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CLÁSSICOS FORENSE
REVISTA FORENSE
Município – Criação – Natureza Jurídica – Limites Do Poder Do Estado Federado – Direito Ao Território, de Miguel Reale
Revista Forense
26/02/2024
– A realização das condições de fato previstas na lei não confere à povoação de um território o direito de ser Município, não dá nascimento a um direito subjetivo público, correlato à obrigação do Estado de proferir o ato solene da declaração da autonomia municipal.
– Embora a criação de um Município tenha caráter constitutivo, pressupondo a realização de determinadas condições sócio-econômicas, nem por isso, ou por isso mesmo, deixa de estar subordinada a certos limites.
CONSULTA
1. Segundo me é relatado pelos dignos representantes do Município de Glicério, um de seus antigos distritos, o de Braúna, pleiteou a sua elevação à categoria de Município, de modo a abranger, em seu território, também o de Luisiânia.
Em virtude dos resultados dos plebiscitos realizados nos limites da circunscrição do distrito de Braúna, foi a pretensão desta comunidade acolhida pela lei n.º 2.456, de 30 de dezembro de 1955, a qual, nas “notas” do anexo n.º 1, item 100, assim, dispõe:
“O Município de Braúna é criado com sede na vila do mesmo nome e com o território do respectivo distrito“.
Isto não obstante, o anexo n.º 2 da mesma lei veio surpreender a população de Glicério para fixação de novas divisas entre êste Município e o de Braúna, de maneira a transferir a êste uma imensa e rica região, de vital interêsse para a municipalidade matriz.
O motivo dessa mutilação indevida do território de Glicério prende-se, segundo se alega, a exigências de ordem geográfica, mas, na realidade, nenhum acidente geográfico permanente e fàcilmente identificável autorizou tão profunda ofensa aos direitos de um Município à integridade de seu território.
O que é mais grave, consoante a exposição oral que me foi feita e resulta do memorial já oferecido ao exame do govêrno do Estado, a transferência para Braúna de uma parte imensa de Glicério importou o deslocamento da linha divisória, fixada em 1948, para muito mais de 200 metros, contrariando, assim, o disposto no art. 2.º, parág. único, da lei estadual n.º 1, de 18 de setembro de 1947, com a redação da lei n.° 2.081, de 27 de dezembro de 1952.
Isto exposto, perguntam-me:
a) Se a alteração das divisas, processada ilegalmente, atentou contra um direito fundamental do Município, com desrespeito de sua autonomia.
b) Quais os remédios legais de que pode lançar mão a Municipalidade de Glicério na defesa de seus direitos.
PARECER
2. A resposta à consulta, supra implica a necessidade de determinar-se, com o possível rigor, a natureza jurídica do ato pelo qual o Estado dá nascimento a uma nova entidade municipal.
Criação de um Município
3. A criação de um Município, ou seja, o aparecimento de uma nova pessoa jurídica de direito público de base territorial na ordenação de um Estado, não constitui problema puramente jurídico. Trata-se de questão eminentemente “política”, tomado êste têrmo na sua acepção genérica, pois se a Política ou Ciência do Estado não abrange e integra em síntese todos os elementos sociais e econômicos, históricos e éticos jurídicos, geográficos, demográficos ou étnicos de qualquer esfera de realidade humana, não pode deixar de levá-los em conta, como dados essenciais ao alcance de seu objetivo precípuo, que é o bem comum da sociedade.
Quer isto dizer que, no ato do reconhecimento das condições de fato indispensáveis para se conferir a uma comunhão de homens a dignidade de Município, a decisão do estadista depende de um sistema de múltiplos elementos que se conjugam e se completam, sendo impossível fixar, em normas genéricas de caráter absoluto, o seu número, influência e natureza. Em última análise, o que prevalece é sempre o critério de oportunidade ou conveniência político-social, que se afirma perante cada hipótese em exame, em função das circunstâncias peculiares aos diferentes casos concretos.
A formação de um novo Município pressupõe uma realidade complexa e multiforme, insuscetível de enquadramento nas estruturas genéricas das normas de Direito. A experiência social, com o seu ineditismo permanente, jamais poderia ajustar-se a moldes gerais necessàriamente abstratos e uniformes, máxime no Brasil, onde as cidades, se multiplicam dia a dia, estacionando-se umas, em progresso vertiginoso ou em impressionante regresso outras, por fôrça das mais imprevistas e desconcertantes conjunturas.
Daí a especial natureza dos preceitos legais concernentes à matéria da “criação dos municípios”, estabelecendo apenas condições mínimas, sem as quais a personalidade jurídica municipal não pode surgir; mas condições que por si sós, pelo simples fato de sua verificação, não determinam imperativamente o ato solene do reconhecimento do Estado, com o qual se completa e se configura a entidade autônoma.
A “pessoa jurídica” é uma criação do Direito e não uma situação de fato. A nota de “juricidade” é algo que se acrescenta à realidade social, dando-lhe uma dimensão especifica. Vêzes há em que ao poder público não é lícito contestar ou cegar a qualidade de pessoa a certos entes ou entidades (todo homem, por exemplo, é, hoje em dia, sujeito de direitos e obrigações pelo simples fato do nascimento com vida) mas, outras vêzes, os órgãos estatais exigem a satisfação de determinados requisitos, e, outras ainda, reservam-se prudentemente a faculdade de conferir, ou recusar personalidade, não obstante situações de fato plenamente configuradas.
Dentre êsses atos de discricionariedade destaca-se, pela sua importância e conseqüência, o que os Estados da Federação Brasileira exercem, recusando ou outorgando, discricionàriamente, a dignidade da autonomia municipal às comunidades que nêles se formam.
4. A realização das condições de fato, previstas na lei, não confere à povoação de um território o direito de ser Município, ou seja, não dá nascimento a um direito subjetivo público, correlato à obrigação do Estado de proferir o ato solene de declaração da almejada autonomia municipal. Daí a afirmação categórica de PONTES DE MIRANDA que, sob êste prisma, se nos afigura procedente: “O Município de hoje existe porque a lei quer” (“Comentários à Constituição de 1946”, vol. I, pág. 478).
No Direito brasileiro, o poder de criar “Municípios”, como entidades jurídicas, antes cabia às Províncias e passou, com a República, para os Estados federados. E uma faculdade discricionária de agir que não pode ser exercida desprezando condições legalmente estabelecidas. Não lhe corresponde, pois, um ato exigível por qualquer porção do território estadual, a não ser que a Constituição mesma do Estado o estabeleça expressamente, o que seria êrro imperdoável.
Tratando desta matéria, o ilustre LENTINI observa:
“Le modificazioni delle circoscrizioni territoriali di cui ci siamo occupati, anche quando eventualmente vi concorrano manifestazioni di volontà deqli enti interessati, non si verificano se non inforza di manifestazione di volontà dello Stato che ha carattere discrezionalle e costitutivo” (“Istituzione di Diritto Amministrativo”, 1939, vol. I, pág. 378).
Como observa ainda o mesmo autor, as condições ou limites mínimos vinculam a ação do Estado no sentido de que o poder público não pode prescindir dêles (requisita essenziali vincolativi), ao passo que a atividade estatal é discricionária em se tratando de “requisiti essenziali di opportunità“. Mesmo aquêles vínculos, porém, são meramente negativos, porque não asseguram ao território a faculdade de exigir que a criação do Município se positive.
No mesmo sentido é a lição de ZANOBINI, o mestre de Direito Administrativo da Universidade de Roma:
“Mentre le cause (de formação de Municípios) sono puramente di fatto, le trasformazioni non possono verificarsi se non in forza di atti di volontà dello Stato, i quali hanno sempre carattere discrezionale e costitutivo” (v. “Corso di Diritto Amministrativo”, 1946, vol. III pág. 215; cf. também FRANCISCO D’ALESSIO, “Diritto Amministrativo”, vol. I, páginas 404 e segs.).
Quem, porém, a nosso ver, com grande penetração cuidou dos aspectos legais da formação dos Municípios, e, especialmente, da natureza jurídica do ato estatal de reconhecimento da autonomia municipal, foi o professor LUIGI RAGGI, que dedica o 2.º volume de seu “Diritto Amministrativo” às autarquias territoriais, que tais se considerem os Municípios no direito italiano.
Aponta o ilustre mestre da Universidade de Gênova o equívoco daqueles que sustentam que o Município representa uma “formação natural”, de sorte que o ato do Estado, atribuindo foros de autonomia a um território, seria meramente declarativo, ou de pura verificação de condições objetivas correspondentes às hipóteses legais.
Sustenta êle o ponto de vista por nós adotado e que concorda com a praxe administrativa brasileira, de que, quando o Estado estabelece limites ou condições para a criação de Municípios, não faz senão fixar a “latitude de sua discricionariedade”. O Estado, em suma, não se restringe a certificar simplesmente a existência das condições previstas, porque lhe cabe apreciar e avaliar tais condições, reconhecendo-as ou não segundo um critério superior de oportunidade política: o ato de reconhecimento da personalidade das entidades autárquicas territoriais é, pois, discricionário e constitutivo (v. RAGGI, ob. cit., vol. II, parte II, págs. 105 e segs.).
Dentro de tais pressupostos, o Estado poderá até mesmo considerar inoportuna a revisão do quadro territorial e administrativo em uma dada época, ainda que prefixada em lei.
Êsse poder discricionário não exclui, entretanto, a existência de condições objetivas. Quando, em verdade, dizemos que o Estado “cria” o Município, referimo-nos à “entidade jurídica”, ou seja, fazemos uma afirmação do ponto de vista jurídico-formal. Entre a velha concepção de um “direito natural” das comunas, anterior ao Direito do Estado, e a teoria oposta que considera o Município uma simples entidade política, “criada” pelo Estado, podemos colocar uma corrente intermediária, segundo a qual a comuna é uma criação do Direito que pressupõe uma formação natural, sendo derivado o poder político por ela exercido.
Alguns preferem dizer que o Estado “reconhece”, mas não “cria” o Município.
“Não é criado pela lei”, diz MÁRIO MASAGÃO, “muito embora as leis de vários Estados pretendam criar Municípios e usem da palavra criação a propósito do reconhecimento da existência dessas entidades. O Município nasce e surge em conseqüência de elementos puramente objetivos, a saber, de circunstâncias de população, de desenvolvimento econômico, de situação topográfica, sob a influência do clima e de outros fatôres naturais resultantes da fixação de um núcleo de população sôbre um determinado ponto do território. Sòmente depois que essas condições naturais, êsses elementos objetivos da existência do Município se manifestam, depois que êsses elementos estão perfeitamente caracterizados, a lei do Estado o que faz é reconhecer a existência do Município” (“Preleções de Direito Administrativo”, 1937, pág. 128).
Na mesma ordem de idéias, GUSTAVO INGROSSO declara:
“Dire che gli enti autarchici territoriali sono organi costitucional significa accogliere con forte limitazione la dottrine giuridica per la quale lo Stato crea quegli organi.
Che il loro ordinamento e la loro attività siano regolati del diritto obbietivo è un presupposto che non include l’altro presupposto che essi traggano la ragion della loro esistenza dalla legge. Questa trova la istituzioni locali originarie e le riconosce, non le crea” (cf. “La posizione cistituzionale degli enti autarchici territoriali”, 1920, pág. 12).
Êste modo de ver, diga-se de passagem, sustentando a prévia existência natural de um Município, ao depois apenas reconhecida pela ordem jurídica, prende-se, de certa forma, a uma concepção de tipo jusnaturalista, na sagaz observação de HANS KELSEN. O antigo mestre da “Reinechetslehre” observa, com efeito, que, na apontada doutrina, “a ordem estatal, a ordenação do Direito Positivo é contraposta a uma ordem local dela distinta, derivada da natureza das coisas. Assim como o Direito Natural – de acôrdo com a sua orientação fundamentalmente individualista – aceita uma subjetividade jurídica fundada na existência natural do homem psico-físico, distinta, portanto, da ordem jurídica positiva, do mesmo modo afirma hoje uma administração local independente da ordem jurídica estatal fundada em um dado natural sociológico, cujo conteúdo é aceito integralmente pela legislação positiva, que se limita a reproduzi-lo” (“Teoria General del Estado”, 1934, pág. 245).
Entende KELSEN, ao contrário, que o Município não é senão uma expressão da ordem jurídica estatal, válida e autônoma como elo de um sistema unitário de normas.
A essa concepção podem aproximar-se outras, menos densas de conteúdo teórico, mas não menos radicais em subordinar a criação e alteração da entidade municipal ao poder do Estado. Nesse sentido, por exemplo, assim se expressa ZINK:
“As in the case of countries, cities are the legal creations of states. Hence their very existence in the first place as well as their governamental structureand powers depend upon the will of the state in which they are located” (“Government and Politics in the United States”, 1947, pág. 934).
A advertência talvez seja mais aparente do que real. Quando o Estado reconhece a existência de condições objetivas de ordem social, econômica, demográfica, etc. cria a personalidade jurídica municipal. Não há que confundir o aspecto social com o aspecto jurídico da questão, pois todo fenômeno jurídico é tridimensional, pressupondo uma ordem de fatos integrada normativamente segundo valores a realizar. Se à faculdade estatal de reconhecer a autonomia não corresponde, por parte da convivência humana que a pretende, uma faculdade de exigi-la, por mais que sejam perfeitas as condições objetivas, é sinal que o ato de reconhecimento implica uma criação no plano normativo: dessarte, o ato de reconhecimento não é declaratório, mas constitutivo.
5. Três são, pois, as atitudes possíveis, nesta matéria, em face da personalidade jurídica conferida às entidades autônomas. Uma primeira e velha corrente, apegada a subentendidos pressupostos jusnaturalistas, concebe tais entidades como extra-estatais ou pré-estatais, de sorte que se abre, como observa KELSEN, “um dualismo teorèticamente inadmissível de dois sistemas normativos, atrás do qual se oculta a antítese entre os princípios de organizações autocrática e democrática” (cf. KELSEN, “Teoria General del Estado”, pág. 480).
Uma segunda corrente, no extremo oposto, dando à qualidade de pessoa jurídica mero valor técnico e pragmático, a serviço de exigências da descentralização administrativa, vê os Municípios apenas como órgãos derivados do Estado, ou melhor, como graus periféricos da unidade estatal, incompatível com qualquer formação interna adotada de outra autonomia, que não seja reflexo ou outorga do poder constitutivo.
Uma terceira corrente, sem contrapor os corpos autônomos ao Estado, mas também sem os integrar na disciplina hierárquica da administração, reconhece, de outro lado, que a personalidade jurídica do Município expressa uma individuação, um conjunto coerente e unitário de normas de direito consagradoras de uma unidade històricamente constituída, e, de outro, que, apesar de competir-lhe uma esfera de ação como sua e própria, o critério mesmo da personalidade jurídica pressupõe o conceito geral de Estado: a validade da personalidade Jurídica municipal explica-se em função de sua inserção no sistema jurídico superior do Estado a que pertence, mas como ordenamentos jurídicos autônomos e coexistentes.
6. Do exposto resulta que, embora a criação de um Município tenha caráter constitutivo, pressupondo a realização de determinadas condições sócio-econômicas, nem por isso, ou por isso mesmo, deixa de estar subordinada a certos limites.
Desnecessário se torna apontar a diferença essencial entre ato discricionário e ato arbitrário, caracterizado êste como sendo o ato que, no dizer preciso de RUDOLF STAMMLER, é “norma de si mesmo”, ou seja, não está sujeito senão à imprevista e imprevisível vontade de quem o pratica, sem normas delimitadoras dessa opção ou preferência (cf. “Lehrbuch der Rechtsphilosophie”, § 48).
Nos atos discricionários, o que fica à discrição da autoridade é a escolha desta ou daquela outra via, que se abram no âmbito das possibilidades legais, ficando a decisão subordinada a razões de conveniência, de necessidade ou de oportunidade, em função do bem público, sem ser dado a outros Poderes ou a particulares, em princípio, contestar o acêrto da eleição feita, salvo, é claro, o caso de abuso de poder.
Ora, no que tange à criação dos Municípios, – se é certo que a unidade federada, no exercício de suas atribuições institucionais, pode acolher ou não a pretensão dos moradores no sentido de sua emancipação político-administrativa, – não é menos certo, que tal dedo se subordina, necessàriamente, a determinadas condições, como sejam, a população mínima de 5.000 habitantes; renda não inferior a Cr$ 300.000,00 mensais; distância de mais de 12 quilômetros da cidade-sede do Município desmembrando; pronunciamento favorável da população interessada, mediante plebiscito; e, last no least, que o território em questão já tenha antes assurgido à categoria de subdistrito ou de distrito.
Esta última exigência é a que apresenta mais direto interêsse para o objeto da consulta, merecendo uma especial atenção.
Quando da promulgação da Lei Orgânica dos Municípios de São Paulo, em 18 de setembro de 1947, entendeu o legislador de possibilitar a transformação de “qualquer território” em entidade municipal. Essa faculdade esbarrou, desde logo, com óbices no plano jurídico e prático.
Em primeiro lugar, com tôda procedência se argüiu a inconstitucionalidade da Lei Orgânica, visto como, nos têrmos do art. 73 da Constituição do Estado, se impunha que, mediante plebiscito de consulta, houvesse a anuência das “populações da circunscrição cuja situação se pretenda alterar”, de modo que não podia a lei ordinária referir-se, indiscriminadamente, a “qualquer território”.
Por outro lado, se sòmente os distritos e subdistritos possuem área e divisas certas, como realizar-se um plebiscito em qualquer território, sem a prévia determinação de suas linhas divisórias?
Daí a oportuna reforma da Lei Orgânica, pela lei n.º 2.081, de 27 de dezembro de 1952, estabelecendo que apenas distritos ou subdistritos podem ser elevados à categoria de Município (art. 1.º).
Com essa providência, ficou em vigor a regra segundo a qual se processa uma ascensão gradual na escala da emancipação política e administrativa, que vai de uma região não circunscrita até ao Município, passando pelo seu prévio reconhecimento como “circunscrição” subdistrital ou distrital.
7. Por conseguinte, desde 1952 é o distrito que se converte em Município, mantidas, em princípio, as suas linhas divisórias anteriores. É o que decorre dos expressos têrmos do art. 2.º da Lei Orgânica, conforme sua nova redação, e notadamente do parágrafo único, assim redigido:
“Deslocar-se-á a linha divisória até 200 metros para mais ou para menos, entre o novo Município e aquêle de onde se desmembrou, sempre que seja possível aproveitar acidentes geográficos permanentes”.
Pela leitura; dêsse texto desde logo se verifica que a variação de 200 metros, para mais ou para menos, representa uma garantia de estabilidade de divisas entre o novo e o antigo Município, respeitados, assim, os perímetros dos distritos.
Não é possível, pois, a pretexto de conveniências técnico-geográficas, desprezar aquêle limite legal: qualquer alteração para mais ou para menos, que a lei consagre, representa ofensa Iniludível ao patrimônio geoeconômico do Município, envolvendo violação da autonomia municipal.
8. Irrecusável se nos afigura o direito do Município ao próprio território: é um direito da essência mesma de sua estrutura política, constituindo, no dizer pacífico dos autores, um de seus elementos constitutivos.
E’ com apoio no elemento territorial que se desenvolve a distinção entre as duas grandes categorias de autarquias: as territoriais e as institucionais, as primeiras abrangendo especialmente as entidades comunais ou municipais.
Apreciando a natureza dos Municípios como “entidades autárquicas territoriais”, RAFAEL BIELSA pondera, que estas não se caracterizam só por desenvolverem a sua atividade em um dado território (o que poderia ocorrer também com alguns tipos de autarquias institucionais), mas sim pelo papel que o território nelas representa: “el territorio es siempre elemento integrante y esencial de la personalidad de la entidad autárquica territorial; dentro del territorio ella tiene verdadera jurisdición administrativa general” (BIELSA, “Derecho Administrativo”, 4.ª ed., t. II, pág. 12).
Também LUIGI RABI acentua a essencialidade do território como elemento integrante da personalidade jurídica municipal:
“Ma nel Comune (come nello Stato) certamente ha anche importanza l’elemento territoriale e la caratterística persona giuridica territoriale.
Che questo elemento sia essenziale da un punto di vista oggettivo ci vien dimostrato dal fatto che una mutazione territoriale produce il cambiamento di un Comune. C’è invero una relazioae tale tra associazione comunale e territorio, che dà al Comune caratteristiche proprie come le dà allo Stato, sicchè non pare errata la opinione di coloro che affermano doversi talli enti ascrivere a una categoria a sè: quella degli enti territoriale; persone giuridiche difinibili como associazioni che perseguono pubblici scopi; ma che hanno col territorio una adereza specifica” (cf. RAGGI, “Diritto Amministrativo”, vol. II, “Il Comuna”, 3.ª ed., págs. 75 e seg.).
Igualmente, o insigne V. E. ORLANDO acentua que as autarquias territoriais, como os Municípios, exercem “un diritto sul territorio proprio, il quale serve anche a delimitara la estensione dei poteri e degli obblighi e costituisce un elemento inseparabile dalla essenza della personalità giuridica dell’ente” (“Principii di diritto amministrativo”, 5.ª ed., n.º 230, pág. 148).
Em artigo recente sôbre a estrutura política do Município brasileiro, ORLANDO M. CARVALHO considera-o expressivamente “um terceiro grau de circunscrição territorial”, pondo em realce a correlação necessária entre a sua estrutura jurídica e o território (cf. “REVISTA FORENSE”, vol. 147, pág. 20).
9. Ora, essa vinculação essencial entre o Município e o seu território, acentuada até mesmo em países onde o Município não representa senão um fenômeno de descentralização administrativa, cresce de ponto no Brasil, onde o Município desempenha também funções políticas, como entidade autônoma mais do que autárquica. Para empregarmos expressões de PONTES DE MIRANDA, diremos que, em nosso país, “o Município é entidade intra-estatal rígida como o Estado-membro” (“Comentários à Constituição de 1946”, vol. I, pág. 486).
Assim sendo, se o Município, no dizer preciso de V. E. ORLANDO, possui um direito sôbre o próprio território, da essência mesma de sua personalidade jurídica, que restaria de sua autonomia, tão solenemente proclamada na Carta Maior, se fôsse lícito considerar letra morta as leis disciplinadoras das alterações no elemento territorial?
O território de uma entidade política autônoma, com as garantias constitucionais que cercam a sua existência, só pode sofrer diminuição em virtude de lei própria, que atenda, desde a sua origem, a tôdas as exigências consagradas pela Constituição do Estado e por suas leis complementares, entre as quais sobressai a Lei Orgânica dos Municípios.
Se o poder de criar Municípios é discricionário, pois o Estado decide livremente sôbre a conveniência ou não da medida solicitada pelos habitantes de um distrito, não é menos certo que não estamos diante de um poder arbitrário que trace a si próprio as suas leis, a seu capricho e talante.
Direito comparado
10. Não é, aliás, apenas em São Paulo que se exige a anuência expressa das populações. Nos Estados Unidos da América do Norte, onde a autonomia municipal não tem as galas de princípio constitucional, mas é imperativo histórico de convivência, política, não se alteram as divisas das entidades administrativas locais, desde as counties até aos villages and borroughs sem o voto popular:
1) “New counties may not be established or the boundaries of existing counties changed without the consent of the voters concerned” (…)
2) “The usual course is for the inhabitants to present a petition to some designated officer, who submits the question of incorporation to a vote of the people, and if they decideaffirmatively, the petition is granted. The region is thereupon incorporated as village, borrough, town or city, as the case may be” (MUNRO, “The Government of the United States”, 5.ª ed., págs. 800 e 816).
11. As considerações acima desenvolvidas demonstram que houve manifesta violação da autonomia do Município de Glicério, quando, pelo anexo n.º 2 da lei estadual n.º 2.456, de 30 de dezembro de 1955, foram alteradas as linhas divisórias do distrito-sede, à inteira revelia da população local.
Assim sendo, o primeiro remédio legal que se impõe é o previsto na Constituição federal, arts. 7.°, 8.° e 13.
Desde 1946, com efeito, cabe ao procurador geral da República submeter ao exame do venerando Supremo Tribunal Federal todo e qualquer ato, legislativo ou não, praticado por qualquer dos Poderes do Estado, desde que importe a violação, dos princípios constitucionais claramente discriminados no art. 7.º da Lei Magna, impondo-se a intervenção federal, no caso de ser reconhecida a inconstitucionalidade argüida.
Conforme estatui o art. 13, o Congresso Nacional, à vista do pronunciamento do Supremo Tribunal, se limitará a suspender a execução do ato argüido de inconstitucionalidade; se essa medida bastar para o restabelecimento da normalidade no Estado.
Ora, na hipótese da consulta, a violação do princípio da autonomia municipal (art. 7.°, VII, letra e, da Constituição) operou-se tão-sòmente no anexo n.º 2, da lei n.º 2.456, acima citada, e não no anexo n.º 1, o qual se limitou a criar o Município de Braúna, “com o território do respectivo distrito”. Dêsse modo, declarado inconstitucional o disposto no anexo n.º 2, na parte em que fixou as novas divisas entre os Municípios de Glicério e Braúna, em nada ficaria afetada a legítima criação dêste último Município, com ressalva dos inegáveis direitos do primeiro.
Assim sendo, a via legal mais pronta que se oferece a Glicério para a defesa de seus interêsses consiste em uma representação ao egrégio procurador geral da República, nos têrmos e para os fins do parág. único do art. 8.° da Carta Magna.
12. Além da mencionada representação, se o Município de Braúna começar a intimar os moradores da região contestada, a fim de recolherem quaisquer tributos municipais, como sejam os impostos da indústria e profissões ou a taxa de conservação de estrada de rodagem, caberá à municipalidade de Glicério impetrar mandado de segurança contra aquela exigência.
Em princípio, não cabe mandado de segurança contra “lei em tese”, mas, no caso da consulta, o mandado de segurança seria requerido contra o ato mediante o qual o Município de Braúna daria execução a uma lei eivada de inconstitucionalidade.
Pela mesma razão, por caber mandado de segurança contra o ato que concretiza o disposto em determinada lei, o prazo de 120 dias concedido para o emprêgo daquele remédio heróico começará a fluir a partir da efetivação do ato, isto é, desde quando se verificar a pretensão de arrecadar tributos no território ilìcitamente desmembrado.
Neste passo evidencia-se, como se vê, a íntima conexão entre a intangibilidade do território e a autonomia tributária que a Constituição federal, em seu art. 29, confere solenemente aos Municípios.
E’ claro que o uso das duas vias legais acima apontadas não exclui a propositura de ação ordinária destinada a pleitear a declaração de nulidade de pleno direito da alteração de divisas procedida no anexo n.º 2 da lei n.º 2.456, restabelecendo-se as antigas linhas que separavam o distrito-sede do antigo distrito de Braúna.
E’ o meu parecer, salvo melhor juízo.
São Paulo, 7 de agôsto de 1955. – Miguel Reale, professor da Faculdade de Direito de São Paulo.
LEIA TAMBÉM O PRIMEIRO VOLUME DA REVISTA FORENSE
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 1
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 2
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 3
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- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 6
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