases seguras, e fixar a condenação, mediante uma combinação entre a quantidade e qualidade do serviço prestado, e a remuneração normal dêstes elementos segundo o costume do lugar (arg. do acórdão da Côrte de Apelação do Distrito Federal, de 13 de agôsto de 1928, no “Arq. Judiciário”, t. XI, pág. 58).

Outro acórdão desta mesma alta Corte é igualmente elucidativo: Na falta de ajuste prévio, a remuneração dos serviços médicos deve ser arbitrada, não só de acôrdo com as praxes do lugar, mas ainda tomando-se em consideração a hora em que foi prestado o serviço e ainda a distância que foi necessária ao médico percorrer, para prestá-lo; sendo também atendível a natureza do serviço prestado, tomando-se em conta as dificuldades técnicas que teve o médico de resolver (ac. da Côrte de Apelação do Distrito Federal, de 10 de setembro de 1917, na “Rev. de Direito”, t. 48, pág. 403).

VIII. O COSTUME NO DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO

O costume, sob o nome de “prática”, é considerado coma a principal fonte do Direito Internacional Público. Se hoje em dia, com a organização das Nações Unidas, o estatuto, ao menos teòricamente, cresceu de importância, a fôrça do costume permanece.

Basta observar-se que a própria regra pacta sunt servanda é considerada como costumeira pelo internacionalista austro-americano JOSEPH KÜHNZ (v. “The Meaning and the Range of the Norm Pacta Sunt Servanda“, no “American Journal of International Law”, vol. 39, nº 2, abril de 1945, pág. 181).

O art. 38 do Estatuto da Côrte Permanente de Justiça Internacional menciona, logo depois das convenções internacionais, o costume internacional, concebido como “uma prática geral aceita como lei” (v. EDWIN BORCHARD, “La théorie et les sources du Droit International”, no “Recueil d’Etudes en l’Honneur de GÉNY”, vol. III, págs. 328 e segs.; LE FUR, “La Coutume et les príncipes généraux du droit comme sources du droit international public”, no “Recueil”, cit., págs. 362 e segs.; CHARLES DE VISSCHER, “Contribution à l’étude des sources du droit international”, no “Recueil”, cit., págs. 389 e segs.; G. SCELLE, “Essai sur les sources formelles du droit International”, no Recueil”, cit., págs. 400 e segs.).

O art. 38 do Estatuto, escreve EDWIN BORCHARD, esforçou-se por simplificar a tarefa dos juízes, indicando uma série de fontes que pode a Côrte utilizar, sob reserva das limitações trazidas pelo compromisso, ou pela submissão à arbitragem.

Em seguida interroga: mas como é determinado o costume internacional? E explica: “Nós falamos dum uso que dá origem ao costume. Mas como provar o costume, e em que momento pode-se considerar que êle se tornou obrigatório? Isto repousa, em grande parte sôbre a opinião dos juízes, e como as partes em conflito possuem verossìmilmente idéias diferentes quanto à existência do costume litigioso, as decisões são geralmente feitas pela maioria do tribunal, que “declara” assim qual é o direito para o momento dado” (ob. cit., página 348).

O grande internacionalista LOUIS LE FUR trata com notável, clareza a questão do costume em direito internacional.

“Duas grandes doutrinas se contrapõem, no que toca à natureza do costume jurídico. Segundo a primeira, aquela dos positivistas, o costume repousa sôbre o consentimento tácito dos Estados. Esta idéia já se encontra em GROTIUS e VATTEL, e é hoje defendido por vários juristas: na Itália, por ANZILOTTI (“Cours de droit international”, Introduction G. GIDEL, págs. 73 e segs.) e CAVALIERI (“Curso di diritto internazionale” págs. 56 e segs.); na Alemanha, por TRÌEPEL (“Les rapports entre le droit interne et le droit international”, “Recueil de La Haye”, 1923, t. I, pág. 83) e STRUPP (“Eléments de droit internacional public universel”, 2ª ed. francesa, t. I, pág. 13). Nesta teoria, para que nos encontremos em presença de uma regra costumeira jurídica, não basta que haja repetição de um mesmo ato por parte de um só Estado; é preciso que haja realização dêste mesmo ato pelos outros Estados, o que implica de sua parte aceitação da regra em questão. Resulta lògicamente dêste modo de ver que a regra, costumeira jurídica não é oponível senão aos Estados que a adotaram, e nunca àqueles que pretendem jamais tê-la reconhecido. Não há então direito costumeiro universal; o costume internacional repousa exatamente, como os tratados, sôbre a vontade dos Estados; sòmente, no que a concerne, esta vontade é tácita; ela não se exterioriza em fórmulas escritas. Também há esta diferença que, nos tratados, o acôrdo das vontades precede a observância da regra estabelecida; no costume, pelo contrário, o acôrdo das vontades resulta do próprio fato desta observância.

“Outra explicação do costume é dada pela teoria que VERDROSS denomina teoria da subordinação. Segundo ela, o direito costumeiro não é criado pelo uso constante e geral, pois o uso pressupõe a existência de uma regra jurídica obrigatória; o uso a verifica simplesmente, submetendo-se a ela.

“Que pensar desta divergência sôbre um ponto tão importante?”

“Parece que a verdade se encontra, como tantas vêzes acontece, entre as duas teorias opostas e que cada uma delas contém uma parte de verdade”.

“Não se poderia negar, com efeito, a necessidade do consentimento dos Estados na criação de uma regra costumeira. Esta repousa, em princípio (mas não exclusivamente), sôbre o consentimento dos interessados, que são, em direito internacional, os Estados. Deve o consentimento ser unânime? Evidentemente não, pois então o costume transformar-se-ia quase em um tratado. É o êrro dos positivistas, ao pretenderem que uma regra costumeira não é oponível senão aos Estados que a reconheceram. O costume não repousa exclusivamente sôbre o consentimento presumido dos Estados; êle se assenta também sôbre a existência da idéias de justiça e sôbre a necessidade de uma regra social. Os Estados se sentem obrigados a respeitar a regra costumeira, e é esta idéia de obrigação (juris seu necessitatis opinio) que distingue o costume jurídico de um simples uso. Uma regra costumeira geralmente aplicada pode então ser oposta a um Estado que negasse a sua validade em um caso concreto, sob o pretexto de que nunca a reconheceu. Isto é conforme, aliás, à prática internacional: em caso de contestação entre dois Estados sôbre a validade de um costume internacional, os tribunais mistos nunca procuraram se êle fôra aceito pelos dois Estados em litígio, mas exclusiva e ùnicamente se êle tem sido reconhecido em geral pela prática internacional. É preciso então distinguir dois elementos no costume internacional: um elemento material e um elemento psicológico. O elemento material é o uso constante e geral; faz êle presumir o consentimento tácito dos Estados. O elemento psicológico é a convicção dos Estados da necessidade de observar a regra em questão como se fundando sôbre a idéia de justiça. Os dois elementos são inseparáveis: tomados separadamente, são incapazes de fundamentar a validade objetiva de uma regra costumeira em face dum Estado que pretendesse jamais havê-la reconhecido” (LE FUR, “Recueil”, cit., volume III, págs. 362-383).

Observemos que LE FUR dá especial relêvo à idéia de justiça como fundamento da opinionecessitatis. Quanto à idéia de segurança, que na parte geral de nosso estudo demonstramos ser igualmente fundamento da opinionecessitatis, LE FUR silencia. A explicação disso não é difícil de encontrar. Em outro trabalho (contido na publicação de conjunto, “Le but du droit: bien commun, justice, sécurité juridique”, no anuário do Institut International de Philosophie du Droit et de Sociologie Juridique, 1937), ao tratar de saber se o fim do direito era ùnicamente a justiça ou se esta entrava em concorrência com o bem comum e a segurança jurídica, LE FUR integra o bem comum e a segurança jurídica na justiça, realizando assim uma harmonia doutrinal.

Voltemos ao § 2º do art. 38 do Estatuto da Côrte, relativo ao costume internacional “como prova de uma prática geral aceita como sendo o direito”.

O professor GEORGES SCELLE (“Recueil”, cit., pág. 421) traça a respeito êste elucidativo comentário: “Êste texto refere-se implìcitamente aos elementos essenciais da formação costumeira do direito, repetição concordante de atos jurídicos autônomos realizados pelo sujeito de direito; elementos psicológicos de aceitação da regra, assim destacada, como sendo o direito, sem que o texto, todavia, indique com suficiente clareza, em nossa opinião, que esta aceitação é um ato do próprio agente, antes de ser aquêle da opinião comum; enfim, o elemento de prova, que é o mais delicado, e que estabelece a ligação entre a fonte consuetudinária e a fonte jurisprudencial”.

“Mas há reservas a fazer sôbre a expressão “prática geral”. Pareceria ela indicar que, no espírito dos redatores, não haveria, no direito internacional, costumes particulares. Tal êrro implicaria, na negação da própria existência das ordens jurídicas interestatais regionais ou locais, no seio da sociedade ecumênica do direito internacional. Ora, existem tantos corpos de costumes particulares quantas ordens jurídicas internacionais particulares, isto é, infinidade, que se cruzam e se superpõem umas às outras, obedecendo automàticamente à regra geral de hierarquia das normas. Daí resulta que um costume particular será ipsofacto ab-rogado por um costume geral, assim como, aliás, por uma norma convencional de uma ordem jurídica mais ampla”.

____________

Notas:

N. da R.: A primeira parte dêste trabalho foi publicada no vol. nº 163, págs. 74 a 88.

LEIA TAMBÉM O PRIMEIRO VOLUME DA REVISTA FORENSE

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