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Magistratura – Fusão De Entrâncias – Direito Adquirido – Ato Administrativo, de Osvaldo Aranha Bandeira De Melo

MAGISTRATURA

REVISTA FORENSE 167- ANO DE 1954

Revista Forense

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14/11/2024

– Constituem direito adquirido as vantagens atribuídas pela lei nº 1.098, de 1954, de Minas Gerais, aos juízes de quarta entrância, que não lhes podem ser retiradas sem ofensa a situação jurídica definitivamente constituída.

– Inconstitucionalidade da lei número 1.403, de 1955, de Minas Gerais.

PARECER

Reorganizando a magistratura do Estado, pela lei nº 1.098-54, houve por bem o govêrno de Minas Gerais fundir, em única e última entrância, a 3ª e 4ª entrâncias da carreira de juiz de direito, colocadas, assim, em uma mesma classe e em um mesmo grau, ou seja, tôdas englobadas na 3ª entrância. Sendo, entretanto, nessa ocasião, de categorias diferentes os titulares das respectivos cargos de ditas entrâncias judiciais, foram distinguidas as suas situações pessoais, estabelecidas a favor dos então juízes de 4ª entrância duas vantagens. Consistiu uma na prioridade de promoção por antiguidade e outra em adicional ao respectivo padrão de vencimento, de Cr$ 1.000,00, pago sob o título de gratificação, como ajuda de custo de residência. Dessa forma, embora os cargos de juiz de 4ª entrância se tornassem iguais aos cargos de juiz de 3ª entrância, os seus titulares viram garantida a disparidade das suas situações anteriores, ante as vantagens especiais que lhes foram reconhecidas, expressamente, pela lei nº 1.098-54, que fundiu as entrâncias 3ª e 4ª, confirmadas pela lei nº 1.172-54 que reviu vencimentos da magistratura.Vantagens, repetimos, relativas ao tempo para efeito de promoção por antiguidade, e relativas a adicional nos vencimentos do cargo de juiz de 3ª entrância, para todos os efeitos, e, certamente, a êles incorporados.

2. Ante o encarecimento crescente da vida, pela desvalorização da moeda e elevação dos preços das mercadorias, se viu o govêrno mineiro obrigado a fazer novo aumento de vencimentos dos seus magistrados. Aliás, diga-se de passagem, ainda vencimentos irrisórios em face do relêvo da função e do serviço prestado, bem como da próprio custo de vida. Isso se tornou realidade com a aprovação pelo Legislativo, de substitutivo ao projeto encaminhado com tal objetivo, pelo Executivo, e por êste sancionado. Trata-se da lei nº 1.403-55.

Nesse texto se estabeleceu, no art. 1º:

“Art. 1º Os vencimentos da magistratura são os constantes da tabela anexa, que faz parte integrante desta lei, nêles já incorporados a gratificação a que se refere a nota da Tabela nº 2, anexa à lei nº 1.098, de 26 de junho de 1954, e o aumento previsto pelo art. 9º da lei nº 1.172, de 7 de dezembro de 1954”.

O vencimento constante da tabela anexa de juízes de 3ª entrância ficou, então, fixado em Cr$ 14.000,00, e o de desembargador em Cr$ 18.000,00. Salienta-se o vencimento dêste, porque, pelo art. 69, § 1°, da Constituição do Estado de Minas Gerais, o vencimento dos Juízes de direito da entrância mais elevadas deve corresponder, pelo menos, a 75% do vencimento dos desembargadores. Assim estabelecido em Cr$ 18.000,00 os vencimentos dos desembargadores, o dos juízes da 3ª entrância não poderiam ser inferiores a Cr$ 13.500,00.

3. Acontece que o MM. juiz da 1ª Vara Cível e Comercial de Belo Horizonte, a quem cabe, nos têrmos da legislação mineira, como administrador do Forum local, a organização das fôlhas de pagamento dos juízes, as vem fazendo com supressão da gratificação retro referida de Cr$ 1.000,00, criada pela lei n° 1.098-54, e confirmada pela lei número 1.172-54, a favor dos antigos titulares dos cargos de juízes de 4ª entrância, em aplicação da lei nº 1.403-55 ante a expressa disposição do art. 1º, retro transcrito, que incorporou nos novos vencimentos por ela fixados a referida gratificação. Por sua vez, a Fazenda estadual, por igual motivo, vem fazendo o pagamento dos vencimentos dos mencionados juízes sem a gratificação aditiva em referência.

Consultam-nos se êsse ato de exclusão de gratificação de ajuda de custo de residência envolve violação de direito dos juízes titulares das antigas comarcas de 4ª entrância.

4. Distinguem-se no tempo três momentos: o passado, o presente e o futuro. Em conseqüência, a aplicação da lei pode-se referir a três hipóteses: efeito retroativo, efeito imediato e efeito deferido. Retroativo, se a sua aplicação se remonta ao passado, portanto, a atos jurídicos perfeitos. Imediato, se se aplica, desde logo, no presente, a situações em curso e posteriores a ela, embora formadas antes dela Deferido, se a sua aplicação se estende, no futuro, a situações que venham a ser formadas.

O direito positivo dos povos cultos tem reconhecido, como norma geral por êle acolhida, ora em textos de leis ordinárias, ora em textos constitucionais, o princípio da irretroatividade das leis, conseqüentemente, o respeito à execução do ato jurídico perfeito e ao direito adquirido ou situação jurídica definitivamente constituída.

Já a antiga Constituição imperial, no seu art. 179, § 3º, prescrevia o efeito retroativo da lei, no que foi reafirmada pela Constituição de 1891. Por sua vez, a antiga Introdução ao Cód. Civil, no art. 3°, dispunha que a lei não prejudicaria o direito adquirido e o ato jurídico perfeito, e a atual Lei de Introdução, no seu art. 6º declara que o efeito imediato da lei não atingirá as situações jurídicas definitivamente constituídas e a execução do ato jurídico perfeito. Tais garantias foram insertas, ainda, e em têrmos idênticos aos da anterior Introdução ao Cód. Civil, nas Constituições de 1934, no art. 113, nº 3, e de 1946, no art. 141, § 3°. Êsse o direito pátrio na sua tradição monárquica e republicana democrática, com referência ao problema da aplicação da lei no tempo. Nêle procura conciliar a aplicação da lei nova com as conseqüências da anterior, a fim de resguardar a ordem jurídica, impedindo a retroatividade em princípio da lei nova, e assegurando o efeito futuro da lei velha em determinadas situações de direito; com referência a fatos ocorridos e atos praticados na sua vigência, quer quanto a sua forma ou conteúdo.

O ato jurídico perfeito é o que já produziu todos os seus efeitos, e, portanto, se consumou, ou, então, o que se efetivou formalmente segundo a ordem jurídica, embora pendentes os seus efeitos. A lei nova, sob pena de retroativa, não pode apanhá-lo porque o passado lhe escapa, inteiramente estranho à sua esfera de ação, e, por isso, ao seu influxo. “Tempus regit actum”, diz o brocardo.

A situação jurídica, presente ou futura, é a posição ocupada por uma pessoa na ordem jurídica. Pode ser geral ou objetiva e individual ou subjetiva. Uma diz respeito aos institutos jurídicos, como modo de ser do direito, quer dizer, relativamente à sua própria existência. A outra diz respeito aos fatos condizentes à aplicação dêsses institutos a determinadas pessoas, regulando a aquisição dos direitos, individuados em seu proveito. Aquela estabelece situação mutável por outra lei, por envolver simples faculdade isto é, mera capacidade, segundo à ordem jurídica vigente, para praticar certos atos, mas anda não exercitada; ou expectativa de direito, isto é, esperança de ver definida uma situação de acôrdo com a legislação existente. Esta estabelece uma situação jurídica definitiva, por se incorporar ao patrimônio do interessado uma utilidade concreta a seu favor.

A expectativa corresponde a uma probabilidade de haver direito e a faculdade a sua possibilidade; enquanto a situação jurídica definitivamente constituída consiste no direito adquirido, em conseqüência de um fato que o produziu, nos têrmos da lei vigente e integra, dêsse modo, pessoal e especial, o patrimônio do sujeito que o adquire.

5. Examinando-se a lei nº 1.098-54, de Minas Gerais se verifica, como salientado, que ela visou unificar os cargos, de 3ª e 4ª entrâncias da magistratura estadual, mas não a situação dos seus titulares. As comarcas se nivelaram, mas os titulares ficaram com situações jurídicas diferentes. A natureza dos cargos e os seus padrões de vencimentos se equipararam, mas a situação dos titulares da entrância extinta e superior se resguardou. Isso através de duas vantagens, uma quanto ao tempo para promoção por antiguidade, outra quanto ao próprio vencimento, acrescido de adicional, sob a denominação de gratificação de ajuda de custo de residência.

Ora, essas duas vantagens constituem direito adquirido dêles, que não podem ser retiradas, sob pena de violação de situação jurídica definitivamente constituída. São vantagens que se integraram nos respectivos patrimônios; que se concretizaram nas suas pessoas, que se especificaram nas suas individualidades.

Leia-se a definição clássica de C. F. GABBA de direito adquirido e se não terá dúvida que a situação dos então titulares de 4ª entrância da Justiça Mineira, com referência a ambas as hipóteses, de prioridade para promoção por antiguidade, e de adicional, titulado gratificação de ajuda de custo de residência, correspondem a essa figura jurídica.

Ei-la:

“È acquisto ogni diritto, che a) è conseguenza di un fatto idoneo a produrlo, in virtù della legge del tempo in cui il fatto venne compiuto, benchè l’occasione di farlo valere non siasi presentata prima dell’attuazione di una legge nuova intorno al medesimo, e che b) a termini della legue sotto l’impero della quale accade il fatto da cui trae origine, entrò immediatamente a far parte del patrimonio di chi lo ha acquistado” (“Teoria della Retroattività delle Leggi”, ed. 1891, vol. I, pág. 191).

Prossiga-se no estudo do trabalho do mestre italiano e mais ficará fortificada tal conclusão, ao se depararem estas palavras:

“Il diritto acquisto è individuale non soltanto nel senso, che ad un individuo appartiene, ma altresì nel senso che esso collegasi direttamente colla individualità, coi caratteri propri e distintivi di questa, entrando esso pure in quel novero… Diritti concreti e acquisti sono quelli soltanto che dentro la cherchia del potere consentito dalle legge concernenti le persone e le cose, mirano ad un determinato e vantaggioso effeto, da esse leggi contemplato in modo esplicito o implicito, e sorgono negli individui e per virtù dell’umana legge medesima, in seguito à fatti e circostanze e nei modi e alle condizioni da essa prestabilite” (ob. cit., vol. I, págs. 208 e 210).

6. Por conseguinte, está eivada de inconstitucionalidade a lei nº 1.403-55, ao desconhecer o direito adquirido ou situação jurídica definitivamente constituída a favor do então titulares da 4ª entrância pela lei nº 1.098-54 e reafirmada, ex abundantia, pela lei número 1.172-54, com referência ao adicional ao vencimento do cargo de juiz de 3ª entrância, a que se transformou o seu. Essa compensação pessoal, pecuniária, que lhes foi assegurada individualmente, se incorporou ao vencimento de ditos juízes, qualquer que venha a ser o seu padrão. Jamais, entretanto, pode ser incorporada no vencimento, diluindo-se no padrão do respectivo cargo. É uma parte do vencimento dos juízes de 3ª entrância, que anteriormente o foram de 4ª entrância, com vida autônoma, embora participante dêsse vencimento, para todos os efeitos de direito. Por isso, não se confunde com o padrão de vencimento dos juízes de 3ª entrância em geral. Êstes, na hipótese têm direito a perceber o vencimento de Cr$ 14.000,00 mensais, conforme o aumento previsto pela lei nº 1.403-55. Aquêle também têm igual direito e mais o de haver o adicional específico, individual, concreto, que lhe garantiu a lei nº 1.098-54 e desnecessariamente reproduziu a lei nº 1.172-54. Um é a vantagem econômica do cargo, que qualquer dos titulares percebe, e o outro é a vantagem pecuniária de certos titulares, tão-sòmente, que faz parte do seu patrimônio próprio.

Dito adicional, conferido, de certo modo por terem êles mais tempo na classe, pois precederam os então juízes da 4ª entrância aos juízes de 3ª entrância; na categoria de última entrância da magistratura, tem analogia com o adicional pago percentualmente ao padrão de vencimento por tempo de serviço. Realmente, essa gratificação de ajuda de custo de residência constitui um acréscimo especifico aos vencimentos dos antigos juízes das comarcas de 4ª entrância, porque tinham mais tempo na última entrância judicial do estado, pois já a ela pertenciam antes da lei número 1.098-54, enquanto só depois dela passaram saram a integrá-la os juízes de 3ª entrância, isto é, com a unificação dessas entrâncias. Ora, ninguém pretendera englobar aos vencimentos de dado padrão o adicional a êle por tempo de serviço, anteriormente adquirido sob pena de estar violando situação jurídica definitivamente constituída. O mesmo deve ocorrer com referência aos adicionais em causa, por maior tempo de serviço na classe.

Essa vantagem corresponde a um acessório individual do vencimento dos então titulares das antigas comarcas de 4ª entrância e tem um misto de dois suplementos de vencimentos, considerados pelo direito administrativo da França, com referência à função pública, indemnité de résidence, destinada a compensar o custo de vida do agente público e indemnité différentielle, destinada a compensar o agente do rebaixamento do cargo superior que ocupava para outro inferior (cf. ANDRÉ DE LAUBADÈRE, “Traité Elémentaire de Droit Administratif”, ed. 1953, págs. 688-689).

7. O desrespeito ao direito adquirido ou à situação jurídica definitivamente constituída mais se avulta ao atentar-se para o fato de envolver redução, nos vencimentos de juízes, que os têm irredutíveis, por texto expresso da Constituição federal ex vi do art. 124, combinado com o art. 95. Desrespeito, ainda, da Constituição do Estado, uma vez se lhes nega, como juízes em última entrância, o recebimento mínimo de 75% dos vencimentos dos desembargadores, por ela assegurado, ex vi do art. 69, § 1º.

Realmente, a lei nº 1.098-54 estabeleceu, como não podia deixar de ser, padrão de vencimentos iguais para os juízes da mesma entrância, e no caso em foco, para os juízes de 3ª entrância. Do contrário, aliás, estaria em oposição ao art. 146 da Constituição do Estado, que dispõe devem os funcionários de igual categoria perceber vencimentos iguais. Ao mesmo tempo, estabeleceu um acessório ao padrão de vencimentos dos então juízes de 4ª entrância, cujos cargos, por essa mesma lei nº 1.098-54, eram nivelados com os de 3ª entrância; com a denominação de gratificação, de natureza pessoal, só a êles juízes de antigas comarcas de 4ª entrância, e não aos outros, juízes das comarcas de 3ª entrância, como compensação concreta a seu favor, pelo nivelamento dos cargos a que, então, ela procedia.

Ora, se o padrão de vencimentos era o mesmo Cr$ 10.800,00, conforme prefixara, a lei n° 1.098-54, posteriormente elevado a Cr$ 11.400,00, sem prejuízo da vantagem especial, que expressamente a confirmou, pela lei nº 1.172-54, o último aumento recebido, em conseqüência da lei nº 1.403-55, que fixou em Cr$ 14.000,00 o padrão de vencimentos dos juízes de 3ª entrância, sòmente seria igual, se todos passassem a perceber, em razão da passagem do respectivo padrão de Cr$ 11.400,00 para Cr$ 14.000,00, a importância a mais de Cr$ 2.600,00, ressalvada as diferenças especiais e pessoais, adicionaria ao padrão por tempo de serviço, por exemplo, ou por compensação de qualquer circunstância, especial, como seja a do nivelamento de cargos de classes diferentes, ou melhor, das 3ª e 4ª entrâncias da carreira de juiz de direito.

Contudo, isso não se deu. Aos então juízes das comarcas de 4ª entrância, com a elevação do padrão igualmente para todos os juízes da mesma entrância, ou seja, na hipótese, os de 3ª, coube receber, a titulo de aumento, uma importância menor que os seus colegas, pois, enquanto a êstes se deu um aumento de Cr$ 2.600,00, diferença entre a que estavam percebendo, Cr$ 11.400,00, e a ora paga, Cr$ 14.000,00, àqueles se deu apenas Cr$ 1.600,00, diferença entre a que estarem percebendo, Cr$ 11.400,00 mais Cr$ 1.000,00, e a ora paga, Cr$ 14.000,00.

Sem dúvida, a incorporação envolveu, indiretamente, mas de modo efetivo e real, uma diminuição de vencimentos dos antigos juízes das comarcas de 4ª entrância. Diminuição que se verificou com a irregular incorporação no padrão de vencimentos dos antigos Juízes das comarcas de 4ª entrância, de vantagem especial, que lhes competia em caráter pessoal, como acessório individual, e concreto do seu padrão de vencimentos. De vantagem, enfim que só a êles competia, e se achava incorporada aos seus vencimentos, como situação jurídica definitivamente constituída.

Por outro lado, se os antigos juízes de 4ª entrância estão percebendo os vencimentos de Cr$ 14.000,00, nos quais se incorporou a importância de Cr$ 1.000,00, que, as têm como acessório ao padrão de vencimentos, como vantagem pessoal, e especial. Portanto, como direito adquirido, na verdade, o padrão de vencimentos dêles, ao contrário do de seus colegas de entrância, é de Cr$ 13.000,00. Por conseguinte, importância inferior aos 75% dos vencimentos dos desembargadores, que devem auferir consoante texto constitucional referido. De fato sem a incorporação nos seus vencimentos do adicional de Cr$ 1.000,00, deveriam perceber nos têrmos do art. 69, § 1º, da Constituição estadual, no mínimo Cr$ 13.500,00. É verdade que se poderá alegar que tôda essa argumentação só tem cabida porque se não considera suprimido o acessório especial, o adicional pessoal, de Cr$ 1.000,00. Isso se reconhece. Mas, tal supressão não se pode admitir, sob pena de aceitar-se o desconhecimento de direito adquirido ou melhor, de situação jurídica definitivamente constituída, como já se deixou demonstrado.

8. Não se alegue, no entanto, que a lei nº 1.403-55 veio, justamente, elidir situação jurídica desigual e injustificável, existente entre os antigos juízes de 4ª entrância e todos os outros seus colegas de 3ª, em acatamento ao art. 146 da Constituição do Estado, que proíbe vencimento, desiguais entre funcionários de igual categoria.

O que o texto constitucional pretende é impedir a disparidade de padrão de vencimentos entre funcionários de igual categoria, distinguindo econômicamente situações absolutamente iguais, de natureza geral e abstrata. Jamais buscou coibir diferenças decorrentes de situações perfeitamente desiguais de natureza especial e concreta, em razão de determinadas particularidades, como seja adicional por tempo de serviço; adicional por participação em corpos militares, por exemplo, nas fôrças expedicionárias brasileiras durante a última guerra; adicional por prestação de serviços públicos em épocas excepcionais, como de certas epidemias; adicional por filho, com o objetivo de proteger a família numerosa; adicional por nivelamento de cargos de carreira superior com os de cargos da mesma carreira inferior. Não se confundem, por isso, os vencimentos como padrão e os seus adicionais acessório do padrão, juntamente com êle incorporados aos vencimentos, para todos os efeitos de direito.

Certamente, constitui faculdade do legislador conferir ou não tais vantagens particulares, par a par, com o padrão de vencimentos. Porém, um vez reguladas nos têrmos de direito e ocorrida a circunstância de fato que as individualiza a favor de determinada pessoa, essas vantagens se incorporaram no seu patrimônio e passam a constituir a seu favor direito adquirido, não podendo ser abolidas, seja diretamente, mediante supressão expressa, seja indiretamente, através de qualquer subterfúgio legislativo, como na hipótese, em que se mandou incorporar a mencionada gratificação, de caráter pessoal e especial de certos juízes no padrão de vencimentos, geral e abstrato, de todos os juízes com menosprêzo a situação jurídica definitivamente constituída.

9. Por conseguinte, ocorreu, ante o sustentado, violação de direito líquido e certo dos juízes das antigas comarcas de 4ª entrância e o remédio para resguardá-lo é o mandado de segurança.

Objetar-se-á que o writ em aprêço não cabe contra a lei em tese e foi ela, a lei nº 1.403-55 quem feriu o texto das Constituições federal e estadual, pelos fundamentos expostos. Argüição, no entanto, de nenhuma valia.

Realmente, o mandado de segurança só é admissível para garantir direito certo e incontestável contra atos administrativos. Êstes podem estar alicerçados em leis inconstitucionais, mas o mandado só se expede contra o ato praticado, fundado na lei inconstitucional. O mandato de segurança, de fato, não pode ser pedido contra a lei em tese, porém contra atos administrativos ilegais ou atos administrativos executados com base em leis inconstitucionais.

O mandado de segurança se impetra, na verdade, na hipótese, contra o ato administrativo do juiz de direito da 1ª Vara Cível e Comercial que, aplicando a lei nº 1.403-55, ao organizar as fôlhas de pagamento, deixou de consignar como devera, a importância correspondente ao adicional previsto pela lei nº 1.098-54, a favor dos juízes da antiga 4ª entrância, e que se integrou nos seus patrimônios, como direito adquirido. Demais, o mandado de segurança se impetra, na verdade, na hipótese contra o ato administrativo do govêrno do Estado, ao fazer através dos órgãos próprio da Fazenda Pública, aplicando a lei nº 1.403-55, o pagamento dos vencimentos dos juízes em referência com exclusão da importância correspondente ao adicional, previsto pela lei nº 1.098-54 a favor dos juízes da antiga 4ª entrância, e que se integrou nos seus patrimônios, como direito adquirido.

Os atos praticados pelo MM. juiz de direito da 1ª Vara Cível e Comercial e pela Fazenda Pública estadual são atos administrativos e manifestamente inconstitucionais, por que as autoridades supra-referidas, coatoras, os praticaram no cumprimento de lei que viola as Constituições federal e estadual.

Isso transparece de forma indisputável ao se precisar o conceito de legislação e administração. Atos legislativos são aquêles pelos quais o poder público estabelece regras de direito, gerais e abstratas, inovando na ordem jurídica. Atos administrativos são aquêles pelos quais o poder público concretiza os princípios abstratos da lei através da sua execução, com o objetivo de realizar função pública ou desempenhar serviço público. O simples esclarecimento da natureza dêsses dois atos nos autoriza a concluir que os atos infringentes do direto adquirido ou da situação jurídica definitivamente constituída, ora em exame, e contra os quais se justifica o mandado de segurança, são atos administrativos, em execução de lei inconstitucional.

O conceito, ora dado, de ditos atos, aliás, é corrente. Vejamos, por exemplo, como os define GUIDO ZANOBINI:

“La legislazione è funcione con la quale lo Stato pope e transforma il suo ordinamento giuridico: essa si estrinseca nella emanazione di leggi, cioè di sovranità generali ed astratti”… “Amministrazione pubblica possiamo dire que questa è il complesso delle attività concrete disfriegate dello Stato, diretamente ou indiretamente, per la cura dei singoli interessi, che esso assume nei proprifini” “Diritto Amministrativo”, ed. 1936 pág. 415, vol. I).

10. A função do Poder Judiciário de declarar as leis inconstitucionais nunca se situa no exame da lei em tese, do direito em si, mesmo porque foge da sua alçada discutir teoria, científicas de direito, deliberar sôbre princípios gerais de doutrinas, abordar teses ideológicas, exercer função de órgão consultivo. Ao Judiciário incumbe dizer do direito contra as partes, solvendo controvérsias jurídicas concretas e determinando o restabelecimento de situações jurídicas violadas. As causas não são e nem podem ser propostas tendo como finalidade a declaração de uma lei como írrita e nula, sem vir suscitada por uma demanda estabelecida entre duas partes opostas, em que se pretenda que fato ou ato de um feriu direito de outro. A lei em tese só é discutida quanto à sua aplicação na hipótese, por ato ou fato de alguém.

Exatamente a situação em foco: atos administrativos do juiz da 1ª Vara Cível e Comercial e dos agentes da Fazenda Pública, ao aplicarem a lei número 1.403-55, em tópico inconstitucional, violaram direito adquirido dos juízes das antigas comarcas de 4ª entrância, havido em vista do disposto na lei nº 1.098-54, pela qual se criara a seu favor situação jurídica definitivamente constituída, e envolveram ainda redução indireta dos seus vencimentos, por natureza irredutíveis, bem como desconheceram, afinal, percentagem mínima que deve existir entre a importância dos vencimentos dos desembargadores e dos juízes da última entrância. Cabe portanto, mandado de segurança para resguardar tal direito líquido e certo, a fim de fazer-se prevalecer o art. 141, § 3º, e art. 124 combinado com o art. 95, todos da Constituição federal e o art. 69, § 1º, da Constituição do Estado de Minas Gerais.

Êste é o nosso parecer, salvo melhor juízo.

São Paulo, 19 de julho de 1956. – Osvaldo Aranha Bandeira de Melo, professor catedrático da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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